O papel da guerra na conformação da ordem mundial

Volume 5 | Número 49 | Jun. 2018

Por Bernardo Salgado Rodrigues*
Desde a constatação dos primeiros primatas, a violência acompanhou o homo sapiens em seu processo evolucionário. Neste trajeto, com a formação de grupos nômades surgiram também os primeiros conflitos internos, que se separavam dos conflitos externos com outros grupos, interpretado como a forma primitiva do fenômeno da guerra, que se transforma numa condição da unidade e da identidade interna de cada um destes grupos ou tribos. A guerra, tal qual a conhecemos na atualidade, somente viria a surgir com a formação das fronteiras territoriais e com a ascensão dos primeiros impérios e civilizações, aproximadamente no terceiro milênio antes da Era Cristã, se generalizando e se transformando no principal instrumento organizado e sistemático de conquista e de dominação entre os povos e os impérios. Qualitativamente, a guerra começa a sofrer uma mudança substancial a partir dos séculos X e XI d.C., com o aumento da competição interna e da centralização do poder, com o início da expansão externa dos pequenos poderes territoriais europeus que dariam origem aos Estados nacionais da Era Moderna, com o Tratado de Vestfália de 1648, e com o papel do poder e da guerra na formação, expansão e globalização do sistema europeu de Estados e economias nacionais.
Essa originalidade dos europeus − tanto na criação dos Estados nacionais como em fazer da própria guerra um mecanismo regular de acumulação de riqueza e, simultaneamente, fazer da acumulação da riqueza um instrumento regular de conquista e acumulação de poder − transformou a guerra em componente sistêmico do processo de expansão do poder e do território dos Estados e do próprio sistema estatal como um todo dentro e fora da Europa. Num sistema global de poder que se configura pela assimetria, hierarquia e competição, há um elo histórico entre a guerra e o estabelecimento de um mercado mundial e economia global, cuja ordem econômica e política internacional se configura como variável dependente e, como variável independente, a guerra. 
Numa visão de longa duração, verifica-se que a guerra é um elemento presente na conformação do sistema internacional. Constata-se que de 1480 a 1800, no auge do Mercantilismo, num sistema ainda em formação, com aumento do comércio e formação dos Impérios marítimos e cujo domínio do mar era o domínio do mundo, a cada dois ou três anos iniciou-se em algum lugar um novo conflito internacional expressivo; de 1800 a 1944, no período da Pax Britânica, de hegemonia britânica pautada no livre comércio, na indústria/poder naval, no equilíbrio europeu, com o triunfo da industrialização via Revolução Industrial no berço do capitalismo, a cada um ou dois anos; a partir da Segunda Guerra Mundial, na conformação da Pax Americana, mais ou menos um a cada quatorze meses. 
Nos períodos de transição da ordem mundial, de disputa entre países referente aos seus projetos mundiais, são comumente percebidos atos de violência, de turbulência e disputa entre potências, no qual nenhuma consegue impor seu modelo às demais. Nestas ocasiões, três fatores aparecem como variáveis constantes: ascensão de novas potências desafiantes; crises políticas e/ou econômicas, cíclicas, conjunturais e/ou estruturais; e a guerra. Ou seja, diferentemente de teorias da “paz perpétua”, “estabilidade hegemônica”, “democracia e livre mercado visando à paz internacional”, a guerra se intensifica quantitativa e qualitativamente, num movimento progressivo dos conflitos que configuram a ordem internacional de acordo com os interesses dos grandes centros de poder internacional no momento em que tal ordem é estabelecida.
No século XX, o sistema interestatal se universalizou definitivamente, junto com suas guerras cada vez mais globalizadas. Com a Segunda Guerra Mundial (1939-45), há uma nova configuração de forças entre as principais potências, cuja ordem internacional estabelecida após a Primeira Guerra Mundial (1914-1917) não corresponde à realidade de poder relativo entre os Estados. A vitória dos Aliados consolidou o sistema da Guerra Fria com dois grandes pólos de poder: EUA e URSS. No período que se seguiu, o sistema internacional passou por mudanças significativas, com a criação de organizações multilaterais (ONU, FMI e BIRD), reconstrução da Europa (Plano Marshall), surgimento de novos Estados, criação do padrão ouro-dólar (posteriormente dólar flexível) e o estabelecimento do sistema hemisférico de defesa (OTAN), sob a hegemonia dos EUA. Com a Guerra Fria, há um sistema de administração das relações internacionais, permitindo dois sistemas antagônicos conviverem em relativa “harmonia”, com a aceitação de áreas de influências dos EUA e URSS.
Paradoxalmente e ao contrário do que muitos autores preconizaram à época, como o clássico “fim da história” de Fukuyama, o fim da Guerra Fria trouxe a guerra de volta para o epicentro do sistema internacional. Foram 47 intervenções militares americanas – algumas chamadas de “humanitárias − na década de 90, começando com a Guerra do Golfo e a Guerra dos Balcãs, em 1991 e 1992, seguindo com a guerra quase contínua do “Grande Oriente Médio”, de 2001 até hoje. A possibilidade e potencialidade da guerra é mais iminente num contexto de desequilíbrio global, cuja criação de ameaças, como a ameaça verde (majoritariamente Estados islâmicos radicais), a ameaça vermelha (Venezuela, Coreia do Norte), a ameaça étnico-religiosa, a ameaça síria, a ameaça do Estado Islâmico, servem de prerrogativas para a continuação da máquina da guerra. Há ainda, a crescente tensão bélica atual, entre a OTAN e a Rússia, na Europa Central e no Mar Negro, e entre os EUA, a China, e o Japão, no Sul do Pacífico, que consistem em embates de grandes potências econômicas, militares e nucleares. 
A guerra consiste num fenômeno central do sistema e da ordem internacional, seja através da sua relação com o sistema tributário, desenvolvimento tecnológico e acumulação de capital. Ela está no princípio das hierarquias e relações de poder, cujo principal objetivo sempre foi a “vitória”, e através da vitória, a imposição dos argumentos e valores vitoriosos, e sobre a própria maneira de construir a paz e a ética internacional. Por esta razão, a paz lograda através da vitória acaba se transformando, muitas vezes, no principal motivo da guerra seguinte, dos derrotados de hoje contra os vitoriosos de ontem, na busca da “reparação” e do restabelecimento do “equilíbrio de forças” que existia antes do primeiro conflito.

* Este texto foi produzido a partir das discussões realizadas no Colóquio “Sobre a Guerra”, realizado de Setembro de 2016 a Agosto de 2017, pelo Programa de Pós-Graduação em Economia Política Internacional da UFRJ.

Diálogos Internacionais

Divulgação científica de Relações Internacionais, Defesa e Economia Política Internacional ISSN 2596 2353