No palco das Relações Internacionais a Medicina se encontra com as Ciências Sociais
Uma das funções das organizações internacionais é estabelecer normas e regras que facilitarão a relação entre os Estados e ajudarão na harmonização e pacificação do cenário internacional. No que tange a saúde esse processo de normatização será constantemente modificado pela própria forma de se pensar a doença e a saúde e pela importância que outras vertentes de pensamento, em especial as Ciências Sociais, passarão a ter na Medicina. Com a interligação crescente dos Estados a aproximação desses dois ramos de conhecimento proporcionarão mudanças importantes na forma de se pensar a saúde internacional e a importância dos Estados na promoção da saúde tanto interna como externamente.
Considerado o “pai da medicina”, Hipócrates (460 a 377 a.c.) vai representar uma época caracterizada pelo rompimento da doença com concepções mágico-religiosas e explicações mais racionais são buscadas para se compreender as moléstias que acometiam o ser humano. Nesse contexto, as explicações para saúde e doença se encontravam em processos naturais. Em seu livro “Ares, águas e lugares”, Hipócrates vai afirmar que existe dois tipos de doenças, as endêmicas e as epidêmicas. A primeira se caracterizará por ser recorrente em uma comunidade, enquanto a segunda tem como característica principal o seu surgimento repentino. Em suas observações, ele notará que a causa dessas doenças estaria relacionada ao clima, ao solo, à água, ao modo de vida e a nutrição. Desse modo ele compreendia a saúde como homeostase, ou seja, resultante de um equilíbrio entre o ser humano e seu meio [BATISTELLA, 2007, p. 32].
Essas ideias serão estendidas para o Império Romano. Com relação ao diagnóstico e trato das doenças pouca mudança será feita. A principal mudança será na questão sanitária. Com a instalação de aquedutos, o incentivo da prática de banhos, por meio dos banhos públicos e a construção de grandes redes de esgoto, pode-se notar melhorias sensíveis na saúde da população, tornando-a menos vulneráveis a epidemias.
Com a ascensão do período medieval, essas estruturas sanitárias foram sendo corroídas e o pensamento racional da medicina foi cedendo lugar ao misticismo. A ligação entre doença e pecado inibiu qualquer desenvolvimento científico [1]. Todavia, é no interior da Igreja, em especial nos monastérios que irão surgir as primeiras revoluções no que tange a questão sanitária. Além de ter construído os primeiros hospitais, nos monastérios se desenvolveu as primeiras universidades e alguns religiosos, como Girolamo Fracastoro, vão elaborar teorias sobre peculiaridades nas transmissões das doenças, futuramente, suas ideias ajudarão na grande revolução que acontecerá na medicina, no século XIX.
O problema é que esse contexto ficava recluso ao ambiente monástico, a vida fora dos muros monásticos continuava a ser marcada pelas epidemias e condições insalubres. A mudança vai começar com o Renascimento que irá impulsionar fortemente a pesquisa e a revalorização do saber técnico e racional. A constante racionalização vai relacionar diretamente a doença a fatores biológicos, ou seja, o primordial era descobrir o agente fisiológico causador da doença, apesar de muitas vezes não ser esse o agente ocasionador da enfermidade.
Com o surgimento das Ciências Sociais, no século XIX, a questão social passa a ganhar destaque e a sociedade industrial e “moderna” passa a ser colocada em xeque, assim como a medicina.
Ao lado das condições objetivas de existência, o desenvolvimento teórico das ciências sociais permitiu, no final do século XVIII, a elaboração de uma teoria social da Medicina. O ambiente, origem de todas as causas de doença, deixa, momentaneamente, de ser natural para revestir-se do social. É nas condições de vida e trabalho do homem que as causa das doenças deverão ser buscadas. [GUTIERREZ, 2001, p. 20].
Esse cenário irá revolucionar a medicina e determinará a forma como relação entre doença e saúde será tratada pelos médicos, governos e, principalmente, pelas instituições internacionais.
No que tange a medicina, ocorre no século XIX a consolidação de uma nova forma de se pensar sobre o que causava uma doença. Até então, era vigente a Teoria Miasmática, de acordo com ela, a causa das doenças encontrava-se no conjunto de odores fétidos resultados da deterioração da matéria orgânica em contato com o solo e os lençóis freáticos. Com o advento do microscópio, pode-se confirmar a existência de microorganismos causadores de enfermidades, dando-se início a bacteriologia e ampliando o espectro de transmissão. Uma nova teoria ganha destaque, a Teoria Microbiana. De acordo com ela, os microorganismos são as causas de inúmeras doenças. Esse pensamento levou ao desenvolvimento de antibióticos e adoção de hábitos de higiene. A prevenção torna-se o basilar da medicina, a qual ganhará uma grande aliada, a vacina [BATISTELLA, 2007, p. 43]
Esse contexto revolucionário vai ter reflexo nas relações internacionais. Em 1833 vai ser criado, no Egito, um Conselho Sanitário com a participação de diversos países. O objetivo desse Conselho era proteger os países europeus, tratar da questão da quarentena e de higiene internacional. Seis anos mais tarde, em Constantinopla, ocorre um encontro entre o Comitê Sanitário otomano e representantes de outros países. O objetivo desse encontro era traçar diretrizes para a questão da quarentena. Em 1851, foi realizada a primeira Conferência Internacional de Saúde, a qual proporcionou a elaboração de diversas normas e um indicativo de construção de um código sanitário internacional “referente à quarentena, à notificação da cólera, da peste e da febre amarela” [VILLA, et.al., 2001, p. 103].
Nesse contexto de cooperação surge, em 1902, a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS). Enquanto um tipo de organização internacional, a OPAS vai contar com 38 Estados-membros e atuará junto aos poderes governamentais, organizações não-governamentais e agências bilaterais e multilaterais com o intuito de estabelecer políticas em conjunto e “promover e coordenar esforços dos países do Hemisfério Ocidental para combater doenças, prolongar a vida e promover a saúde física e mental das pessoas” [CONSTITUIÇÃO DA OPAS, 1947, artigo 1, capítulo1].
Além do ambiente de cooperação, as mudanças no diagnóstico e no tratamento das doenças vão ter reflexos na forma como as organizações internacionais atreladas à saúde vão ser formuladas. Avançando nesse sentido, a fundação da Organização Mundial da Saúde (OMS), em 1946, é um marco. De acordo com a sua Constituição, a saúde é definida como “completo bem-estar físico, mental e social e não somente a ausência da doença ou enfermidade”, ou seja, a saúde não é compreendida somente relacionada a doença e fatores fisiológicos, mas, também, a fatores sociais e econômicos.
O final da Segunda Guerra Mundial marcou o início de uma nova revolução na forma de se chegar a um diagnóstico. Era vigente, até então, explicações unicausais, caracterizada pela adoção de uma única causa para se explicar uma doença. Com a “transição epidemiológica” que os países “desenvolvidos” passam, marcada pela diminuição do número de casos de doenças infecto-parasitárias e o incremento de doenças crônico-degenerativas, fenômeno ocasionado pelas melhorias sanitárias e nos tratamentos, passa a se pensar em um modelo multicausal, marcado pela relação entre agente, ambiente e hospedeiro. Esse modelo sofrerá algumas críticas, principalmente pelo fato de não englobar a influência do curso da história nas doenças.
A medicina não ficou imune ao contexto de contestação social, política e econômica que marcou a década de 1960. Durante essa década foi elaborado o modelo de determinação social da saúde/doença. De acordo com esse modelo, para se compreender a realidade sanitária de um país ou região é necessário levar em consideração aspectos sociais, históricos, econômicos, culturais e biológicos. As especificidades de cada região passam a ser levadas em consideração como ilustrou um seminário realizado pela OPAS em Cuenca (Equador), em 1972, de médicos e cientistas sociais, o qual propôs um modelo alternativo: “centrar-se na análise da mudança, incluir elementos teóricos que permitissem pesquisar a realidade em termos de suas contradições internas, permitir a análise tanto de níveis específicos de realidade como de níveis estruturais e as relações entre ambos” [NUNES, 1992, p.66].
Esse pensamento foi levado para as relações internacionais como demonstrarão as conferências internacionais sobre saúde. Um exemplo vai ser a Primeira Conferência Internacional sobre Promoção de Saúde, que foi realizada na cidade de Ottawa, em 1986. No seu capítulo “defesa da causa”, percebe a relação direta entre promoção de saúde e aspectos econômicos e sociais:
A saúde é o maior recurso para o desenvolvimento social, econômico e pessoal, assim como uma importante dimensão da qualidade de vida. Fatores políticos, econômicos, sociais, culturais, ambientais, comportamentais e biológicos podem tanto favorecer como prejudicar a saúde. As ações de promoção da saúde objetivam, através da defesa da saúde, fazer com que as condições descritas sejam cada vez mais favoráveis. [CARTA DE OTTAWA, 1986, defesa da causa]
No âmbito da América Latina, em 1992, foi realizada a Conferência Internacional de Promoção da Saúde, onde foi proclamada a Carta de Santafé de Bogotá. Esta Conferência tratou da promoção da saúde na América Latina e afirma que esta busca a criação de condições que garantam o bem-estar geral como propósito fundamental do desenvolvimento, assumindo a relação mútua entre saúde e desenvolvimento. (…) A situação de iniquidade da saúde nos países da América Latina reitera a necessidade de se optar por novas alternativas na ação da saúde pública, orientadas a combater o sofrimento causado pelas enfermidades do atraso e pobreza, ao que se sobrepõe os efeitos colaterais trazidos pelas enfermidades da urbanização e industrialização [DECLARAÇÃO DE SANTAFÉ DE BOGOTÁ, 1992, p.1].
Todos esses aprimoramentos na forma de se pensar a doença e a saúde fizeram com que hoje a promoção da saúde não seja alçada, somente, de médicos, mas, também, de sociólogos, cientistas políticos, economistas etc. Governos passam a ter responsabilidade pela garantia e promoção da saúde pública e as instituições internacionais estabelecem normas e incentivam um modelo igualitário de saúde para todos.
[1] Nesse contexto, o desenvolvimento da medicina só continuou no mundo oriental, em especial, no Império Árabe-Islâmico, onde os nomes de Avicena e Averróes se destacam.
BATISTELLA, Carlos Eduardo Colpo. Saúde, Doença e Cuidado: complexidade teórica e necessidade histórica. In: Angélica Ferreira Fonseca; Anamaria D’Andrea Corbo. (Org.). O Território e o Processo Saúde-Doença. Rio de Janeiro: EPSJV/Fiocruz, 2007, p. 25-49.
CARTA DE OTTAWA, 1986. Extraído de: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/carta_ottawa.pdf
CONSTITUIÇÃO DA ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE (OMS), 1946: http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/OMS-Organiza%C3%A7%C3%A3o-Mundial-da-Sa%C3%BAde/constituicao-da-organizacao-mundial-da-saude-omswho.html
DECLARAÇÃO DE SANTAFÉ DE BOGOTÁ, 1992. Extraído de: http://www.ergonomianotrabalho.com.br/artigos/Santafe.pdf
GUTIERREZ, P. R. & OBERDIEK, H. I. Concepções sobre a saúde e a doença. In: ANDRADE, S. M. de; SOARES, D. A. & CORDONI JUNIOR, L. (Orgs.) Bases da Saúde Coletiva. Londrina: UEL, 2001.
NUNES, Everardo Duarte. As Ciências Sociais em Saúde: reflexões sobre as origens e a construção de um campo de conhecimento. Saúde Soc., 1992, vol.1, no.1, p. 59-84.
VILLA TCS, WEILLER TH, PALHA PF, MISHIMA SM, ANGERAMI ELS, SÁ LD. Saúde internacional: alguns aspectos conceituais contemporâneos. In: Latino-am Enfermagem, 2001, maio; 9(3):101-5.