“Integra” em domicílio
Por Bernardo Salgado Rodrigues
Em 2001, um dos maiores defensores da integração latino-americana, Hugo Chavez, discorria sobre o tema num discurso no Encuentro Latinoamericano y Caribeño sobre el Diálogo de Civilizaciones:
“en América Latina tenemos la ecuación invertida y es así porque los mecanismos de integración más bien han funcionado como mecanismos de desintegración; han sido y fueron elaborados y han sido hechos basándose en el principio o el paradigma del neoliberalismo, del materialismo, del capitalismo salvaje, e ese no es el camino. Necesitamos colocar en América Latina la política, la geopolítica, la ética y la voluntad de los pueblos al frente, esa es la caballería de la integración.” (BARRIOS, 2014, p.203)
Numa visão estratégica, a participação no mundo globalizado deve ser realizada de forma soberana. Uma vez que os países latino-americanos ainda se inserem no sistema mundo de forma periférica e dependente, a integração regional seria um elemento a fortalecer esse papel. Assim, um projeto de integração autônomo congrega a capacidade da própria tomada de decisões, insubordinada internacionalmente e buscando superar os “quinhentos anos de periferia”, como qualifica Guimarães (2002), a fim de realizar-se o enfrentamento da desigualdade/desconstrução das assimetrias regionais, a construção de uma identidade regional, autodeterminação entre os povos/nações e a ampliação da participação de componentes sociais.
A integração regional sul-americana, principalmente no início do século XXI, vem buscando qualificar os processos não somente em termos econômico-comerciais, tentando agregar – ainda que de modo pouco enfático – a integração dos aparelhos produtivos, da infraestrutura energética e dos transportes e de uma nova estrutura financeira, realocando o debate diplomático-político no centro de estratégias conjuntas de longo prazo. Assim, surge a Unasul e seus Conselhos Setoriais, que abrangem temáticas referentes à defesa, educação, saúde, ciência e tecnologia, cultura e até o combate às drogas, buscando um modelo de integração que possibilite oportunidades iguais a todos os países latino-americanos, para que as relações centro-periferia não se reproduzam no interior da região, uma periferia dentro da periferia, uma “integração por despossessão” ou, utilizando os termos de Marini, um subimperalismo (brasileiro) na região.
Entretanto, tais iniciativas, apesar de consistirem num marco histórico nos projetos de integração regional sul e latino-americana, possuem um papel pouco assertivo na sociedade civil, nos movimentos sociais e nas populações de baixa renda na região que, historicamente, consistem parcela majoritária. Com a hipótese de uma construção social da integração, busca-se o exercício da cidadania e a qualidade de vida de grupos sociais marginalizados, com a criação de redes e estruturas que assegurem políticas públicas efetivas. Como afirma Vieira (apud WANDERLEY, 2013, p.738), “o processo de integração […], ao contemplar basicamente aspectos econômicos e comerciais, relegando a um segundo plano as políticas sociais, traz à tona o perigo de ser mais um processo de exclusão social.” Assim, “a opção pelo desenvolvimento inclusivo e sustentável pode constituir-se na grande alavanca de um salto da América do Sul para formas inovadoras de gestão econômica e social” (DOWBOR, 2013, p.684), recorrendo ainda a “vínculos con las ideas originales sobre la unidad, autonomía y prosperidad de la región de los primeros pensadores de la integración regional.” (VALENCIA; RUVALCABA, 2013, p.110)
Por que não engendrar um auto-conhecimento de nós mesmo, como latino-americanos, ao invés de realizar uma perspectiva eurocêntrica de conhecimento que opera como um espelho que distorce o que reflete, como afirma Quijano (2005. p.227-280)? Por que não modificar a estrutura de ensino das escolas desde o ciclo básico, em que a história latino-americana é parcialmente ou totalmente desconhecida? Por que não facilitar o intercâmbio de estudantes dentro da América Latina, ou como propõe Ennio Candotti, criar um “cerebroduto”, fazendo circular os jovens estudantes da América Latina, compartindo visões de mundo e pensamentos locais em escala global? Por que não disseminar a cultura latino-americana nos meios de comunicação tradicionais e cibernéticos com acesso a parcela majoritária da população? Por que não ensejar um turismo intra-regional, com diminuição de custos de transporte, hospedagem e acesso aos pontos turísticos, históricos e culturais para residentes locais? Por que não viabilizar um projeto de integração público e democrático, com participação plena da sociedade civil, não somente dos centros especializados e das universidades, mas dos movimentos sociais e da sociedade em si? Enfim, por que não realizar um projeto de integração regional latino-americana de abajo, em que a população sinta os logros e os benefícios diretos deste processo; uma integração com participação genuinamente social, de base, rumo a uma integração soberana, emancipadora e popular?
Urge a necessidade de um pensamento crítico integracionista que constate que os problemas do processo de integração não são somente de cunho político-econômicos, mas também histórico-estruturais, de coesão dos países, que abarcam problemas de identidade e até de disputas territoriais. Logo, não há possibilidade de benefícios se não houver um elemento essencial de estratégia de governo que vá além dos governos, na educação, nas escolas, nas ruas. Neste sentido, pondera-se a discussão da criação de uma Unidade de Participação Popular, no qual a integração não pode ser feita somente no âmbito estatal, mas também no âmbito de seus povos, que devem agir como atores, criando uma vontade popular de integração no qual o cidadão comum precisa sentir que a integração é benéfica para ele ao “bater em sua porta”.
Aos latino-americanos, tem-se a possibilidade de agregar à nomenclatura integração da América Latina o termo integração para a América Latina, uma vez que se pleiteia a solução da equação: integração de quem e para quem? Outra integração requer um ator principal distinto; entretanto, paradoxalmente, ainda dependente do fortalecimento dos Estados nacionais. Assim, o direcionamento rumo a uma reestruturação da integração deve conceber um pensamento criativo e crítico, que rompa fronteiras epistemológicas e realize uma descolonização do pensamento em termos geopolíticos, fortalecendo os vínculos da construção de uma comunidade latino-americana com auto-reconhecimento, uma integração dos povos para os povos.
Referências Bibliográficas
BARRIOS, Miguel Ángel. Hugo Chávez: pensamiento histórico y geopolítico. Buenos Aires: Biblos, 2014.
DOWBOR, Ladislau. Articulações latino-americanas: novos desafios. In: GADELHA, Regina Maria A. F.. Mercosul a Unasul – avanços do processo de integração. São Paulo: Educ, 2013. p. 683-726
GUIMARÃES, Samuel Pinheiro. Quinhentos anos de periferia. 4. ed. Porto Alegre/Rio de Janeiro: Ed. da UFRGS/Contraponto, 2002
QUIJANO, Anibal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Edgardo Lander (org). Colección Sur Sur, CLACSO, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina. setembro 2005.
VALENCIA, Alberto Rocha; RUVALCABA, Daniel Efrén Morales. Desafíos en la construcción de la Unión de Naciones de Suramérica. In: GADELHA, Regina Maria A. F. (Org.). Mercosul a Unasul – avanços do processo de integração. São Paulo: Educ, 2013. p. 69-117
WANDERLEY, Luiz Eduardo W.. Integração regional sul-americana e na América Latina: projetos viáveis? In: GADELHA, Regina Maria A. F. Mercosul a Unasul – avanços do processo de integração. São Paulo: Educ, 2013. p. 727-756