A caverna da esquerda

Volume 5 | Número 47 | Abr. 2018

Por Bernardo Salgado Rodrigues
Das obras do filósofo grego Platão, a passagem mais conhecida encontra-se no Livro VII de “A República” (PLATÃO, 2008), conhecida como o “mito da caverna”. Esta narra a história de um conjunto de prisioneiros que foram acorrentados e presos em uma caverna desde sua infância. Na sua visão cotidiana, está somente a parede da caverna com sombras oriundas dos efeitos da luz, que penetram no local devido a existência de uma fogueira, cujas sombras indicam apenas parte das formas, mas nunca uma pessoa ou figura completa. Na continuação, um desses prisioneiros se livra das correntes e caminha à saída da caverna, ainda que com muito esforço, dado a adaptação de seu corpo e a subida íngreme. Ao sair da caverna, a luz forte do sol faz seus olhos doerem, mas, aos poucos, se adapta e descobre um novo mundo até então desconhecido, a verdade. De pronto, resolve voltar à caverna, libertar seus antigos companheiros de prisão e contar tudo que havia visto. Entretanto, os presos que se encontravam na caverna, devido à sua realidade, reféns dos seus hábitos e cotidiano, não aceitam suas argumentações, interditam um diálogo e acusam-no de louco, não descobrindo o mundo verdadeiro.

O mito da caverna vem servindo de analogia para diversos fenômenos sociais e filosóficos, uma alegoria que transpassa barreiras e serve de guia auto-reflexivo constante, inclusive para a esquerda brasileira e mundial na atualidade. 
No plano das relações internacionais, a esquerda carece incorporar um conceito básico da geopolítica, a ideia da estruturação de um sistema interestatal global anárquico, hierárquico e competitivo, em que qualquer modificação na relação de forças afeta sempre a posição relativa dos atores internacionais e que, por isso mesmo, não podem permanecer indiferentes às oscilações do equilíbrio de poder mundial. Em outros termos, é fundamental para a esquerda analisar as causas da inflexão global à direita, seja no Brasil ou nos EUA, Hong Kong, Argentina, Venezuela, Reino Unido, França (…). As estruturas de poder mudaram dramaticamente nos últimos 20 anos, diretamente relacionadas com as inovações oriundas da Quarta Revolução Industrial (inteligência artificial (IA), robótica, internet das coisas (IoT), veículos autônomos, impressão em 3D, nanotecnologia, biotecnologia, ciências dos materiais, armazenamento de energia e computação quântica, dentre outras aplicações), que possui uma velocidade, amplitude e profundidade ainda não mensuráveis, mas com um impacto sistêmico inegável. A própria esquerda peca em não analisar detidamente este novo fenômeno, tanto para sua utilização plena como para sua regulação, quando necessária, inviabilizando sua incorporação em suas estratégias. 
A conjuntura atual para a esquerda é um das mais complicadas em décadas. Não cabe aqui detalhar aspectos específicos, mas realizar uma auto-reflexão, compreender que o pêndulo de Polanyi[1] se apresenta como uma etapa de reconfiguração de forças, autocrítica e diálogo aberto, ainda que com as dificuldades que se apresentam em qualquer troca de ideias no Brasil. É, ainda que a contragosto, debater e confrontar com liberais e conservadores, mas também é imprescindível um diálogo dentro da própria esquerda. 
A esquerda ficou desacostumada a debater fora de sua bolha, incapaz de responder argumentos que não compartilhem suas premissas, permanentemente confundindo diferença política com superioridade moral. Na época da chamada “onda rosa[2]” na América do Sul, era mais simples os argumentos da esquerda serem aceitos, acachapava-se o dissenso da direita e mantinha-se a hegemonia do discurso (ainda que permeado de contradições e contra-argumentações). E na conjuntura atual, que a esquerda é paulatinamente reduzida no espectro político (obviamente, por conta de si própria e de movimentos da direita nacional e internacional), tendo perdido até mesmo as ruas, que sempre foram sua arena de lutas? Irá continuar a evitar o debate, não conversar com ninguém? Continuará num movimento de segregação ao invés de união, de construção de muros ao invés de pontes? 
Mais preocupante ainda é quando esse diálogo é inviabilizado dentro da própria esquerda, um movimento que só fortalece a direita. Enquanto tivermos ambientalistas que só pensam no meio ambiente; movimento LGBT que só pensa nos direitos LGBT (e cheio de subdivisões); feminismo consideravelmente fragmentado e que, não raras às vezes, se confunde com femismo; movimento negro que se enxerga, não raras às vezes, como a única minoria; seremos presas fáceis, cada um defendendo o seu quinhão ao invés da luta conjunta e integradora. É fundamental compreendermos que o “lugar de fala” se tornou uma ferramenta de exclusão e, principalmente, segregação, transformado em veto de articulações entre grupos dominados. Obviamente que não se busca diminuir a importância extraordinária de cada um desses movimentos específicos; é apenas um adendo que, enquanto todos eles não se unirem e se inserirem em uma defesa global dos menos favorecidos em geral (e não em casos particulares isolados), apoiando a jogada estratégica pós-modernista americana e renegando a luta principal contra o grande capital, continuaremos sem “sul” em nossas bússolas esquerdistas.  
Tal como no mito da caverna, assim se encontra a esquerda na atualidade. E aqui, obviamente, me incluo, tendo a certeza de que em alguns dias, meses ou anos, ao reler este texto, terei muitas críticas sobre o mesmo, num eterno processo de construção e desconstrução do pensamento. A esquerda, prisioneira de seus hábitos e costumes, em suas sombras de certezas passageiras, refém de seu mundo idealizado e ignorando a exequibilidade realista de suas ações, não pode se incomodar em adquirir novos conhecimentos, incorporar novas vozes, atrair novos atores, compreender atos e falas, ainda que totalmente contraditórios com sua visão de mundo; é a não interdição do diálogo, a fim de compreender o porquê determinados fenômenos, outrora incompreensíveis, surgem e se disseminam na sociedade; é a desestabilização das certezas antigas que ajuda na compreensão real do mundo; é a fuga da “caverna facebookiana”, que somente serve para pregar para convertidos, rumo ao mundo real, de combate de ideias e projetos concretos. 
Temos que ir além, buscar novos métodos, abordagens, discursos que sejam acessíveis a parcela majoritária da população, que não compreende a maioria dos jargões técnicos e discursos prolixos, por mais que estejam permeados das melhores intenções. Na conjuntura atual, o sectarismo orgulhoso e prepotente, satisfeito de sua doutrina “pura”, com seus métodos simplistas na compreensão e resolução de problemas complexos, baseados num modelo definido e hermeticamente fechado, cada vez mais longe da vida real das massas, dificulta qualquer esforço de construir uma Frente Popular de Esquerda. E, na divisão da esquerda, a direita engrandece e agradece.
Referência

PLATÃO. A República. 2. ed. São Paulo: Editora Martin Claret, 2008.



[1] http://www.dialogosinternacionais.com.br/2015/12/o-pendulo-latino-americano-de-polanyi.html
[2]  “Onda rosa” é a expressão usada na análise política do início do século XXI, para referir-se à percepção da crescente influência da esquerda na América Latina, entre o fim da década de 1990 e o início dos anos 2000, quando foram eleitos muitos chefes de Estado ligados a partidos reformistas de esquerda. (Wikipedia)

Diálogos Internacionais

Divulgação científica de Relações Internacionais, Defesa e Economia Política Internacional ISSN 2596 2353

2 comentários sobre “A caverna da esquerda

  1. Gostei muito da análise. Se Marx saísse do túmulo, ficaria atônito com a incompreensão da esquerda em relação ao tempo e a transformação e diria que alguns não apreenderam o conceito e a vivência da dialética. PARABÉNS pelo texto e análise.bjks

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