O Poder Ocidental, o Fundamentalismo Religioso e as Raízes dos Ataques de Paris

Por Ricardo Zortéa Vieira

No dia 13 de novembro último, terroristas islâmicos atacaram Paris. Apesar do ineditismo da violência islamita em solo francês, do ponto de vista ocidental o mais assustador nos ataques não foi propriamente a sua letalidade, mas a sua autoria: O Estado Islâmico, tido como uma ameaça crítica pelo seu fundamentalismo religioso, e, sobretudo, pelo seu caráter territorial e expansionista. O ISIS nega a noção ocidental de fronteiras e soberanias nacionais, ao invés disso adotando uma visão pré-vestfaliana de autoridade universal baseada em princípios éticos e religiosos. De fato, ainda que o Estado Islâmico controle hoje um território contíguo no Iraque e Síria, ele já é o detentor da lealdade de organizações territoriais na Líbia e Iêmen, e de outras organizações islamitas na Península do Sinai e na Nigéria. O expansionismo do ISIS parece assim reviver o medo de um retorno de um grande califado islâmico pré-moderno e de um confronto de civilizações. Entretanto, apesar dos medos que se afloram após os atentados de Paris, o ISIS não é propriamente o despertar da “alma islâmica” submersa pela hegemonia do Ocidente e das crenças modernas, mas a expansão de uma ideologia fundamentalista religiosa que somente pode ter lugar devido a situação criada por um século de projeção do poder ocidental no Oriente Médio.
A ideologia do ISIS é o Wahhabismo, uma interpretação fundamentalista do islamismo sunita primeiro formulada por Muhammad ibn Abd al-Wahhab, um estudioso nascido no pequeno vilarejo de Uyayna, no centro da península Arábica, em 1708. O Wahhabismo deixou de ser uma pequena seita marginal e adquiriu importância quando Al-Wahhab se aliou ao chefe tribal Muhammad ibn Saud, que passou a utilizar a ideologia e a sua noção de Jihad, ou guerra santa, para justificar e energizar o seu movimento expansivo na Península Arábica, que daria origem ao Primeiro Estado Saudita. Entre 1811 e 1818 os sauditas e seus aliados wahhabis atacaram as possessões do Império Otomano na Síria, Iraque e sobretudo no Hejaz, região oeste da Península Arábica onde se encontram as cidades sagradas de Meca e Medina. Nesse conflito, contudo, os sauditas foram derrotados pelos Otomanos e seus aliados Egípcios, tiveram seu Estado destruído, e assim a influência da sua versão radical do Islã ficou restrita às regiões periféricas da península por todo o restante do século XIX.

A situação começou a mudar na I Guerra Mundial, quando o Reino Unido resolveu se aliar às tribos árabes contra os turcos otomanos. Após o conflito, Londres e Paris se encarregaram de destruir o Império Otomano, removendo o maior obstáculo para que os Sauds e seus aliados Wahhabis finalmente lograssem a conquista do Hejaz e assim a guarita das cidades sagradas de Meca e Medina. Logo depois, nos anos 1920 e 1930, os Sauds, com ajuda britânica e americana, e se apoiando na milícia Wahhabi Ikhwan, estruturaram o seu Segundo Estado, a Arábia Saudita que conhecemos hoje. No processo, os Al-Sauds acabaram por entrar em conflito com alguns elementos dos Ikhwan que haviam se convertido em ameaça à aliança com Londres ao atacarem possessões inglesas no Iraque. Entretanto, ao invés de eliminar a milícia, o rei Abdulaziz Ibn Saud a transformou na atual Guarda Nacional Saudita. Além disso, os wahhabis receberam em troca do apoio aos Sauds o controle sobre as instituições legais e religiosas do novo Estado saudita. Esse acordo dura até hoje, com os descendentes de Muhammad ibn Abd al-Wahhab, a família Al-Shaykh, detendo o cargo de Grande Mufti, a maior autoridade religiosa do país, e tendo status somente inferior ao próprio clã dos Saud.

No pós-II Guerra, a Arábia Saudita passou a desempenhar o papel de aliada chave dos EUA no Oriente Médio, sendo fundamental para a contenção da influência soviética na região, para a reestruturação dos setores de energia e finança global nos anos 1970, e para o combate de adversários locais do poder americano. Em todas essas empreitadas, a aliança Saudi-americana em vários momentos se opôs e ativamente buscou neutralizar e destruir as várias forças progressistas, moderadas ou laicas que apareciam na região. Por um lado, esses ataques aos governos progressistas foram motivados porque eles eram aliados efetivos ou potenciais da União Soviética. Por outro, porque contavam com programas nacionalistas para garantir sua base de apoio doméstica e que assim violavam os interesses das empresas ocidentais, ou porque demonstravam ter maior capacidade de acumular e gerir recursos bélicos e econômicos, se convertendo assim em potenciais “hegemons regionais” sob a ótica de Washington.

O padrão de boicote e destruição sistemática de governos progressistas no Oriente Médio pelos EUA e Arábia Saudita acabou abrindo caminho para a expansão do fundamentalismo religioso direta e indiretamente. Diretamente, a Arábia Saudita patrocinou e financiou diversos movimentos fundamentalistas Wahhabis, como a própria Al-Qaeda do milionário saudita Osama Bin-Laden. De fato, a estratégia saudita, pelo menos desde os anos 1970, foi utilizar o Wahhabismo como uma espécie de escudo ideológico contra a influência de adversários geopolíticos extra-regionais, como a URSS, e regionais, sobretudo o Irã. Indiretamente, o boicote americano com apoio saudita aos governos progressistas com forte base popular levou a sua deslegitimação e substituição por governos islamitas. Esse processo é bem ilustrado pelo caso iraniano: Em 1953, EUA e Reino Unido derrubaram na Operação Ajax o governo progressista de Mohammed Mossadegh, o substituindo pelo regime do Xá Mohammed Reza Pahlavi. Em 1979, o regime ditatorial e brutalmente repressivo do Xá, tendo sua base social completamente erodida, foi rapidamente derrubado pela Revolução Islâmica do Aiatolá Khomeini.

Nos últimos 25, as ações da aliança Saudi-americana, e seus efeitos, tem se intensificado. Assim, os EUA e Arábia Saudita derrotaram militarmente o Iraque de Saddam Hussein na Guerra do Golfo. Depois, Washington submeteu Bagdá a 12 anos de embargo econômico, para finalmente invadir o país e destruir o regime do Partido Baath em 2003. A Invasão do Iraque, além de eliminar um dos últimos dos regimes laicos e modernizadores do Oriente Médio, abriu um novo campo para a disputa geopolítica entre as duas potências islâmicas da região, o Irã e a Arábia Saudita. Nessa disputa, o Irã armou e apoiou as milícias xiitas do Sul do Iraque, e finalmente logrou alçar o político xiita Nouri Al-Maliki ao poder em Bagdá.

A ascensão de Maliki, juntamente com as alianças com Bashar al-Assad na Síria e com o Hizbollah no Líbano, gerou uma situação de relativa proeminência regional iraniana sobre os sauditas. A Arábia Saudita buscou recuperar o terreno perdido, então, reforçando sua tradicional estratégia do “escudo ideológico” wahhabi, e apoiando a disseminação dessa ideologia na síria de Bashar Al-Assad e no Norte do Iraque, onde uma população sunita se encontrava marginalizada com a destituição do Partido Baath e a ascensão do governo xiita de Maliki. O ISIS é um resultado dessas iniciativas de “guerra ideológica” colocadas em prática pela Arábia Saudita, iniciativas que por sua vez são apenas um último capítulo na estratégia de longo prazo dos sauditas de buscar segurança, interna e externa, na ideologia Wahhabi e na neutralização dos governos moderados e nacionalistas no Oriente Médio, em estreita colaboração com as potências ocidentais e os EUA.

Dadas as origens de longo prazo do ISIS e da atual situação no Oriente Médio, fica claro que uma solução somente poderia advir de uma ruptura com o padrão de intervenção ocidental na região. Em outras palavras, os EUA e as potências ocidentais precisam de algum modo romper com a sua tradição de longa data de se aliar com regimes ultraconservadores dentro do Oriente Médio. Uma ruptura desse tipo, entretanto, dificilmente viria de Washington. Isso porque os EUA temem hoje, como sempre temeram no passado, que governos modernizadores possam se converter em potências regionais que limitem a projeção e o acesso do poder americano em termos locais, e se aliem a Grandes Potências rivais dos EUA, como a Rússia e a China, ao nível global. Em resumo, do ponto de vista americano, segue sendo mais seguro apoiar regimes tradicionais altamente dependentes, em tecnologia, mercados, financiamento e assistência militar, como o são a Arábia Saudita e os emirados do Golfo, apesar dos efeitos colaterais que essa política acarreta, entre eles o próprio terrorismo islâmico.

Apesar da posição contrária dos EUA, somente se um dos países da região lograr adquirir os meios de poder necessários para regular ou eliminar as projeções de poder extra-regionais que a atual dinâmica de disputas geopolíticas entre os países do Oriente Médio e entre as potências globais, e, portanto, os estímulos ao radicalismo religioso, cessarão. Somente assim o combustível representado pela destruição da guerra e da disseminação do discurso fundamentalista pelos aliados do ocidente na região vai ser cortado. O surgimento dessa potência regional, capaz de dissuadir ou pelo menos negociar em uma posição de força perante as Grandes Potências, se algum dia se materializar, dependerá de um processo longo (que já pode ter se iniciado), e das disputas pelo poder entre as próprias Grandes Potências. De qualquer forma, está claro que é a redução, e não a ampliação, do poder americano ou das potências ocidentais sobre a região a única chance de um Oriente Médio livre do barbarismo fundamentalista.

Diálogos Internacionais

Divulgação científica de Relações Internacionais, Defesa e Economia Política Internacional ISSN 2596 2353