Tiranos
Por Suellen Lannes
“E lembre-se, com grandes poderes
vem grandes responsabilidades…“
Sheldon Cooper parafraseando Ben Parker
No dia 16 de março estreou na Globo uma séria intitulada “Tirano – Poder sem limites”. Já tinha ouvido falar nessa série. Esperava que nos Estados Unidos fizessem esse tipo de produção, mas me surpreendeu em ver isso na Globo, a qual não é muito adepta em exibir séries com temáticas árabe, a não ser quando propaga velhos estereótipos do árabe opressor e é exatamente isso que essa produção faz.
Do inglês “Tyrant”, a série é transmitida pelo canal FX e começou a ser exibida em meados de 2014. Em linhas gerais, ela retrata uma família típica estadunidense, formada por um casal heterossexual com um casal de filhos. A diferença dessa família margarina está no pai imigrante, Bassam, que se tornou pediatra nos Estados Unidos e é filho de um ditador de um distante país árabe. Em um belo dia ele recebe o convite de comparecer no casamento de seu sobrinho e terá que voltar, depois de 20 anos no exílio. Ao chegar no país ele se encontra envolto nas tramas familiares e políticas que marcaram a sua infância.
Já no primeiro capítulo é notório a distinção entre o “bom” estadunidense e o “mau” árabe. Bassam é fortemente americanizado, sofre constantes “choques culturais” e é um personagem muito bom, que desde o início toma atitudes marcadas pelo perdão e, principalmente, pelo uso de vocábulos como liberdade, direitos humanos e diplomacia. Por outro lado, seus familiares árabes se mostram ardilosos, capazes de atitudes cruéis para atingir os seus objetivos.
O fato de estar há mais de 20 anos nos Estados Unidos moldou esse espírito bondoso. Uma cena ilustra bem esse contexto. Ele está relembrando a sua infância quando lembra de um episódio onde o seu pai está matando pessoas. Em um determinado momento o pai vai atirar em um homem ajoelhado e decidi chamar o seu filho mais velho, Jamal, para fazê-lo, no caso o irmão de Bassam. Ele se recusa a atirar, não consegue fazer tal ação e começa a chorar. Bassam, então, toma o seu lugar e atira no homem. Hoje, depois de 20 anos nos Estados Unidos, ele se martiriza por esse ato.
Somado a essa áurea de bondade está a construção do “herói americano”. Em diversas oportunidades, sua atuação em prol das pessoas o levará a atitudes de heroísmo. Já no segundo capítulo veremos esse herói em ação. Sua sobrinha é sequestrada por um grupo de crianças e mantida prisioneira em uma espécie de mercearia. Um cerco é formado e o comandante da ação (representante do governo do pai de Bassam) ameaça matar as crianças. O árabe nacionalizado norte-americano chega ao local e, mesmo contra a vontade dos militares, entra na mercearia e negocia com as crianças, convencendo-as de libertar a sua sobrinha. Ele sai abraçado com ela e os três garotos são jogados no chão e algemados. Enquanto Bassam conversa com o comandante, pedindo para as crianças serem soltas, o malvado árabe já tinha mandado matar as crianças.
Uma das principais armas de soft power dos Estados Unidos é Hollywood. Por meio dos seus filmes e séries, eles propagam seus valores e ideais conquistando adeptos, ao redor do mundo, ao seu american way of life. Além disso, as produções hollywoodianas propagam a concepção de mundo que validam as atitudes das elites governamentais estadunidenses, por exemplo, enfatizam a ideia de liberdade em detrimento de igualdade. Esse contexto perpassa toda a série “Tirano”. Além de propagar esses preconceitos, a produção estadunidense não se preocupa em apresentar os problemas que varrem o Oriente Médio, ficando presa às dificuldades familiares, ato que simboliza o individualismo e a atitude alheia ao cenário internacional que caracteriza a sociedade estadunidense.
É esperado de Hollywood, frente ao contexto atual, marcado pelo avanço de tropas militares em países do Oriente Médio, que produções desse tipo sejam feitas. O grande problema é quando emissoras de outros países passam a transmitir, somente, esse tipo de conteúdo.
Não sou telespectadora da rede Globo, mas sou telespectadora de tudo que tenha conteúdo árabe. Não me lembro de muitas novelas e/ou séries transmitidas pela Globo que tenham uma temática árabe. Me lembro de “O Clone” e agora essa série da Fox, ou seja, a globo não é conhecida por produzir ou reproduzir produções com temáticas árabes e as poucas que fazem reproduzem os estereótipos propagados por Hollywood.
A série Tirano segue esse desserviço. A emissora poderia transmitir essa produção se, também, transmitissem produções preocupadas com os estereótipos propagados e com a realidade árabe. Filmes como “Lemon Tree” não são exibidos nas grades globais. Quando a emissora exclui esse tipo de produção, ela está, claramente, enviesando para um lado, ajudando a propagar o preconceito contra o árabe e a validar as atitudes intervencionistas das elites governamentais estadunidenses. Era preferível não mostrar esse tipo de produção e apostar em algum outro besteirol estadunidense. Falando nisso, me lembro de uma entrevista da sambista Beth Carvalho, na própria Globo. Ela falou que não era contra a proliferação de música estadunidense no Brasil, mas não gostava do fato dos brasileiros só escutarem o que havia de ruim nos Estados Unidos. O que era bom na cultura estadunidense, seus grandes músicos, não chegava no Brasil. Da mesma forma, chega ao Brasil o que há de pior das produções estadunidenses, o que há de mais preconceituoso e tendencioso e a Globo ajuda a propagar. De fato, deveria haver nessa emissora mais responsabilidade frente aos seus grandes poderes.