Huawei: erosão da ​expertise a​mericana, soberania tecnológica e a geopolítica do 5G

Volume 8 | Número 81 | Mai. 2021

Por​ Felippe Juan Diniz Santos
Muito recentemente, a tecnologia móvel de quinta geração, popularmente conhecida como 5G, tornou-se alvo de intensos debates na esfera internacional a partir dos desdobramentos geopolíticos e a crescente corrida por hegemonia dos países que lideram o processo. A partir desse contexto, o artigo se propõe a abordar questões pertinentes à noção de soberania estatal e a consequente inauguração de novos moldes e parâmetros, pondo no centro do debate o papel desempenhado pela gigante chinesa Huawei. O presente artigo não pretende esgotar o tema, uma vez que, dado o caráter dinâmico e atual da matéria, difícil seria projetar os resultados finais dessa disputa. O objetivo é apresentar brevemente o cenário histórico hegemônico dos Estados Unidos em termos tecnológicos e sua principal e mais recente ameaça: a China. O artigo circula a disputa entre o governo americano e a Huawei, suas interfaces, colocações e os desdobramentos nos “campos de disputa” dessas potências, com especial atenção ao Brasil, através de um processo que ganhou novas roupagens à medida em que se consolidam os marcos estratégicos de atuação das potências.
Sem muito esforço analítico, é possível reconhecer que o século XXI tem constituído dinâmicas conflitantes à base hegemônica dos Estados Unidos que, nas mais diferentes esferas, têm apresentado hesitação em momentos de convocação de sua supremacia e da expertise consolidada desde o sistema emergido no pós-Segunda Guerra Mundial.
Muito bem descrito no livro “Sociedade em Rede”, do sociólogo espanhol Manuel Castells, o surgimento da internet foi concebido dentro de domínios americanos, fruto de uma “fusão de estratégia militar, cooperação científica, iniciativa tecnológica e inovação contracultural”, no seio do Departamento de Defesa dos EUA. Entretanto, com o passar dos anos, o caráter puramente estratégico-militar do Pentágono foi se desvencilhando da supremacia do uso da internet, dando espaço para iniciativas comerciais e contribuindo para um ambiente de inovação.
Manuel Castells é preciso em determinar:

“Se a primeira Revolução Industrial foi britânica, a primeira revolução da tecnologia da informação foi norte-americana, com tendência californiana. […] As empresas, instituições e inovadores norte-americanos não só participaram do início da revolução na década de 1970, como também continuaram a representar um papel de liderança em sua expansão, posição que provavelmente se sustentará ao entrarmos no século XXI.” (CASTELLS, Manuel. 1999; p.99)

Por muitos anos, em termos de tecnologia, os Estados Unidos de fato foram referência quase única de polo de inovação e desenvolvimento. A histórica capa da revista Time, de setembro de 1999, trazia o apelo: “GetRich.com: Secrets of the New Silicon Valley” (TIME MAGAZINE, 1999). Durante a reportagem, a revista fazia uma convocação à população: se você tem uma boa ideia de negócio na Internet, a “surpreendente máquina de startups do Vale do Silício” fará o resto. Trata-se, sobretudo, de um chamado à expertise tecnológica americana, que a partir do século seguinte, já não mais se consolidaria como única fonte hegemônica, disputando influência diretamente com a China e outras potências emergentes. 
O Vale do Silício é um símbolo dos Estados Unidos, uma “marca” projetada para o mundo, inclusive de propaganda deliberada do governo americano, sendo também sede de competitivas empresas engajadas no 5G, tal como Broadcom Inc. e Qualcomm. Em termos comparativos, simboliza para a tecnologia o que Wall Street é para o mercado financeiro mundial.
O PÓS-OCIDENTAL COMO NOVO NORMAL
Também sem muito esforço, percebe-se que a dinâmica de declínio hegemônico do Estados Unidos fora agravada com a política isolacionista decorrente da eleição de Donald Trump para a presidência, no momento que o país mais precisava de força e energia para combater as potências emergentes e reforçar sua posição privilegiada no cenário tecnológico internacional. 
Castells, nesse sentido, também acertou quando afirmou que “sem dúvidas, testemunharemos uma presença cada vez maior de empresas japonesas, chinesas, indianas e coreanas, assim como contribuições significativas da Europa em biotecnologia e telecomunicações”, afinal, isso faz parte do mundo digitalizado, informatizado e globalizado que acabara de surgir.
Nesse cenário de emergência de potências orientais as quais Castells descreve, cabe trazer ao debate um importante conceito propagado pelo professor Oliver Stuenkel que pode resumir o cenário: o nascimento de um mundo pós-ocidental; isto é, a superação de uma hegemonia puramente ocidental, centrada na imagem dos Estados Unidos, para uma relação viva e dinâmica com os países orientais (STUENKEL, 2018). A crise de 2008, nas palavras do professor, já revelava a incapacidade do país de solucionar problemas de alta complexidade por vias unilaterais, na confiança exclusiva do poder de suas instituições (STUNKEL, 2020). A China, através dos BRICS, surgia, de forma mais explícita, como alternativa legítima para o vácuo que havia sido criado.
A partir dessa competição para preenchimento de um espaço de liderança na ordem internacional, atritos entre os EUA e o governo chinês começaram a ser comuns, não se limitando somente à presidência de Trump. Um dos capítulos mais emblemáticos diz respeito à revelação, feita pelo jornal The Wall Street Journal em 2011, de que a Huawei havia ignorado as sanções dos Estados Unidos contra o Irã e estabelecido relações comerciais com o país, o que gerou forte reação do Departamento de Comércio da administração Obama, barrando a empresa chinesa de participar da construção de diversas redes de emergência para serviços essenciais dos Estados Unidos, alegando “questões de segurança nacional” (STECKLOW, 2011).
Entretanto, mais recentemente a disputa ganhou novas roupagens no campo tecnológico, em especial acerca do 5G. Segundo o professor da Escola Politécnica da USP, Sergio Kofuji, a telefonia móvel da quinta geração não é somente um 4G mais rápido, mas um “caminho para aplicações que ainda engatinham, como a internet das coisas (IoT), carro autônomo e cirurgias à distância”, o que tratará inteligência e automação a diversas esferas de objetos atualmente desprovidos de conexão à internet (CAIRES, sd). A disputa em torno do 5G diz respeito ao acesso de redes pelo mundo, fornecimento de equipamentos e infraestrutura digital aos países, mas sobretudo a influência no mercado internacional, dando início à chamada era da geopolítica digital. 
O SUPOSTO ATRASO AMERICANO
Diversos analistas apontam certo atraso dos EUA em relação ao desenvolvimento e implementação do 5G (WATTS, 2020). Essa lentidão já revela, por si só, que o país, a despeito de toda sua capacidade de projeção cultural e atração de cientistas de todo o mundo, já não mais está consolidado em um processo natural de convocação desses talentos. Investimentos pesados e muita mobilização devem ser as estratégias primárias para que se consiga disputar hegemonia com os países que emergem no cenário hegemônico. A União Europeia, nesse sentido, possui a Nokia e a Ericsson em seus domínios, sem motivo de grande alarde por suposto atraso: são duas empresas fortes que competem com solidez no cenário internacional.
Apesar de alguns analistas indicarem esse cenário, o certo é que ainda há resistência americana, em especial através das empresas já mencionadas, mas também da nova iorquina Verizon (STANKIEWICZ, 2019). Esse debate, em específico, deve remeter o leitor à promessa analítica de Castells supracitada: de fato, os EUA têm papel fundamental nessa nova era das telecomunicações, mas cedem espaços para novos atores serem alçados a postos de “contribuições significativas”.
Assim, os polos tecnológicos começaram a se estruturar para enfrentar a nova era do 5G nos mais diversos países, especialmente no dito Oriente. De acordo com o European 5G Observatory, os EUA, Japão, Coreia do Sul e a China são os países que lideram em termos de prontidão para o 5G (EUROPEAN 5G OBSERVATORY). Para fins de uma melhor compreensão do artigo, cabe restringir a análise a uma disputa que tomou formas diferentes com a eleição de Donald Trump: a resistência dos EUA e a emergência da gigante chinesa Huawei de forma definitiva no cenário global.
A GEOPOLÍTICA DAS TELECOMUNICAÇÕES
A geopolítica tem sido influenciada por mudanças tecnológicas através da história: assim como os avanços em aço para a construção de maquinários permitiram aos países europeus consolidar sua dominação colonial, a bomba atômica encerrar a Segunda Guerra Mundial e a ameaça nuclear que restringiu o mundo numa ordem estritamente bipolar durante a Guerra Fria, atualmente tecnologias digitais ocupam esse espaço de poder e influência (TEKİR, 2020). 
No livro “The Huawei Model: the Rise of China’s Technology Giant”, que mostra a dinâmica chinesa no desenvolvimento da economia digital e sua emergência como potência tecnológica, é trazida à tona a carta patriótica lançada em 1994 pelo fundador da empresa, Ren Zhengfei, que afirmava serem as telecomunicações “uma questão de segurança nacional. Para uma nação, não ter seus próprios equipamentos nessa área é como não ter Exército”. 
A partir disso, é interessante pensar o direcionamento que a empresa teve e como, nas próprias palavras do fundador da Huawei, atualmente dispositivos tecnológicos podem ser equiparados à existência de Exército – ou seja, tão importante quanto ter forças militares mobilizadas e ativas é também ter segurança, independência e soberania tecnológica.
É observável, diante desse cenário, que a Huawei foi alçada a um posto muito maior do que apenas uma empresa chinesa que comercializa equipamentos tecnológicos, mas também à tarefa de carregar consigo, por meio de pesados incentivos financeiros e tributários chineses, a função de projetar a dominação do país para além de suas fronteiras. A Huawei, portanto, muito mais que empresa, é uma estratégia política dentro de um tabuleiro essencialmente sistêmico, reconhecida até mesmo pelo ex-Procurador-Geral dos EUA, William Barr (BENNER, 2020).
Os Estados Unidos de Donald Trump, cientes da possível ameaça chinesa à hegemonia no sistema internacional, entraram em guerra comercial declarada com a China, alcançando um novo patamar em 2019, quando Trump declarou situação de emergência nacional e baixou um decreto proibindo que empresas americanas utilizassem “equipamentos de telecomunicações estrangeiros que coloquem em risco a segurança nacional” (HIGGINS, 2019), levando a uma forte manifestação da Huawei em sentido contrário, declarando que a tecnologia do país americano ficará “inferior e mais cara”.
Apesar do posicionamento da Huawei, há fundamento para a preocupação americana: a China promulgou, em 2017, a Lei Nacional de Inteligência, dando poder ao governo chinês para vigiar cidadãos com instrumentos tecnológicos, podendo demandar das empresas o fornecimento de informações sempre que solicitado (KHARPAL, 2019). O governo nega.
Para além disso, em 2020, o Federal Communications Commission (FCC), órgão regulador dos EUA, decidiu classificar a Huawei e ZTE como ameaças à segurança nacional, impedindo qualquer relação entre empresas americanas de utilizarem verbais federais para comprar os respectivos equipamentos, numa nítida tentativa de conter o avanço chinês (FEDERAL COMMUNICATION COMMISSION)
A prisão de Meng Wanzhou, da filha de Zhengfei e diretora financeira da Huawei, a pedido dos EUA, se revelou no mínimo curiosa: supostamente, a executiva teria tido relações comerciais com o Irã, através de uma empresa de fachada, o que seria proibido pelos EUA, uma vez que as sanções levantadas pela administração Obama foram retomadas por Trump. Entretanto, a pouca transparência das autoridades em relação ao caso faz suscitar a impressão de que se trata de mais um movimento nessa disputa geopolítica sob pretexto de corrupção. Para além disso, a prisão ocorreu no meio de outros atritos entre EUA e China, uma vez que Donald Trump firmemente declarava que proibiria o funcionamento de outras funcionalidades chinesas no país, como o WeChat e o TikTok (SWANSON, 2020).
Todavia, apesar do histórico de conflito entre os países ser grande, o 5G é, até o momento, o tema de maior controvérsia e alcance. Os investimentos atraídos, em cifras bilionárias, reorganizaram o campo da geopolítica.
O CENÁRIO INTERNACIONAL E O PAPEL BRASILEIRO
No Brasil, essa disputa ganhou novos ares também com a eleição de Jair Bolsonaro, inaugurando o cenário que o ex-secretário especial de assuntos estratégicos da Presidência, Hussein Kalout, classificou como “alinhamento subserviente” (MELO, 2020) – ou seja, uma mudança abrupta na diplomacia brasileira que passou a prever posicionamentos quase automaticamente orientados a partir de pautas e interesses americanos.
Um exemplo desse ponto se revela na iniciativa encabeçada pelo ex-presidente Donald Trump e seu secretário de Estado, Mike Pompeo, denominado Clean Network, que teve adesão instantânea do governo brasileiro, em claro e manifesto sinal à Huawei. Essa iniciativa se descreve como uma “busca por solucionar as ameaças de longo prazo à privacidade de dados, segurança, direitos humanos […] de atores autoritários malignos” (US EMBASSY).
Por mais que seja uma iniciativa do governo Trump, diversos analistas internacionais duvidam de uma mudança radical na abordagem dos EUA com a China após a eleição de Joe Biden. Ian Bremmer, fundador da Eurasia Group, afirma que a divisão política em níveis nunca antes vistos e questões estruturais mais abrangentes não resolvidas, em especial as instituições multilaterais, como Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSONU), não se adequaram aos desafios do século, tornando-se incapazes de solucionar os problemas atuais. A tese defendida por Bremmer afirma que os EUA seguirão uma postura anti-China, até mesmo pela narrativa consolidada entre os lados divergentes, sejam democratas ou republicanos (BREMMER, 2020).
A despeito desse cenário ocidentocêntrico anti-China, um sinal específico dos novos tempos chamou a atenção no cenário internacional recentemente na corrida pela vacina: a dominação chinesa tem se mostrado tamanha, fragmentadas em múltiplas esferas, que para conseguir exportar o ingrediente farmacêutico ativo (IFA), a matéria-prima da Coronavac, o governo brasileiro acatou uma determinação da China para não restringir nenhuma empresa do leilão para equipamento da tecnologia 5G. Tal condição foi amplamente noticiada pelos mais respeitados jornalistas, inclusive já sendo matéria de portaria no Diário Oficial (BRASIL, 2020), indo em sentido contrário à Clean Network.
Apesar de embrionário no Brasil, que sequer fez leilão, em outros países estratégicos, seja por mercado ou por influência geopolítica, a Huawei já consolidou acordos comerciais vantajosos. É o caso da maior operadora de celular russa, a MTS, que estruturou a assinatura de memorando entre Putin e Xi Jinping para fornecimento de tecnologia 5G para a Rússia (REUTERS, 2019). Tal movimento foi entendido por analistas como uma rápida resposta às sanções americanas contra a Huawei.
O cenário geopolítico atual encontra-se dividido entre essas novas formas de funcionamento do sistema internacional. O Reino Unido, em nítido alinhamento aos Estados Unidos, através do primeiro-ministro Boris Johnson, também proibiu o uso de equipamentos da Huawei na rede 5G, exigindo que todos os equipamentos da empresa sejam removidos até o final de 2027, por suposta ameaça à segurança nacional (BBC News, 2020).
Entretanto, as empresas europeias Nokia e Ericsson surgem como terceira via diante da polarização: o grupo SoftBank, do Japão, por exemplo, já firmou acordos comerciais com as duas para fornecimento de equipamento e plataformas para a rede 5G da empresa (JULIÃO, 2019), abrindo mão de acordos com a Huawei, sua parceira nas redes 4G.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Apesar do cenário beligerante das duas potências por influência, não se deve tirar de mente outras iniciativas igualmente importantes, que impedem de denominar o cenário como uma “nova Guerra Fria” ou de se categorizar o sistema como bipolar: a Coreia do Sul surge como uma forte terceira via no que tange ao 5G. Inclusive, se noticia que o país arquiteta lançar projetos-piloto do 6G já em 2026. (GUERRA, 2020)
O mundo está mudando e a geopolítica digital veio para se consolidar. No mínimo, torna-se anacrônico analisar somente estruturas clássicas de Estado para enxergar seu projeto de dominação; é preciso, portanto, analisar novas formas de disputa e conflito. Nesse sentido, o 5G cumpre bem essa função ao inaugurar uma nova categoria e era de mobilizações do tabuleiro internacional.


REFERÊNCIAS

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Felippe Juan Diniz Santos é graduando em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (IRID/UFRJ).

Diálogos Internacionais

Divulgação científica de Relações Internacionais, Defesa e Economia Política Internacional ISSN 2596 2353