Volume 8 | Número 87 | Nov. 2021
Por João Miguel Villas Boas Barcellos
“A soberania se afirma pela força, não sendo subordinada, no essencial, a nenhuma lei” (MARTIN, 2018, p. 52).
O sistema interestatal capitalista
[1] se desenvolve a partir de um processo histórico que se inicia ainda na Idade Média – com a formação dos Estados nacionais – e evolui pelas “pressões competitivas” entre as potências europeias e suas guerras. Tais guerras, como a dos trinta anos (1618-1648) ou a dos sete anos (1756-1763) e as napoleônicas (1803-1815) ampliam o sistema e o tornam global, na medida em que as potências europeias difundem seu poder político e econômico às nações e povos periféricos (FIORI, 2015).
Nesse mesmo sentido alguns autores advogam que a ideia de sistema internacional, ou ordem internacional (KISSINGER, 2015), tem seu embrião apenas a partir da Paz de Westphalia, em 1648, quando os Estados Nacionais europeus “conquistam” autonomia frente ao poder papal encerrando um período de guerras incessantes, como a dos oitenta (1568-1648) e dos trinta anos (1618-1648) (WATSON, 2004).
Um fato que chama atenção para o surgimento do sistema interestatal capitalista é o impressionante progresso técnico na Europa a partir desse período. Nessa perspectiva, Kennedy argumenta que:
A falta de qualquer autoridade suprema desse tipo na Europa e as rivalidades marciais entre seus vários reinos e cidades-estados estimularam uma constante busca de progresso militar, que interagiu proveitosamente com o progresso tecnológico e comercial também registrado nesse ambiente competitivo empresarial. Com menos obstáculos à mudança, as sociedades europeias entraram numa espiral ascendente de crescimento econômico e melhoraram sua eficiência militar que, com o tempo, as colocaria à frente de todas as outras regiões do globo (KENNEDY, 1989, p. 02)
Ao se constatar a ascensão do poder europeu em escala global e sua influência na formatação do sistema internacional, pode-se constatar, igualmente, a dificuldade para os demais Estados acumularem poder e riqueza. Tal afirmação coloca uma questão fundamental para a compreensão da dinâmica das relações internacionais: o conflito e a constante preparação – em todos os níveis, do econômico ao militar, passando pelo cultural e político – para ele. Esta constatação deveria instituir aos Estados uma constante vigilância acerca da necessidade de se construir meios para a mudança de patamar estrutural entre eles. Isso nos remete à discussão a respeito da relação de poder entre o centro e a periferia do sistema interestatal capitalista. Ou seja, se há uma relação de hierarquia que condiciona o funcionamento da ordem mundial em suas variadas áreas, como economia e segurança, pode-se concluir que ou os Estados periféricos aceitam a relação de dominação ou rompem com esta estrutura. O único caminho possível é o que Gullo chama de “insubordinação fundadora” (GULLO, 2014). As nações que ousaram (AMSDEM, 2009) e se prepararam para as represálias do centro lograram, não todas, romper a lógica de subordinação. Isso é o que nos mostra Kennedy (1989), Gullo (2014), Mearsheimer (2001) e tantos outros autores. A experiência de países que tiveram êxito, como Japão, Alemanha, Rússia, China, Índia, em menor escala Brasil, serve de inspiração para outras nações.
Sobre a magnitude do poder no sistema internacional, assim se manifesta Spykman:
Na sociedade internacional são permitidas todas as formas de coerção, inclusive as guerras de destruição. Isso significa que a luta pelo poder se identifica com a luta pela sobrevivência; assim sendo a melhoria das posições relativas de poder converte-se no desígnio primordial da política interior e exterior dos Estados. Tudo o mais é secundário porque, em última instância, somente o poder permite realizar os objetivos da política exterior. Poder significa sobrevivência, aptidão para impor a própria vontade aos demais, capacidade de ditar a lei aos que carecem de força e possibilidade de arrancar concessões dos mais débeis. Quando a última forma de conflito é a guerra, a luta pelo poder se converte em rivalidade pelo poderio militar, em preparação para a guerra. (SPYKMAN, 1944, pp. 25-26)
O poder sempre foi a mola mestra do sistema internacional. Nesse sentido, “dilema de segurança” e “equilíbrio de poder” são conceitos fundamentais para entendermos o funcionamento do SI, pois são elementos geopolíticos e mesmo geoeconômicos (KENNEDY, 1989) que fazem as grandes potências, mas também as médias, disputarem espaços de poder e riqueza nele. Quem primeiro teorizou a respeito do conceito de “equilíbrio de poder” foi o filósofo escocês David Hume, em seu ensaio “Of the balance of power”(1742). Como adverte Gonçalves e Silva:
Equilíbrio de poder é o mais antigo e conhecido conceito das relações internacionais. Tanto os estudiosos como os operadores políticos costumam usá-lo para descrever e analisar as mais diversas situações de política internacional, no passado e na atualidade. Em vista do uso tão generalizado, com o passar do tempo o conceito sofreu uma inevitável multiplicação de sentido. (GONÇALVES; SILVA, 2005, p. 69)
O termo é caro à escola Realista de Relações Internacionais
[2]. Diversos autores abordaram o conceito em suas pesquisas. De Adam Watson (2004) a Kenneth Waltz (1979), passando por Jean Baptiste Duroselle (2000) e Raymond Aron (2002) o equilíbrio de poder é um dos conceitos-chave para entender o SI.
O termo “dilema de segurança” foi formalmente cunhado em 1950 pelo autor da escola Realista de Relações Internacionais, John Herz. Naturalmente, o autor não criou o termo em si, mas o conceitualizou, pois, sabe-se que desde Tucídides (460-400 a. C) o termo é usado para expressar a preocupação de uma autoridade político-territorial com o crescimento do poder político e militar de uma unidade rival. Tal preocupação só existe porque entre as unidades políticas – hodiernamente, Estados Nacionais – vivem em uma contínua anarquia, ou seja, ausência de autoridade política supranacional, ou internacional. O autor teuto-estadunidense empregou o termo para se referir à corrida armamentista durante a Guerra Fria entre as superpotências, Estados Unidos e União Soviética (HERZ, 1950).
No artigo em que o autor desenvolve o termo – “Idealist Internationalism and the Security Dilemma – várias questões de fundo são analisadas, como a natureza humana e a inevitável preparação para o conflito entre unidades políticas. Herz entende que há duas abordagens acerca da natureza dos problemas internacionais, uma “realista” – Realismo Político – e a outra “idealista” – Idealismo Político. O primeiro leva em consideração a questão da segurança e a competição pelo poder, já o segundo, entende que o poder pode ser esvaziado à medida que o bem comum, os direitos e a ética são difundidos (HERZ, 1950, p. 158).
Uma questão de fundamental relevância é tratada pelo autor, qual seja a da ilusória igualdade soberana das nações. Esta é chamada por Herz de “nacionalismo idealista” e será contrabalançada pelo “nacionalismo integral”, termo que o autor se refere para expressar a realidade competitiva, agressiva e expansionista que impera no sistema internacional.
Não é nosso objetivo, contudo, se prender aos conceitos mais restritos das teorias de Relações Internacionais, mas sim analisá-los à luz das relações de poder e competição entre os Estados, bem como pela perspectiva geopolítica. Por isso, nossa pesquisa busca lançar mãos dos conceitos considerados importantes para se entender a complexa relação de poder e riqueza entre as nações.
Sobre o “equilíbrio de poder”, Spykman fala da necessidade de se manter o equilíbrio de forças para a manutenção e alcance da paz. Desse modo:
(…) the policy which aims to restrain growing states and is known as the balance of power policy has been part and parcel of the diplomacy of all successfull states. Experience has shown that there is more safety in balenced power than in a declaration of good intention. To preserve the balance requires action not only against neighbour that becomes too powerfull but also against distant states. (…) It is obvious that a balance of power policy is in the first place a policy for the Great Powers. (SPYKMAN, 1942, p. 20)[3]
As grandes potências nunca estão satisfeitas com a distribuição do poder, mas procuram sempre pender a balança para seu lado. Elas tendem a ser revisionistas e usam a força para alterar o equilíbrio de poder. Como o último estágio do poder é a hegemonia, porém, como nenhum Estado conseguiu alcança-la, “o mundo está condenado a perpétua competição entre as grandes potências (MEARSHEIMER, 2001, p. 02, tradução nossa). Assim prossegue o autor sobre a questão:
“The overrinding goal of each state is to maximize its share of world power, which means gaining power at the expense of other states. (…) Their ultimate aim is to be the hegemon – that is, the only great power in the system (MEARSHEIMER, 2001, p. 02).
[4]
Existiriam três características no sistema internacional que faz que os Estados sintam insegurança, quais sejam a ausência de uma autoridade central protetora; o fato de que os Estados têm permanentemente uma capacidade militar ofensiva e a imprevisibilidade com relação às intenções dos Estados. Portanto, tais características conformam a principal meta dos Estados: sobreviver (MEARSHEIMER, 2001).
Conclusão
A despeito de concordarmos que exista uma ampla discussão teórica a respeito do objeto de análise, preferimos fazer uma avaliação da realidade internacional a partir dos conceitos consagrados do Realismo (RI), do Mercantilismo (EPI) e do Poder Global.
Buscamos nesse breve artigo discutir os fundamentos do sistema internacional de poder, bem como jogar luz sobre a discussão acerca das instabilidades sistêmicas que afetam as elações entre os Estados nacionais. Desse modo, considerando a análise exposta é de fundamental importância a compreensão de que os Estados que buscam se afirmar no sistema internacional capitalista com autonomia devem agir de maneira a sopesar os elementos sistêmicos de poder e riqueza. A história revela-nos que não há precedente de Estados que tenham alcançado autonomia estratégica prescindindo do desenvolvimento de robustas forças militares, avançado sistema de inovação e sofisticado sistema produtivo.
Referências
AMSDEN, Alice Hoffenberg. A ascensão do” resto”: os desafios ao ocidente de economias com industrialização tardia. Unesp, 2009.
CARR, Edward Hallett. Vinte Anos de Crise: 1919-1939: uma introdução ao estudo das relações internacionais. Brasília: Editora UnB, 2001.
FIORI, José Luís. História, estratégia e desenvolvimento: para uma geopolítica do capitalismo. Boitempo Editorial, 2015.
GULLO, Marcelo. A insubordinação fundadora: breve história da construção do poder pelas nações. Florianópolis: Insular, 2014.
HERZ, John H. Idealist internationalism and the security dilemma. World politics, v. 2, n. 2, p. 157-180, 1950.
KENNEDY, Paul. Ascensão e queda das grandes potencias transformação econômica e conflito militar de 1500 a 2000. Rio de Janeiro: Campus, 1989.
KISSINGER, Henry. Ordem mundial. Objetiva, 2015.
MARTIN, André Roberto. Brasil, Geopolitica e Poder Mundial: o anti-golbery. Hucitec, 2018.
MEARSHEIMER, John J. et al. The tragedy of great power politics. WW Norton & Company, 2001.
SILVA, Guilherme A.; DA SILVA GONÇALVES, Williams. Dicionário de relações internacionais. Manole, 2005.
SPYKMAN, Nicholas. Geography of the Peace. 1944.
WALTZ. Kenneth. Theory of international politics. New York: McGraham Hill, 1979.
WATSON, Adam. A evolução da sociedade internacional: uma análise histórica comparativa. Brasília: Editora UnB, 2004.
[1] Preferimos o conceito pelo fato dele abranger os elementos econômicos como relevantes para o cálculo político dos Estados. Nas palavras de Fiori: o sistema interestatal capitalista “sublinha a importância permanente e insuperável dos Estados nacionais, com seus capitais e suas moedas específicas, para o desenvolvimento do capitalismo, que é desigual e hierárquico” (FIORI, 2015, p. 17). Há partes do texto em que usaremos o conceito clássico das Relações Internacionais: sistema internacional, pois é assim que autores citados na área se referem.
[2] Para mais informações acerca do realismo nas Relações Internacionais ver as obras: CARR, 2001; MORGENTHAU, 2003; WALTZ, 1979; MEARSHEIMER, 2001.
[3] “A política que visa conter os estados em crescimento e é conhecida como política de equilíbrio de poder tem sido parte integrante da diplomacia de todos os estados bem sucedidos. A experiência tem mostrado que há mais segurança no equilíbrio de poder do que em uma declaração de boas intenções. Para preservar o equilíbrio é necessário agir não apenas contra o vizinho que se torna muito poderoso, mas também contra estados distantes. (…) É óbvio que uma política de equilíbrio de poder é, em primeiro lugar, uma política para as Grandes Potências.” (Tradução nossa).
[4] “O objetivo primordial de cada estado é maximizar sua participação no poder mundial, o que significa ganhar poder em detrimento de outros estados. (…) Seu objetivo final é ser o hegemon – ou seja, o único grande poder do sistema.” (Tradução nossa).
João Miguel Villas Boas Barcellos é Doutor em Economia Política Internacional no PEPI-UFRJ e mestre na mesma área e mesma instituição. Fez graduação em Relações Internacionais na PUC -GO (2007) e especialização na mesma área na UCAM (2011). Pesquisador integrante do Núcleo de Avaliação da Conjuntura do Centro de Estudos Político-Estratégicos da Escola de Guerra Naval. É, igualmente, pesquisador do Grupo de pesquisa: “Direitos sociais, direitos fundamentais e políticas públicas”, concentrando sua investigação nas questões econômicas e sociais. Tem interesse acadêmico em: Economia Política Internacional, a relação entre o processo de desenvolvimento e a geopolítica, desenvolvimento econômico e social, pensamento estratégico brasileiro e indiano,Política Externa Brasileira e Indiana, complexo industrial-militar e política industrial voltada à defesa nacional.