Por Glauber Cardoso Carvalho
Estimulado pelo artigo de Leonardo Granato (2014) “A autonomia como vetor da ação externa e da integração na América do Sul: postulações teóricas” (
leiam aqui), temática sobre a qual me aprofundarei em outros posts dado que é extremamente próxima das minhas atuais pretensões de tese, e pelas próprias leituras que tenho feito, acabei me questionando sobre o post de hoje e lembrei que em pelo menos cinco dias desta semana que passou eu falei, escutei falar, li ou refleti sobre Helio Jaguaribe (sem acento, como ele gosta de frisar).
Não é difícil encontrar notas biográficas sobre Helio Jaguaribe Gomes de Mattos, carioca que completou 92 anos no último dia 23 de abril. (DHBB, 2001) Também é imortal desde 2005 quando sucedeu na cadeira 11, Celso Furtado, que falecera no ano anterior, a quem Jaguaribe descreve como um amigo e grande homem: “Há autores que se tornaram grandes porque escreveram grandes obras. Proust e Joyce, entre outros. Bem mais raro é o grupo dos que escreveram grandes obras porque eram grandes homens. Celso Furtado é certamente um desses.”
[i]
Uma das maiores marcas de sua trajetória foi a participação no Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb), mas também nos anteriores Grupo de Itatiaia e sua ramificação no Instituto Brasileiro de Economia e Sociologia e Política (Ibesp). Me toca ainda que foi discutido no
Centro Celso Furtado, do qual Jaguaribe é associado fundador, uma republicação de texto-depoimento, de 1979, para o Cadernos do Desenvolvimento nº 14, “ISEB – Um breve depoimento e uma reapreciação crítica” (
leiam na página dos Cadernos).
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Foto: Funag |
De suas amplas temáticas e de sua trajetória, passo a refletir brevemente sobre dois pontos, autonomia e Brasil, mas convido todos os leitores a conhecerem mais a produção de Jaguaribe, sobretudo suas reflexões sobre as relações internacionais, que nossa academia de RI simplesmente ignora, tanto quanto de outros autores brasileiros, argentinos, sul-americanos e do sul do mundo em geral. (A Funag relançou, em 2013, um conjunto de suas obras – ver aqui – e também, em 2008, um conjunto de artigos seminais do autor – ver aqui – como é próprio desta fundação, tudo on line)
Jaguaribe é o teórico brasileiro da autonomia. Ele traçou de forma seminal e original a análise da estrutura e os movimentos internos e externos no qual um país age, situando, obviamente, em seu tempo histórico e em sua conjuntura, mas levantando de forma definitiva questões sobre as quais os analistas precisam se deparar para qualquer estudo futuro. Resumindo de maneira completa, Granato explica a percepção dos problemas estruturais da América Latina para o autor:
Destes problemas, destacam-se o estancamento econômico, político, social e cultural da região; o status marginal frente aos países mais desenvolvidos do centro; a desnacionalização dos setores estratégicos da economia; a desnacionalização cultural, mediante o estabelecimento de uma dependência científico-tecnológica com caráter crescente e cumulativo com relação aos países mais avançados; a desnacionalização político-militar, mediante o crescente controle dos países latino-americanos, efetuados por dispositivos político-militares cuja concepção de mundo e interesses corporativos se baseavam em uma liderança hegemônica dos Estados Unidos. (Granato, 2014, p. 83)
Inserida nas relações interimperiais, a capacidade de autodeterminação teria quatro níveis decrescentes. Da supremacia geral, passando pela regional, pela autonomia em si e concluindo na dependência, a autonomia periférica teria um caminho a ser seguido que levaria em conta sobretudo duas questões que ele traduz como “viabilidade nacional” e “permissibilidade internacional”. Os termos são bem claros, e próprios do tempo em que foi escrito, mas podem ser traduzidos pelas análises de política externa que ressaltam a necessidades de coadunar percepções internas e externas para a compreensão das relações internacionais do país. Ser viável nacionalmente é variável dependente tanto quanto aproveitar a conjuntura internacional. (Não vou me estender aqui sobre cada item e sugiro fortemente aos interessados ler, pelo menos, todo o artigo de 1987, presente na coletânea de 2008 mencionada acima).
Granato ainda explica que o autor traça um “modelo autônomo de desenvolvimento e integração da América Latina”, que reforçaria a integração social tanto quanto econômica, instrumentalizada pelas políticas externas constituídas de duas faces “a partir de uma equação de otimização dos principais interesses de um país, levando-se em conta suas condições internas e externas e os meios de ação de que dispõe”, e em “proveito de cada uma dessas nações em particular, e do sistema regional em geral.” (2014, p. 84)
A acurada análise e explicação de Jaguaribe das estruturas e das conjunturas em cada época que tomou para análise, como é possível ver em seus textos, apresenta também de forma clara sua metodologia. No livro que se tornou pomo de discórdia e esteve envolvido em sua saída do Iseb, “O nacionalismo na atualidade brasileira”, de 1958, Jaguaribe prefacia com clarividência e toma para si a responsabilidade de sua pesquisa, não se desculpando, mas tratando de forma natural o que hoje não é tido como tal: a própria perspectiva.
Dentro de minhas limitações de informação e de entendimento e do horizonte que me é dado por minha própria perspectiva, procurei considerar a matéria em termos rigorosamente objetivos e científicos. Quer isso dizer, para os que entendem, como eu, que o mundo, notadamente o da cultura, é sempre visto em perspectiva – cada perspectiva constituindo um ingrediente da própria realidade –, que a objetividade desejável e possível é a que, partindo da consciência dos condicionamentos, conduz à compreensão crítica das ideologias e ao reconhecimento do sentido ideológico de tudo o que é socialmente significativo. (Jaguaribe, [1958] 2013, p. 13)
Quando comecei a pensar neste post, porém, também me veio à mente a frase “O que resta falar?” em claro falsete da memória de seu texto “Brasil: o que resta fazer?”
[ii]. Nesse pequeno texto, Jaguaribe consolida uma percepção crítica do avanço do neoliberalismo mesmo no governo Lula, explica sucintamente a sua utilização por FHC, atribuindo à Collor a canetada fatal: “Uma vez incondicionalmente inserido no mercado financeiro internacional, o país ficou compelido, sob pena de sofrer graves sanções, a seguir os ditames deste mercado, pautado pelo mais estrito neoliberalismo monetário”. (2006, p. 17)
Mas Jaguaribe vai mais longe e decreta que o problema do Brasil é a ignorância. A ignorância de 2/3 dos cidadãos brasileiros que forçadamente alheios do processo histórico-cultural reproduzem suas práticas políticas manejadas pelo 1/3 politicamente ativo. Assim, se há um objetivo nacional de levar o país a um “satisfatório nível de desenvolvimento econômico-tecnológico e sócio-cultural” há também a clara necessidade de uma profunda transformação na educação brasileira. Assegurava em 2006 que a Reforma Política é condição para essa necessária revolução educacional. Ao mesmo tempo, percebia que o problema da reforma política era sua dependência do Congresso Nacional, em suas sábias palavras, sempre eleito clientelisticamente, que não vai procedê-la sob pena de inviabilizar a reeleição da maior parte deles próprios. Se era isso que restava em 2006… bem… é possível dizer que o nível de escolaridade realmente aumentou e o acesso à educação foi ampliado de forma significativa, incluindo às universidades que como bem sabemos teve amplo crescimento apenas com Lula… em termos de reforma política, ou ainda qualidade do político… nosso Congresso atual é o reflexo de todo o acúmulo de poeira dessa história que Jaguaribe contou…
As ideias e opiniões de Jaguaribe não necessariamente tiveram aceitação consensual. Mas isso não as invalida, pelo contrário, o torna mais atrativo. Com a idade avançada, mas ainda lúcido, dificilmente é visto em debate público. Suas palavras da boca foram abafadas pelo processo natural do tempo, não as escritas.
Mais atual… parece ser impossível.
[ii]Há duas versões. Uma se chama “Brasil: o que fazer?” publicado na coletânea de 2008 da Funag como sendo de 2007. O outro é “Brasil: o que resta fazer?” publicado em setembro de 2006 nos Cadernos Adenauer. Menor, este último, primeiro cronologicamente, é provavelmente base da reflexão que Jaguaribe amplia posteriormente.
Obs.: O título é copia de outra produção, por isso as aspas… alguém lembra? rsss
Referências:
DHBB. Helio Jaguaribe. Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro pós 1930. 2ª ed. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2001. Disponível em: http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/AEraVargas2/biografias/helio_jaguaribe
GRANATO, Leonardo. A autonomia como vetor da ação externa e da integração na América do Sul: postulações teóricas. Oikos, Volume 13, n. 2, pp. 78-90, 2014.
JAGUARIBE, Helio. Brasil: o que resta fazer?. in: Brasil o que resta fazer? Cadernos Adenauer Ano VII, nº 3, 2006.
_______. (1987) Autonomia e hegemonia no sistema imperial americano. in: _______. Brasil, mundo e homem na atualidade. Estudos diversos. Brasília: Funag, 2008.
_______. (1958) O nacionalismo na atualidade brasileira. Brasília: Funag, 2013.