Debate Neo-Neo, o Golpe em Myanmar e a atuação da Organização das Nações Unidas (ONU)

Volume 8 | Número 81 | Mai. 2021

Por: Giovanna Soares Fontes

Durante os anos da Guerra Fria, o tema de “segurança internacional” foi o enfoque central das Relações Internacionais (RI), mas, com o desaparecimento desse conflito no final da década de 1980 e início da década de 1990, o enfoque desse campo de pesquisa mudou para a Economia. No entanto, os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 mudaram novamente as percepções, e não se pode restringir essa nova realidade somente aos Estados Unidos (RUDZIT, 2006, p.297).
Mas, afinal, o que é “segurança”? Segundo Marco Cepik (2018), “segurança” é “uma condição relativa de proteção na qual se é capaz de neutralizar ameaças discerníveis [identificáveis] contra a existência de alguém ou de alguma coisa” – ou seja, trata-se da necessidade de proteger, por vários meios, “informações, sistemas, instalações, comunicações, pessoal, equipamentos ou operações”.
Até os anos 1970, quando a bipolaridade da Guerra Fria ainda dominava o mundo, os estudiosos de Segurança Internacional limitavam o conceito de Segurança para um lado estatal e unicamente militar e nuclear. Com o afrouxamento da tensão desse conflito, e a consequente vitória capitalista, o Sistema Internacional sofreu uma série de mudanças. Esses novos processos resultaram em uma nova agenda de Segurança, a qual passou a propor novas temáticas e atores. Segundo Barry Buzan (1990), essa ampliação implicou em cinco setores aos quais a Segurança Internacional estaria submetida no novo momento: militar, político, econômico, social e ambiental.
Nesse sentido, esse artigo tem como objetivo investigar um tema de segurança, que será o Golpe de Estado em Myanmar e analisar a atuação da Organização das Nações Unidas (ONU) frente a esse golpe militar e político. No dia 1º de fevereiro, os militares derrubaram o frágil governo democrático de Myanmar em um golpe de Estado, quando prenderam líderes civis, fecharam a internet e cancelaram voos. O golpe devolve o país ao pleno regime militar depois de uma curta experiência de quase democracia que começou em 2011, quando os militares, que estavam no poder desde 1962, implementaram eleições parlamentares e outras reformas. Os militares se recusaram a aceitar os resultados da votação, que foi amplamente considerada um referendo sobre a popularidade de Aung San Suu Kyi, chefe da LND, que foi a líder civil de fato do país desde que assumiu o cargo, em 2015.
No entanto, dentro desse contexto do Golpe de Myanmar, existe algo que incomoda: a (não) atuação da Organização das Nações Unidas (ONU). Nascida nos escombros da 2º Guerra Mundial, em 1945, representando as aspirações da humanidade por paz e segurança, a ONU permanece hoje como a maior plataforma de discussão de temas internacionais e a instituição com maior legitimidade para resolver conflitos entre nações e dentro delas. Contudo, não está conseguindo atuar de forma eficaz frente a esse conflito e, consequentemente, nos fazendo questionar: qual a verdadeira eficácia dessa instituição no mundo de hoje?
Essa é a pergunta que tentaremos responder, fazendo uma análise com base na teoria neorrealista e neoliberal. Usaremos a obra “Theory of International Politics”, do autor Kenneth Waltz, publicada em 1979 e considerada o manifesto da teoria neorrealista das relações internacionais. No ano de publicação, corria a Guerra Fria e Waltz identificou semelhanças no comportamento das novas grandes potências – Estados Unidos e União Soviética. Waltz contribuiu decisivamente para o estudo das relações internacionais, simplificando a complexidade das interações entre os estados. 
Também usaremos o pensamento de John Mearsheimer, importante cientista político e teórico realista das relações internacionais norte-americano, atualmente professor da Universidade de Chicago. Abordaremos suas ideias, influenciadas por Waltz, do artigo “The False Promise of International Institutions”, publicado na década de 1990, no contexto pós-Guerra Fria, no qual o teórico traz para o debate as críticas às teorias institucionalistas e a (in)eficácia das instituições internacionais. Para completar, analisaremos as ideias de Keohane e Martin no artigo feito em resposta à Mearsheimer, “The Promise of Institutionalist Theory”, publicado em 1995. Nele, os autores avaliam positivamente a importância das instituições internacionais para a mudança de comportamento dos Estados.
Dessa forma, o desenvolvimento do artigo será dividido em: exposição da história de Myanmar até chegar no Golpe de Estado, explicação da corrente neorrealista e neoliberal e dos pensamentos de Kenneth Waltz, John Mearsheimer, Keohane e Martin e uma análise crítica de uma das instituições internacionais mais importantes da contemporaneidade (já citada anteriormente): a Organização das Nações Unidas (ONU). Por fim, fechamos a resenha retomando os conceitos e argumentos já apresentados no desenvolvimento.

A História de Myanmar até os dias atuais
No dia 1º de fevereiro de 2021, Myanmar sofreu um golpe de Estado após a vitória do partido Liga Nacional pela Democracia (NLD, na sigla em inglês) nas eleições gerais de 2020. Os militares não reconheceram a legitimidade do pleito e o Exército, conhecido como Tatmadaw, ocupou o Senado e o Parlamento, declarando estado de emergência. Os principais líderes de governo foram detidos, entre eles Aung San Suu Kyi, ganhadora do Prêmio Nobel da Paz que depois teve uma atuação controversa no país. Chama a atenção da comunidade internacional a relação frequente entre Myanmar e o regime militar. 
Myanmar é um país localizado no sul da Ásia e que faz fronteira com a Índia, Bangladesh, Tailândia, Laos, China e o Oceano Índico. A Inglaterra anexou o território à Índia, sua colônia, em 1824. O domínio inglês durou mais de cem anos e Myanmar só se tornou um país independente em 1948, um ano depois da Índia.O senso de identidade no país é complexo. Segundo o professor Sebastian Alvarado Fuentes (2021), “a exploração colonial fez com que diferentes etnias fossem obrigadas a conviver. Algumas etnias rivais entre si”. O próprio nome “Myanmar” é questionado. Oficialmente, desde a constituição feita durante o regime militar, em 1989, o país se chama República da União de Myanmar. Entretanto, apoiadores de movimentos pró-democracia não reconhecem a autoridade militar e preferem continuar com o nome Birmânia (ou Burma), que era o termo usado durante o período colonial. Na prática, os dois nomes têm a mesma origem etimológica. No Brasil, há ainda adaptações do nome como Mianmá e Mianmar.
Durante os anos seguintes à independência, Myanmar viveu um breve período de ascensão democrática. Porém, em 1962, aconteceu o primeiro golpe militar. O discurso dos militares no momento do golpe era de que o ato buscava apenas beneficiar a população. A afirmação, mesmo não convencendo boa parte do povo, serviu como um motivo aceitável. No entanto, durante a década de 1980, em decorrência da forte crise econômica, cresceu o nível de consciência civil contra a ditadura . Nesse contexto, surge uma protagonista das manifestações contra a ditadura: Aung San Suu Kyi. Nascida em 1945, Suu Kyi acompanhou os momentos de emancipação do país ao lado do pai, Bogyoke Aung San. Fundador das Forças Armadas do país, ele também criou o Partido Comunista da Birmânia e o Partido Socialista da Birmânia. Considerado o grande herói da independência do Myanmar, Aung San, foi assassinado meses antes do fim do processo. Suu Kyi herdou a influência do pai e o seu envolvimento nos movimentos pró-democracia inflamaram a população. 
Por sua postura, ela se tornou um dos maiores símbolos do pacifismo e da luta pela democracia. Neste período, as manifestações cresceram de forma expressiva e a resposta militar foi brutal: milhares de pessoas foram mortas e a crise eclodiu de vez no país. Suu Kyi, então, assumiu o posto de secretária-geral de um novo partido, o Liga Nacional pela Democracia (LDN). Percorrendo o país em comícios, a presença da ativista incomodou os militares e Suu Kyi foi presa em 1989. Sua prisão funcionou como um incentivo para as lutas da população e as manifestações continuaram pressionando o regime militar e Suu Kyi ganhou o Prêmio Nobel da Paz em 1991. No entanto, sua reputação foi manchada por ter cooperado com os militares e defendido com veemência a mortífera campanha contra os rohingya, um grupo étnico minoritário muçulmano. Em 2019, Suu Kyi representou o país em um julgamento no Tribunal Penal Internacional, no qual defendeu Myanmar das acusações de violência étnica.
Como uma tentativa de apaziguar a situação e incentivar o investimento internacional, o governo militar optou por uma abertura política e criou uma nova constituição para o país. Se 25% das cadeiras fossem ocupadas por militares, eles permitiriam eleições para a Assembleia Nacional. De acordo com o professor Fuentes (2021), “essa estratégia era uma forma de manter os militares no poder, mas se ‘disfarçar’ como uma democracia pela visão internacional”. Em 1990, mesmo depois da criação da Assembleia Nacional e da vitória esmagadora da LDN na primeira eleição, Myanmar ainda estava longe de ser uma democracia. Ocupações estrangeiras, guerrilhas, desastres naturais, denúncias de violação dos direitos humanos e crises financeiras traçaram o caminho que culminou no ano de 2010, quando o país finalmente decidiu fazer uma nova eleição para o Poder Legislativo, depois de duas décadas. Em fevereiro do ano seguinte, o general reformado Thein Sein foi eleito presidente e o regime militar, por fim, foi dissolvido.
Em novembro do mesmo ano, Aung San Suu Kyi e outros presos políticos do regime militar receberam anistia e foram libertados. Em 2016, ela assumiu o posto de Conselheira de Estado e se tornou uma das principais figuras da liderança pró-democrática de Myanmar. Ressalta-se aqui, que mesmo com a democracia estabelecida, o texto da constituição concede aos militares amplos e invulgares direitos: está-lhes reservado um quarto dos lugares de deputados no parlamento e cabe ao Chefe do Estado Maior nomear os ministros da Defesa (que concentra todos os serviços de informação), do Interior e das Fronteiras. 
A popularidade da conselheira garantiu a vitória da LDN nas eleições de 2020. Entretanto, os militares iniciaram uma campanha de desinformação pelas redes sociais e começaram a alegar que as eleições de novembro foram fraudulentas mesmo sem provas. Nos últimos meses do ano, os burburinhos de que um novo golpe militar estava se arquitetando ganharam força e, na manhã do dia 1º de fevereiro, as tropas Tatmadaw ocuparam os prédios do Senado e do Parlamento. O discurso militar sobre estar fazendo isso pelo bem da população se repetiu, somado às acusações de fraudes. Os parlamentares que não eram da porção militar foram presos, Suu Kyi foi levada pelos militares, a mídia foi censurada e o acesso às redes sociais passou a ser controlado. 
Os militares rapidamente tomaram o controle da infraestrutura do país, suspendendo a maioria das emissões de televisão e cancelando todos os voos domésticos e internacionais, segundo relatos. O acesso a telefones e à internet foi suspenso nas grandes cidades. O mercado de ações e os bancos comerciais foram fechados, e longas filas se formaram diante de caixas eletrônicos em alguns lugares. Em Yangon, a maior cidade do país e sua antiga capital, os moradores correram para supermercados para armazenar comida e outros suprimentos.
As décadas da antiga ditadura militar e as consequentes crises políticas e financeiras deixaram uma profunda cicatriz em Myanmar e a presença militar não é aceita pela população. Desde o golpe do dia 1º de fevereiro, manifestações diárias têm tomado conta das ruas das principais cidades do país, principalmente Yangon (ou Rangun). E, mesmo em meio à pandemia, reúnem milhares de pessoas. Entre cartazes e camisetas vermelhas (a cor do partido LDN), os manifestantes marcham entoando frases como “Não queremos ditadura. Queremos democracia” e “não compareçam ao trabalho, nossa revolta tem que vencer”. A resposta da junta militar, entretanto, tem sido violenta: balas de borracha são atiradas nos manifestantes, centenas já foram detidos e, no dia 19 de fevereiro, uma jovem de 20 anos acabou morrendo no hospital. Ela havia sido baleada na cabeça durante a repressão militar aos protestos. A resposta brutal não está de acordo com a abordagem adotada pelos manifestantes, que recuperam a posição não-violenta promovida por Suu Kyi. 
O ambiente digital tem sido um dos grandes protagonistas do movimento de desobediência. Assim como ocorreu com a Primavera Árabe, no começo da década passada, as redes sociais têm sido um espaço comum para os militantes, uma plataforma para combinar movimentos e demonstrar a insatisfação social. Os sites oficiais da junta militar sofreram ataques cibernéticos. O grupo Myanmar Hackers declarou a defesa da democracia e da líder Aung San Suu Kyi e tem derrubado páginas e conteúdos considerados como “propaganda militar”. Outro fator das manifestações é a participação jovem, com referências a elementos da cultura pop. Um dos símbolos adotados pelos manifestantes é o gesto usado pela personagem Katniss Everdeen, na saga cinematográfica Jogos Vorazes. Nos filmes, a personagem incita a população a se manifestar de maneira silenciosa. Mais de duas semanas depois do golpe, a população continua indo às ruas protestar pela volta do regime democrático. Dezenas de milhares se reúnem todos os dias nas principais cidades do país.
No dia 17 de fevereiro, uma primeira entrevista coletiva aconteceu desde a tomada do poder. O brigadeiro-general Zaw Min Tun, porta-voz do conselho governante, garantiu que uma nova eleição será feita e os militares entregarão o poder em breve. No entanto, sem uma data definida, o anúncio dos militares de que o estado de emergência duraria um ano faz a população se questionar até quando a ditadura continuará. Além disso, de acordo com tal pronunciamento, Aung San Suu Kyi está viva, “com boa saúde” e em “em um lugar mais seguro”. 
No âmbito internacional, o levante militar provocou uma reação em cadeia de condenação nos países ocidentais. A União Europeia e o Reino Unido não hesitaram em qualificar a ação das Forças Armadas de “golpe”. A Casa Branca, por sua vez, exortou o exército a “reverter suas ações imediatamente” e ameaçou tomar medidas contra os responsáveis. O Ministério das Relações Exteriores do Brasil emitiu uma nota onde diz que acompanha a situação e espera um rápido retorno do país à normalidade democrática e a preservação do estado de direito. Apesar disso, tampouco usou a palavra “golpe”.
Por enquanto, a nova administração do presidente Joe Biden evitou o uso da palavra “golpe”, que obrigaria Washington a adotar uma série de sanções unilaterais. A Casa Branca parece estar mais inclinada a ações consensuais com outros países afins, entre elas as que o Conselho de Segurança possa adotar. A China esclarece que não participou do golpe – uma das principais parceiras econômicas do país.
Em relação à atuação da Organização das Nações Unidas (ONU) frente a esse Golpe de Estado, a instituição afirma que o controle da internet fere “princípios democráticos fundamentais”. No entanto, o sinal digital ainda está sendo frequentemente cortado ou tendo o acesso censurado pelo governo. O aumento da repressão militar – que, segundo ONGs que auxiliam presos políticos, já conta com 400 detidos – também têm chamado a atenção da ONU e uma sessão extraordinária com os 47 Estados membros do Conselho foi solicitada pelo Reino Unido e a União Europeia. Não houve votação, mas um alerta foi feito pedindo o não envio de tropas para Yangon (maior cidade de Myanmar). “No passado, os movimentos de tropas como este antecederam assassinatos, desaparecimentos e detenções em grande escala”, disse o relator das Nações Unidas Tom Andrews em um comunicado em Genebra. “Estou assustado, dada a confluência destes dois fatores: organização de manifestações e envio de tropas. Os militares podem cometer ainda mais crimes contra o povo de Myanmar”, completou Andrews.
Tal atuação ineficaz de uma das organizações mundiais mais importantes do cenário internacional será analisada mais aprofundadamente e detalhadamente em um próximo capítulo, mas desde então, já podemos começar a nos questionar: qual a verdadeira eficácia dessa instituição no mundo de hoje?

O Debate Neo x Neo
Para responder essa pergunta, primeiro precisamos passar pela explicação da corrente neorrealista e neoliberal das relações internacionais, principalmente das ideias de Kenneth Waltz, John Mearsheimer, Keohane e Martin, como já dito anteriormente.
Kenneth Waltz é um dos mais destacados pensadores de Relações Internacionais. Para o teórico, os Estados são os principais atores do sistema internacional e a anarquia desse sistema tem consequências profundas, gerando incerteza e desconfiança entre Estados e incentivando um comportamento egoísta e violento dos mesmos. Waltz notou que os estados estão dependentes das oportunidades e constrangimentos que dispõem consoante o sistema internacional em que tentam sobreviver e estendeu o conceito de anarquia de Hobbes para condição central e inultrapassável das relações entre os estados – a estrutura – da qual as unidades estão em permanente dependência.
Waltz (1979) tentou formular uma teoria sistêmica das Relações Internacionais, ficando reconhecido por ser fundador da corrente de pensamento chamado neo-realismo. O autor tentou explicar o comportamento dos Estados no sistema internacional anárquico. Para Waltz, o ordenamento anárquico é o principal definidor das regularidades no comportamento dos atores internacionais. Em consequência, a análise da anarquia é requisito necessário para o estudo de qualquer evento internacional. Dessa forma, tendo a anarquia do sistema internacional, os Estados são encorajados a maximizar sua própria segurança e buscar em primeiro lugar sua sobrevivência, o que resulta na balança de poder e faz com que o sistema tenda ao equilíbrio e evite a guerra Além disso, o autor é considerado realista defensivo por acreditar que os Estados não procuram expandir‑se em demasia, mas adquirir o poder suficiente para se resguardar de rivais mais agressivos.
John Mearsheimer (1994), teórico também neorrealista e influenciado por Waltz, defende a tese de que as instituições possuem uma mínima influência no sistema internacional e na ação e comportamento dos Estados e que, por isso, estão distantes de cumprir sua promessa de garantir a estabilidade no mundo pós-Guerra Fria. Segundo o autor, apesar das teorias institucionalistas terem uma grande influência na academia e no mundo político, todas possuem defeitos e distorções e possuem sérios problemas com a lógica causal e poucas evidências empíricas.
Nesse sentido, John Mearsheimer (1994) critica a ideia de que as instituições são o caminho para a cooperação e a paz, pois as teorias que trabalham esse pensamento não descrevem o mundo adequadamente. Para realizar tal crítica, se baseia nos cinco princípios do realismo: a capacidade militar ofensiva e a incerteza das intenções dos Estados, objetivo máximo estatal de sobrevivência, o racionalismo estatal e o sistema anárquico. De acordo com o autor, esses princípios levam a três padrões de comportamento: o temor mútuo dos Estados e a busca estatal pela maximização do poder relativo no sistema e pela sobrevivência. Além disso, John Mearsheimer é intitulado de “realista ofensivo” pois acredita que o objetivo do Estado é maximizar seu poder mundial e a busca por hegemonia. 
Em resposta a Mearsheimer, Keohane e Martin (1995), neoliberais institucionalistas, buscam uma definição mais nítida sobre a teoria institucionalista, de forma defendê-la dos erros que o professor Mearsheimer havia previamente publicado em seu artigo e também indicar os equívocos existentes na versão do realismo do mesmo. Os teóricos defendem a teoria institucionalista, afirmando que as instituições internacionais são significativas e capazes de cooperar para a paz internacional e influenciar as ações dos Estados, usando a OTAN e a Comunidade Europeia como exemplo. Segundo os autores, reivindicar demais para as instituições internacionais seria de fato uma “falsa promessa”. No entanto, em um sistema anárquico marcado pelo poder do Estado e por interesses divergentes, as instituições internacionais que operam com base na reciprocidade serão componentes de qualquer paz duradoura. 
Após tudo isso exposto, fica claro que o debate teórico das relações internacionais acompanhou o aumento da complexidade e mudanças do sistema internacional. Nesse contexto, o Neorrealismo e o Neoliberalismo representam uma evolução das teorias realista e idealista-liberal. O primeiro se baseou nas teorias realistas, focando nos Estados como atores unitários e na anarquia do sistema internacional. No entanto, acredito que possui uma falha ao considerar o Estado como um ator coeso e não considerar outras variáveis que podem influenciar a ação dos Estados Já o neoliberalismo considera o Estado como ator central do sistema e a própria anarquia, mas também a relevância das outras variáveis. No entanto, me parece um pouco ilusória a ideia de que as instituições internacionais são promotoras da paz, uma vez que os Estados possuem sim interesses próprios que podem ficar acima da cooperação internacional. 
Tendo isso explicado, passaremos então ao próximo capítulo, no qual analisaremos mais aprofundadamente e detalhadamente a atuação da Organização das Nações Unidas frente ao conflito de Myanmar.
Análise do Papel da ONU no Golpe
Após analisarmos a história de Myanmar até os últimos acontecimentos, as ideias neorrealistas e neoliberais de Kenneth Waltz, John Mearsheimer, Keohane e Martin, iremos para o capítulo chave deste trabalho, no qual investigaremos a atuação da Organização das Nações Unidas (ONU) no Golpe de Myanmar para explorar a verdadeira eficácia dessa instituição no mundo de hoje – questionamento que guia esse artigo. 
Responsável por 170 acordos de paz, a ONU evitou que a Guerra Fria se tornasse um conflito armado entre as duas potências e garantiu que o número de mortos em conflitos diminuísse desde então. Inúmeros tratados internacionais, como o Tratado de Não-Proliferação Nuclear, e agências da organização, como a UNESCO e a UNICEF, contribuem para a manutenção da paz. Sendo assim, nos parece que a teoria neoliberal de Keohane e Martin que diz que as instituições internacionais possuem muito poder e relevância para o sistema internacional e que cooperam para a manutenção da paz está correta. No entanto, apesar dessa atuação honrosa da organização, podemos visualizar também o neorrealismo de Waltz e Mearsheimer quando observamos a inoperância e paralisia da instituição frente a crises, incongruências, guerras e massacres internacionais. Como exemplo, destaca-se a atuação supérflua da ONU frente ao Golpe de Myanmar, que veremos a seguir.
O secretário-geral da ONU, António Guterres (2021), afirmou que fará tudo ao seu alcance para garantir que a comunidade internacional “exerça pressão suficiente” sobre Myanmar para que o golpe de Estado “fracasse”. Guterres (2021) afirmou ao jornal “The Washington Post” que “é absolutamente inaceitável mudar os resultados da eleição e a vontade do povo”. Além disso, o Conselho de Direitos Humanos da ONU pediu para que os militares de Myanmar suspendam as restrições ao acesso à internet no país. Em uma votação, tal Conselho pediu a soltura de Aung San Suu Kyi e o fim da repressão aos protestos. O relator da ONU para os Direitos Humanos em Myanmar, Thomas Andrews (2021), afirmou que o Conselho de Segurança das Nações Unidas “deve considerar as opções anteriormente utilizadas em situações semelhantes, incluindo sanções, embargos de armas, proibições de viagens e apelos à intervenção do Tribunal Penal Internacional”.
No entanto, como vimos anteriormente, a população de Myanmar continua sem acesso à internet, Aung San Suu Kyi continua presa, assim como a repressão violenta aos protestos. Também ainda não está ocorrendo pressão suficiente da comunidade internacional e, mesmo se houvesse, as medidas punitivas necessitariam, para serem efetivas, do apoio dos países vizinhos de Myanmar, como Japão e Cingapura, grandes atores na economia deste país, e que, segundo a análise do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais (CSIS), podem ser menos entusiastas na hora de impor punições. A China, principal investidor e parceiro comercial da antiga Birmânia e adversária dos Estados Unidos, parece mais disposta a se adaptar para tratar com o novo governo do que a adotar represálias.
Isso porque a China bloqueou uma declaração conjunta do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre o golpe militar ocorrido em Myanmar. Os chineses foram os únicos que não quiseram apoiar a moção apresentada pelo governo do Reino Unido durante uma reunião de emergência. Cabe destacar que essa é a segunda vez em menos de quatro anos que Pequim veta qualquer tipo de iniciativa que envolve o governo de Myanmar. Em 2017, o país vetou que o CS condenasse a ação dos líderes do país contra a minoria étnica rohingya – apenas o plenário da ONU, onde não há possibilidade de veto, condenou a postura da líder “de fato” Aung San Suu Kyi por violar direitos humanos. A China costuma adotar uma postura de não intervenção em crises internas de aliados e na ONU e ao se posicionar desta maneira, o governo chinês está sinalizando apoio aos líderes militares de Myanmar, um país economicamente importante para a China.
Além disso, Myint Thu, representante de Myanmar nas Nações Unidas em Genebra, interveio após essas declarações da ONU para reiterar que as medidas tomadas em seu país respondem às alegadas irregularidades nas eleições de 8 de novembro. Myint Thu (2021) disse ‘estamos enfrentando desafios extremamente difíceis e uma transição difícil que não queremos atrasar, mas esperamos receber mais compreensão e colaboração da comunidade internacional”. Ademais, a junta militar no poder em Myanmar destituiu seu embaixador na ONU, que havia pedido o “fim do golpe” no país asiático, onde a repressão a protestos pela democracia continua. “Não seguiu as ordens, nem as diretrizes do Estado, e traiu o país. Por isso, é retirado do cargo”, anunciaram na TV estatal, referindo-se ao embaixador Hyaw Tun.
Nesse sentido, nos parece que mesmo a ONU se esforçando para manter a cooperação e a paz internacional, defender a democracia e os direitos humanos e incentivar sanções, como por exemplo, o isolamento diplomático, não assusta a junta militar que está no poder em Myanmar, uma vez que os Estados vivem em um ambiente anárquico e tem seus próprios interesses, fazendo de tudo para defendê-los. Segundo Yun Sun (2021), diretora para a China do instituto de pesquisas Stimson Center, o Ocidente “pode impor novamente as sanções que foram levantadas um dia, pode usar o isolamento diplomático, pode apresentar resoluções sobre Myanmar na ONU. Mas não acredito que a junta vá mudar sua posição só porque o Ocidente se opõe”.
Conclusão
Esse artigo teve como objetivo responder qual a verdadeira eficácia da Organização das Nações Unidas no mundo de hoje?, usando como plano de fundo o golpe de Estado em Myanmar e as teorias do debate neo x neo. Tal trabalho começou analisando o termo “segurança” nas relações internacionais e depois o Golpe de Estado em Myanmar, passando por toda a história do país, desde que se tornou independente. Cabe destacar aqui que esse golpe de Estado pegou de surpresa tanto o Ocidente, que incentivou o processo de transição e durante anos considerou a chefe de fato do Governo, Aung San Suu Kyi, como um de seus ícones políticos internacionais, quanto a China, que compartilha importantes interesses econômicos e uma fronteira porosa com seu vizinho do sul. Ambos os blocos devem agora enfrentar uma situação que não previram e que pode colocar à prova sua estratégia de política externa.
Após isso, estudamos as teorias neorrealista e neoliberal para embasar nossa pesquisa. O debate neo x neo foi muito importante para o campo de estudos das relações internacionais e para entender também o sistema internacional. Nesse artigo, pudemos analisar grandes teóricos, como Waltz, neorrealista defensivo, que defendia que os Estados são atores unitários e racionais, buscam maximizar sua segurança e operam em um ambiente estrutural anárquico; Mearsheimer, neorrealista ofensivo que também acredita na racionalidade do Estado e na anarquia do sistema internacional, e duvida do papel de importância que as instituições possuem na garantia da estabilidade internacional; e Keohane e Martin que acreditam no poder e na relevância das instituições internacionais no sistema internacional. 
Além disso, também foi visto que a teoria neorrealista e neoliberalista possuem falhas, mas nos ajudam a compreender a realidade e se complementam em certos aspectos. Tendo exatamente isso em vista, podemos chegar a algum resultado em relação ao questionamento que guia esse trabalho. Nesse sentido, analisando criticamente a Organização das Nações Unidas (ONU), principalmente em relação a sua atuação no Golpe de Estado de Myanmar, que foi o que fizemos no capítulo anterior, podemos perceber que a instituição ainda possui algum prestígio e relevância no sistema internacional para garantir a cooperação e paz internacional, porém possui pouquíssimo poder em outros cenários, uma vez que o sistema internacional é anárquico e os Estados possuem sim interesses próprios que podem ficar acima da cooperação internacional. 

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POTAL G1 Mundo. Chefe da ONU pede pressão para que golpe em Mianmar fracasse; Facebook é bloqueado no país. G1 Mundo, 04 fev.20021. Disponível em: <https://g1.globo.com/mundo/noticia/2021/02/04/chefe-da-onu-pede-pressao-para-que-golpe- em-mianmar-fracasse-facebook-e-bloqueado-no-pais.ghtml >. Acesso em: 01 de março de 2021.


Giovanna Soares Fontes é feminista, anticolonialista e graduanda em Relações Internacionais na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Também é pesquisadora de gênero na América Latina no Observatório Feminista de Relações Internacionais (OFRI) e no projeto de pesquisa e extensão da UFRJ Debates Pós e Decoloniais, que promove reflexões em torno do Sul Global.

Diálogos Internacionais

Divulgação científica de Relações Internacionais, Defesa e Economia Política Internacional ISSN 2596 2353