o sikhismo na índia contemporânea: uma análise à luz do construtivismo
Edição Especial: Ásia
Volume 11 | Número 113 | Nov. 2024
Por Aliria Ildefonso Granja e Gabriel Paradela Heil
INTRODUÇÃO
Em 2014, Narendra Modi foi eleito primeiro-ministro da Índia pela primeira vez, pelo partido nacionalista hindu Bhartiya Janata Party (BJP). Suas políticas marcaram uma mudança na roupagem indiana, com um claro foco em um desenvolvimento econômico e uma valorização dos princípios hindus como representantes dos interesses nacionais. Esta visão política levou a grandes conflitos com minorias religiosas no país, principalmente os mulçumanos e sikhs.
Entretanto, a postura diante de Modi com o povo sikh é complexa. Apesar dos atritos durante a gestão, o primeiro-ministro indiano demonstrou uma postura conciliatória em alguns momentos. Nesse sentido, o presente artigo busca relacionar a questão sikh na Índia à luz a teoria construtivista, explorando a denominada “dimensão sociocognitiva” na construção de uma identidade nacional. Argumentamos que esta é influenciada por uma parcela da população que, apesar de minoritária, consolidou por meio de seus movimentos de resistência e da tradição cultural e religiosa um sólido legado político que influencia a tomada de decisões do governo indiano frente às mudanças da conjuntura política internacional. Em um contexto internacional de ascensão da extrema direita no mundo, cujos governantes são característicos pelo discurso nacionalista e pela adoção de medidas visando a progressiva restrição dos direitos de populações minoritárias dentro do território estatal, o caso sikh na Índia apresenta uma clara distinção na condução de políticas governamentais em relação a governos de outras potências econômicas, como França, China e os Estados Unidos.
Notáveis exemplos da centralidade dos sikhs mesmo em um governo hindu foram a celebração pública do aniversário do fundador da religião, Guru Nanak, e a inauguração do Corredor de Kartarpur, que facilita a peregrinação dos sikhs indianos a um dos locais mais sagrados de rua religião no Paquistão. Os fatores capazes de explicar esse fenômeno são diversos. Em termos de geopolítica, a região agrícola do Punjab é essencial para a economia da Índia. Nosso argumento, porém, é que apenas o elemento estratégico seria insuficiente para explicar a reticência do governo nacionalista indiano em desafiar a sociedade sikh: a conquista de direitos desse grupo está ligada a uma série de questões sociais e religiosas, capazes de alterar a percepção dos agentes estatais e garantir sua influência na política indiana. A resistência da população sikh em meio a diversos episódios de massacres e os conflitos pela independência, advogando pela criação de um Estado sikh, são fatores que forçam a parcela dos governantes hindus a manterem os “pés no chão” em relação ao cerceamento de direitos para esse grupo.
O presente trabalho busca analisar a situação sikh na Índia Moderna sob um olhar construtivista, separando em 4 seções: sendo eles uma contextualização histórica com o intuito de entender o surgimento da religião e o seu posicionamento inicial no subcontinente indiano, seguindo com uma colocação dos praticantes desta cultura dentro da sociedade indiana moderna, destacando os movimentos independentistas, completando para assim seguir com a terceira parte, voltada para a análise construtivista de toda a situação e a conclusão resumindo o texto e destacando possíveis soluções.
CONTEXTO HISTÓRICO
A Índia é, atualmente, o país com a maior taxa de crescimento populacional, ultrapassando a China. Como o Estado mais populoso do mundo, possui uma sociedade dona de grande diversidade linguística, étnica e religiosa. Mesmo com sua independência recente, em 1947, a história do país é milenar. Foi uma das principais economias mundiais até a invasão do governo britânico, contendo as universidades mais importantes da Ásia, cujo fluxo de conhecimento se estendia para a Europa e África. Apesar de uma maioria hinduísta, a primeira constituição Indiana coloca como pilar central o respeito aos direitos humanos e a tolerância religiosa, o que a torna um Estado secular atendendo ao desejo de Jawaharlal Nehru, seu principal estadista no imediato pós-independência. Entretanto, a lei constitucional não se traduz na realidade social, na medida em que a ascensão do nacionalismo hindu vem ganhando força perante os conflitos com o Paquistão, de maioria islâmica, e promovendo uma perseguição a grupos religiosos distintos com ideais separatistas inspirados no caso paquistanês, a exemplo dos sikhs.
O Sikhismo é uma religião monoteísta datada do século XVI e originária da região de Punjab, no subcontinente Indiano. Seu criador, Baba Nanak, é visto como uma representação de Deus. A filosofia da religião acredita que os seres humanos estão afastados do céu por seu egocentrismo, sendo que o ciclo de reencarnação só poderia ser interrompido com o fim da noção individualista. Para isso, seriam precisos a adoção de 3 dogmas primordiais: Nam Japam, que consiste na divindade presente em seu pensamento; Kirt Karni, com o ideal de trabalho honesto; e Vand Chahakna, a caridade com os necessitados (SINGH, 2004, p.16). De acordo com o censo de 2020 (VISHWADEEPAK, 2021), 21 milhões de pessoas seguem o sikhismo, sendo 19 milhões residentes na Índia, o que torna o sikhismo a quarta maior religião do país, representando aproximadamente 2% da sociedade.
A filosofia sikh tem como sede o Harmandir Sahib em português, Templo Dourado, localizado na cidade de Amritsar. Desde o seu surgimento, os seguidores de Nanak se destacaram como importantes soldados, agricultores e intelectuais. A região de Punjab se localiza entre a Índia (maioria hindu) e o Paquistão (maioria islâmica), tendo sido oficializada como um estado em 1966, virando uma das unidades federativas mais prósperas e com menores taxas de fome, principalmente por sua agricultura avançada. O povo sikh considera sua filosofia muito distante dos hinduismo e do islamismo, lutando por uma autonomia política. Na década de 80, ganhou força o Movimento Independentista do Calistão, que lutava pela proclamação de um país sikhista no estado de Punjab, algo que foi duramente reprimido pelo governo indiano (JETLY, 2008)
ANÁLISE CONSTRUTIVISTA SOBRE O SIKHISMO NA POLÍTICA INDIANA
O fenômeno de resistência sikh possui nuances que tornam insuficiente a explicação científica trazida pelas teorias tradicionais frente às forças xenofóbicas e repressoras do nacionalismo hindu. Historicamente, é possível observar uma trajetória de modificação da identidade dos sikhs na Índia. Segundo Adler (1999, p. 4), “mesmo nossas instituições mais duradouras são baseadas em entendimentos coletivos (…) esses entendimentos foram subsequentemente difundidos e consolidados até que fossem tidos como inevitáveis”. Este parece ser exatamente o caso analisado, uma vez que a identidade sikh influencia e é influenciada constantemente pela construção da sociedade indiana.
As causas da influência da sociedade sikh no processo político da Índia pode ser divididas em três fatores centrais: em primeiro lugar, sua condição enquanto grupo étnico de cultura frequentemente associada a uma tradição militar e guerreira, especialmente após a criação da Khalsa e pelo papel expressivo desempenhado nas forças militares. Em segundo, são a maioria populacional no Punjab, o “Celeiro da Índia”, que possui uma importância estratégica para a segurança alimentar do país devido a sua produção de trigo e arroz, além da atividade industrial, empresarial, comercial e logística da região. Em terceiro lugar, apesar dos movimentos separatistas dos anos 80, a maioria da população sikh se considera indiana. Isso se deve a um conjunto de fatores, dos quais se destacam a participação desse grupo no movimento de independência da Índia, sua forte presença em instituições como a política e funcionarismo público e ao histórico de ativismo que resultou na representação política dos sikhs em altos cargos do governo (FAIR, 2006).
Diante disso, surge um aparente paradoxo: ainda que vistos como um grupo minoritário, possuem poder político e organização social que os inserem na política indiana em papeis de destaque, diferentemente da relação com o povo muçulmano, que não é necessariamente visto como uma parte da construção identitária nacional. Dessa forma, a ideia de separatismo sikh configura um grande prejuízo para o cálculo político do país. Segundo Adler:
Os interesses nacionais são entendimentos intersubjetivos sobre o que se faz necessário para promover poder, influência e riqueza que sobrevivam ao processo político, dada a distribuição de poder e conhecimento em uma sociedade. Em outras palavras, os interesses nacionais são fatos cuja “objetividade” está no acordo humano e na atribuição coletiva de significado e função a objetos físicos (Adler, 1999, p.14).
Pelos diversos fatores anteriormente citados, é possível observar que a tentativa de homogeneização cultural em torno da parcela hindu seria uma incongruência com o interesse nacional indiano diante da importância histórica, social e econômica do povo sikh dentro do território. Um exemplo da atribuição coletiva de significado gerado pela influência sikh é a ideia de que os mesmos seriam naturalmente pertencentes dos xátrias (uma das quatro castas do hinduísmo, associada aos altos cargos militares), o que apesar de não existir enquanto realidade formal na concepção religiosa, tornou-se uma percepção difundida pela população hindu.
Após sua ascensão, em 2014, o primeiro-ministro Narendra Modi, cujo partido é associado a ideologia Hindutva, que prega a construção de um nacionalismo indiano baseado pela supremacia da filosofia e religiosidade hindu, tem sustentado um discurso ambíguo em relação aos sikhs. Notáveis exemplos de engajamento com o grupo foram a celebração pública do aniversário do fundador da religião, Guru Nanak, e a inauguração do Corredor de Kartarpur, que facilita a peregrinação dos sikhs indianos a um dos locais mais sagrados de sua religião no Paquistão. Por outro lado, as novas leis agrícolas introduzidas em 2020 ocasionaram protestos no estado do Punjab, receberam uma resposta crítica e foram interpretadas como insensíveis (VISHWADEEPAK, 2021). Modi classificou os protestos como uma “conspiração” influenciada por ideologias estrangeiras, porém, acabou por revogar após meses de intensos protestos (VISHWADEEPAK, 2021). O silêncio de Modi diante de controvérsias de polarização e tensões religiosas é uma marca de sua trajetória política. Entretanto, no que tange os sikhs, tentativas de ruptura com a comunidade são capazes de gerar represálias significativas. Um dos partidos de Punjab, o Shiromani Akali Dal, rompeu com a aliança BJP devido ao tratamento do governo Modi em relação às questões agrícolas, o que oferece um indicativo do potencial disruptivo do aumento de tensões entre hindus e sikhs no país.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como proposto, este artigo tem como foco entender a relação de poder do sikhismo dentro da sociedade moderna indiana, aplicando como marco teórico o construtivismo. A experiência sikh demonstra que as concepções tradicionais de Estado, no sentido racionalista de formação com base em questões puramente materiais e estratégicas, são insuficientes para abranger a influência sociocultural de sociedades com peso significativo dentro de sua jurisdição. É notável a diferença dessa experiência frente a movimentos de ascensão da extrema direita mundial, característicos por sua perseguição a minorias e cerceamento de direitos. A sociedade sikh parece manejar, com notável habilidade, seu capital político em direção a um posicionamento mais moderado das forças de Modi e do BJP. Como consequência, doutrinas como o Hindutva são desafiadas pela construção sócio-cognitiva de pertencimento sikh e sua contribuição para a formação do Estado indiano.
Os resultados da eleição de 2024 confirmaram o terceiro mandato em sequência de Narendra Modi, abrindo uma nova possibilidade de análise da conjuntura sikh em uma possível continuação das políticas internas. É necessário continuar a análise da pressão existente pelo movimento do Calistão e suas demandas sobre o governo indiano nessa renovação de gestão, para assim entender de que maneira a Índia vai lidar com suas questões religiosas.
REFERÊNCIAS
ADLER, E. O construtivismo no estudo das relações internacionais. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, n. 47, p. 201–246, ago. 1999.
BUREAU, E. Punjab Lok Sabha elections: End of BJP-SAD alliance, farmers protest & panthic vote split defining electio. Disponível em: <https://economictimes.indiatimes.com/news/elections/lok-sabha/india/end-of-bjp-sad-alliance-farmers-protest-panthic-vote-split-defining-election/articleshow/110573214.cms?from=mdr>. Acesso em: 21 ago. 2024.
FAIR, C. C. DIASPORA INVOLVEMENT IN INSURGENCIES: INSIGHTS FROM THE KHALISTAN AND TAMIL EELAM MOVEMENTS. Nationalism and Ethnic Politics, v. 11, n. 1, p. 125–156, abr. 2005.
JETLY, R. THE KHALISTAN MOVEMENT IN INDIA: The Interplay of Politics and State Power on JSTOR. International Review of Modern Sociology. V.34, n. 1, p. 61-75, 2008.
NEWTON, P. Canadá vê ligação do governo indiano com assassinato de líder religioso e abre investigação, diz Trudeau. Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/canada-investiga-ligacao-do-governo-indiano-com-morte-de-lider-religioso-diz-trudeau/>. Acesso em: 16 set. 2024.
SINGH, K. A History of the Sikhs: 1469-1838. [s.l.] Oxford University Press India, 2004.
SINGH, L. , N. Economic Transformation of a Developing Economy. [s.l.] Springer Nature, 2016.
VISHWADEEPAK. Modi hails Sikhs but denounces their protests in RS speech; no word on farmers’ deaths and repeal of laws. Disponível em: <https://www.nationalheraldindia.com/india/modi-hails-sikhs-but-denounces-their-protests-in-rs-speech-no-word-on-farmers-deaths-and-repeal-of-laws>.
Aliria Ildefonso Granja é Graduanda em Defesa e Gestão Estratégica Internacional no Instituto de Relações Internacionais e Defesa da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IRID-UFRJ) e pesquisadora do Laboratório de Estudos Asiáticos (LEA).
Gabriel Paradela Heil é Graduando em Defesa e Gestão Estratégica Internacional no Instituto de Relações Internacionais e Defesa da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IRID-UFRJ) e pesquisador do Laboratório de Estudos Asiáticos (LEA).