A ÍNDIA E SUAS ASPIRAÇÕES INTERNACIONAIS NOS MOMENTOS DE TRANSIÇÃO DE PODER: UM PARALELO ENTRE O FIM DA GUERRA FRIA E A ASCENSÃO DA CHINA
Edição Especial: Ásia
Volume 11 | Número 113 | Nov. 2024
Por Matheus Petrelli
INTRODUÇÃO[1]
Este artigo tem como objetivo investigar como os momentos recentes de transição do poder global foram relevantes para o projeto de ascensão da Índia, a partir da análise das posturas tomadas pelo país sul-asiático. Inicialmente, ao buscar tais períodos na história mais recente, destacam-se os dois mais próximos cronologicamente: o fim da Guerra Fria e a ascensão chinesa, a partir da crise de 2008.
O primeiro marcou o fim da bipolaridade no controle do sistema internacional. Tendo em vista a formação de uma hegemonia estadunidense, alguns teóricos acreditavam tanto na sua estabilidade quanto na do sistema internacional. Ao contrário disso, em 2008, uma grande crise econômica atingiu parte das potências globais. Já a China, com elevadas taxas de crescimento econômico desde o início do século XXI, não foi amplamente afetada pelos efeitos da crise. Esse momento foi responsável por iniciar, de forma mais prática e evidente, um novo processo de transição de poder. Agora, o país asiático disputa com os EUA o lugar de principal ator no sistema internacional.
Períodos como os citados são, para muitos teóricos, fundamentais para a governança mundial. Esses processos de crise do hegemon e a emergência de um novo foram, historicamente, pontos de mudança nos rumos internacionais. Dessa maneira, é evidente a importância de analisar os padrões empíricos e diferenciar quais tomadas de decisões são favoráveis ou não à formação de um conflito. É nesse contexto que as teorias de transição de poder são elaboradas.
Conforme a evolução teórica, novas variáveis foram sendo adicionadas a esse tipo de estudo. Dentre elas, a projeção de possíveis países capazes de ascender. É nesse caminho que o continente asiático aparece. Após o fim da Guerra Fria, inúmeros analistas da área apontaram que o século XXI seria o século da Ásia (GRATIUS, 2008). Dentre os Estados com capacidades para tal, a Índia apareceu, ao lado da China, como um país com grande potencial de crescimento.
Ao possuir cerca de 15% da população global, estar localizada no continente asiático, situar-se na região mais nuclearizada do mundo e ter o potencial de ser terceira maior economia global até 2030, a Índia ocupa, progressivamente, um papel de destaque no cenário internacional. Nessa linha, o objetivo deste trabalho é analisar o processo de ascensão internacional indiana e as estratégias utilizadas para efetivar suas aspirações de grande potência.
A partir do método qualitativo de levantamento documental e bibliográfico, este trabalho fundamenta-se em estudos acadêmicos sobre a política externa indiana, e a relação entre momentos de transição de poder e ascensão de novas potências. Ao analisar tal base teórica, é possível levantar algumas hipóteses. De forma geral, a Índia adotou posturas diferentes visando a busca do protagonismo internacional em distintos períodos de transição de poder. Na década de 90, após a Guerra Fria, o governo indiano se portou como um poder reticente nas relações internacionais, ao não adaptar a política externa empregada durante à Guerra Fria a um contexto distinto de fim da bipolaridade. Dessa maneira, argumenta-se que o país adotou uma agenda de política externa considerada ultrapassada durante esse período de transição, tornando-a incapaz de alcançar suas aspirações internacionais.
No momento mais recente, afere-se que, após a ascensão da China como potência internacional e o início de um novo período de transição de poder, a Índia tem buscado maior protagonismo nas relações internacionais. Assim, nesse novo momento, essa pesquisa argumenta que a Índia atua de forma mais revisionista e influente, visando alcançar, intencionalmente, o papel de liderança global. Acrescentamos, ainda, que este trabalho possui o objetivo de suprir uma lacuna na academia brasileira, uma vez que este é um tema ainda pouco trabalhado em português.
Para atingir esses objetivos, este artigo será dividido em três seções. Na primeira serão analisados alguns autores relevantes para as teorias de transição de poder e ascensão de novas potências. A partir dessa revisão teórica será possível compreender o que são períodos de transição de poder, quais métricas utilizadas para identificar novas potências e a evolução desse campo teórico. Na sequência, a postura indiana ao fim da Guerra Fria será examinada, com objetivo de investigar se a Índia conseguiu se posicionar de forma a ascender na hierarquia global durante esse período de transição. Por fim, a última seção também irá analisar a postura do país sul-asiático, mas em um recorte mais recente: desde 2008 e a ascensão chinesa. A partir disso, espera-se investigar se houve mudanças nesse posicionamento e quais seus efeitos nas aspirações indiana de grande potência.
- O QUE É PRECISO PARA ASCENDER?
Ao se analisar as transições de poder, primeiramente, torna-se necessário visitar alguns teóricos que abordam uma perspectiva estrutural do sistema internacional. Um dos nomes de destaque é Robert Gilpin (2001), que afirma que os períodos de maior solidez do sistema correspondem à existência de um ator protagonista e central: um hegemon que não só dite as regras do sistema, mas esteja compromissado com os princípios da economia liberal. Conhecida como teoria da estabilidade hegemônica, esse arcabouço teórico foi construído a partir da crença em um sistema internacional estável sob a hegemonia dos EUA no pós-Guerra Fria. Diferente do esperado, a crise de 2008 demonstrou certo declínio do protagonismo estadunidense. Variando em alguns aspectos, esses momentos de declínio do hegemon são estudados por acadêmicos a partir de diversas perspectivas.
Organski (1968) foi um autor relevante para o desenvolvimento das teorias de períodos de transição de poder e ascensão de novas potências. Ao contrário de Gilpin, Organski já havia afirmado, no contexto da Guerra Fria, que “quem quer que ganhe a disputa atual será, eventualmente, confrontado com novos adversários” (ORGANSKI, 1968, p. 339, tradução nossa). De forma oposta à teoria da estabilidade hegemônica, o autor afirma que “as nações estão em constante troca no poder e grande parte dessas mudanças acontece internamente” (ORGANSKI, 1968, p. 346, tradução nossa). Ao apontar para a relevância de questões nacionais no processo de ascensão dos Estados no sistema internacional, Organski reafirma sua visão de que “os principais fatores determinantes ao poder como nação são o tamanho populacional, a eficiência política e o desenvolvimento econômico” (ORGANSKI, 1968, p. 338, tradução nossa). Partindo disso, ele aponta para a questão demográfica como essencial na identificação prévia de países com potencial para ascender. De acordo com seu livro, quanto menor a população, menores são suas potencialidades (ORGANSKI, 1968, p. 341, tradução nossa).
Segundo o autor, aqueles países em busca da ascensão precisariam passar por três etapas em seu desenvolvimento: o poder potencial; transformação do crescimento em poder; e maturação do poder. Os “estágios de transição” (ORGANSKI, 1968), de forma geral, tratam do processo de transformação de uma economia agrária para uma industrializada como meio para a modernização e evolução das estruturas classificadas como relevantes para a ascensão – demográfica, política e econômica. A partir desse desenvolvimento o Estado seria capaz de aumentar seu poder de influência sobre outros e, como consequência, ascenderia na hierarquia mundial. Outro ponto relevante tratado pelo autor é sobre como a transição de poder pode afetar o sistema internacional:
(…) a rapidez com que uma nação ganha poder depende, em grande medida, da velocidade com que se industrializa, e ambos os fatores têm uma grande influência no grau em que a ascensão de uma nova potência perturba a comunidade internacional (ORGANSKI, 1968, p. 342, tradução nossa).
Complementando essa ideia, Kim (1991) adiciona a relação do status quo nessa equação. Enquanto Organski coloca a perspectiva das potências vigentes sobre a emergência de um novo país, Kim inverte essa lógica. Ao centralizar a relação do país em ascensão com o status quo do sistema internacional, o autor passa a analisar a partir de outra ótica: “se a potência desafiadora estiver insatisfeita com a ordem internacional criada pela nação dominante e seus aliados, e se recusar a respeitar as regras do sistema existente, então o perigo de um conflito entre grandes potências é maior” (KIM, 1991, p. 837, tradução nossa). Outro ponto de divergência entre os autores é acerca da importância de aspectos externos no processo de emergência na hierarquia mundial. Enquanto Organski foca no desenvolvimento industrial, Kim afirma que a disputa pelos “’poderes’ disponíveis” por meio de “alianças e contra alianças” se somam ao desenvolvimento interno como determinantes para o crescimento do poder nacional (KIM, 1991, p. 836, tradução nossa).
Nessa linha, Miller (2021) adicionou alguns conceitos às teorias de transição de poder e ascensão de novas potências. A autora também aponta para fatores externos como complementares ao desenvolvimento interno: “uma potência em ascensão, ou um país que deseja se tornar uma grande potência, deve aumentar o seu poder militar e econômico; começar a globalizar os seus interesses; e a ser reconhecido como uma futura grande potência” (MILLER, 2021, p. 9, tradução nossa). Segundo ela, aqueles Estados que focam em desenvolver apenas suas capacidades nacionais, assim como afirma Organski, acabam se tornando nações “reticentes”. Por outro lado, os países que conseguem alinhar os três fatores alcançam o status de “potências ascendentes ativas”. O processo de globalização dos interesses e reconhecimento internacional, de acordo com Miller, acontece por meio do conceito de idea advocacy. Este trata da
(…) geração de novas ideias e a recombinação de existentes pelas elites de uma potência em ascensão para formar novas narrativas sobre o comportamento adequado do país como futura grande potência. Estas novas, em conjunto com as capacidades crescentes de uma potência em ascensão, levam-na a adquirir autoridade global e a moldar o reconhecimento de seu protagonismo (MILLER, 2021, p. 11, tradução nossa).
Portanto, ao analisar os autores, é possível perceber uma progressão nesse campo teórico. A forma com a qual as teorias se complementam faz com que elas possuam cada vez maturidade, aplicabilidade e contemporaneidade. Como esses momentos de transição de poder abrem janelas de oportunidade para a ascensão de potências emergentes, reforça-se que são contextos relevantes para estudar os projetos de aumento de protagonismo internacional destas. Dessa forma, após trabalhar o campo teórico, a próxima seção deste artigo tratará da prática, ao analisar a postura da política indiana durante e ao fim da Guerra Fria.
2. A GUERRA FRIA E AS ASPIRAÇÕES INDIANAS
O pós-Segunda Guerra Mundial foi de extrema importância para a história indiana. Em 1947, o país finalmente conseguiu sua independência, mas em um contexto ainda conflituoso. O atrito nas relações com o Paquistão e China fez com que a Índia buscasse aliados no continente visando certo equilíbrio de poder (ALBUQUERQUE, 2022). A União Soviética foi a principal parceira da Índia durante esse período, pois, além do país sul-asiático ser o maior importador de armas, partes do programa estatal indiano foi construído a partir de padrões soviéticos (SENNES, 2001).
Apesar dessa proximidade, uma das caraterísticas principais da política externa indiana é a “desconfiança intrínseca aos atores ocidentais e à interferência externa” (ALBUQUERQUE; LIMA, no prelo, p. 6). Graças a esses pilares conceituais, o país foi um dos principais protagonistas no movimento de não alinhamento por conta de sua postura ativa na luta pelo posicionamento internacional autônomo, enquanto apontava os embates desiguais entre o norte e o sul global como causa para a dificuldade no desenvolvimento socioeconômico. (ALBUQUERQUE; LIMA, no prelo). Nesse sentido, observa-se certo protagonismo internacional por parte da Índia na defesa das demandas do então “Terceiro Mundo”.
Um dos elementos que os teóricos da transição de poder apontam é o crescimento do poder material, que contempla tanto questões militares quanto econômicas. Na área militar, após a derrota para a China em 1962, em um conflito fronteiriço, – considerada pelos indianos como humilhante -, a região entrou em uma espécie de corrida armamentista:
A China apoiou o Paquistão nas guerras de 1965 e 1971 contra a Índia e contribuiu para o desenvolvimento do seu arsenal de armas nucleares. Enquanto isso, o programa indiano de armamento nuclear foi acelerado graças aos testes de armas nucleares feitos pela China em 1964 (SCOTT, 2011, p. 234, tradução nossa).
Analisando a economia, a Índia manteve, entre 1950 e 1980, um crescimento em seu Produto Interno Bruto de cerca de 3,5% (KAPILA, 2015). Apesar do saldo positivo, ainda era um país agrário e desigual. A partir da década de 1970, o Estado passou a enfrentar algumas crises econômicas graças aos choques do petróleo e, em 1981, solicitou empréstimos ao Fundo Monetário Internacional (FMI). Como consequência, foi pressionada a iniciar um processo de liberalização econômica. Diferente de grande parte dos países do sul global, esse movimento, na Índia, conseguiu manter o controle das empresas sob a elite nacional (SANTANA, 2012).
Portanto, ao analisar o Estado indiano durante esse período a partir dos elementos elegidos pelos teóricos de ascensão de novas potências, é possível perceber que, enquanto a Índia conseguiu adquirir certo poder de influência no sistema internacional, suas capacidades militares e econômicas não foram suficientes para colocá-la em posição emergente. Além disso, é válido ressaltar que, diferente do fim da Guerra Fria, o período de bipolaridade não pode ser considerado como um de transição e, dessa maneira, mudanças na hierarquia mundial eram muito difíceis. A partir da dissolução da União Soviética e suas consequências, o cenário passou a oferecer novas possibilidades àqueles países que desejavam ascender.
Para a Índia, em particular, a queda de seu principal aliado representou a necessidade de mudanças. A partir da década de 1980, o foco passou para o desenvolvimento de suas capacidades internas. Graças a manutenção das grandes empresas sob controle nacional, o governo foi capaz de implementar reformas visando o crescimento econômico. Em paralelo, por conta da tensão militar com seus vizinhos, o investimento em desenvolvimento de armas nucleares foi constante. Assim, ao final do século XX, a Índia possuía um status de país com capacidades militares nucleares. Apesar de conseguir evoluir suas capacidades internas, o governo indiano apresentou certa estagnação em sua postura internacional, pois o aumento das capacidades materiais não veio acompanhado do “idea advocacy” e da busca de autoridade globalizada.
(…) se olharmos para as ideias de política externa da Índia nessa altura, em vez de narrativas sobre como alcançar um grande poder, encontramos muita continuidade da era da Guerra Fria – ideias que falavam do passado da Índia como um país não alinhado e que não se conformavam com expectativas impostas pelo Ocidente sobre como alcançar o grande poder (…) as potências ativas em ascensão conciliam três tipos de desenvolvimento: aumentam o seu poder econômico e militar, globalizam sua autoridade e tentam moldar as percepções do seu status em mudança. Na década de 1990, a Índia tinha certamente adotado o primeiro tipo de comportamento. […] Mas mostrou uma curiosa reticência no que diz respeito ao segundo e terceiro tipos (MILLER, 2021, p. 120-121, tradução nossa).
Como resultado, ao desenvolver apenas um dos indicadores relevantes durante o período de transição de poder ocorrido no pós-Guerra Fria, a Índia se apresentou como um país reticente. Essa realidade sofreu alterações no segundo período de análise deste artigo: a ascensão chinesa.
3 O PÓS-2008 E AS ASPIRAÇÕES INDIANAS
Nessa nova seção, exploraremos a postura indiana durante o século XXI com objetivo de investigar se houve uma mudança em sua política e se há um prognóstico favorável à sua ascensão. Em 2001, Kugler, Tammen e Swaminathan (2001), baseado em autores como Organski (1968) e Kim (1991), publicaram um artigo projetando possíveis cenários para o século XXI. Utilizando as teorias de transição de poder e ascensão de novas potências eles afirmam que sua análise “prevê que os desafios ao domínio dos EUA surgirão principalmente da Ásia no século XXI. A China e a Índia são identificadas como potenciais candidatas devido à sua esmagadora base populacional e ao seu potencial de crescimento econômico” (KUGLER et. al, 2001, p. 5, tradução nossa).
Apesar de sua reticência no contexto do pós-Guerra Fria, a Índia apresentava, em teoria, potencialidades similares ao Estado chinês. Analisando os principais indicadores internos de acordo com os teóricos de ascensão de novas potências, percebe-se que ambos os países apresentavam uma demografia favorável e uma elevada margem para desenvolvimento econômico. A partir disso, formar-se-ia uma massa produtiva que alavancaria a economia desses países. Ademais, projeções apontavam para o fim da transição demográfica chinesa em 2025 enquanto a Índia permaneceria em tendência de crescimento populacional até 2050: “depois de 2050, partindo do princípio de que a Índia estabilizará a sua população e manterá níveis elevados de crescimento, é que surgirão as condições para uma ultrapassagem de poder” (KUGLER et.al, 2001, p. 19, tradução nossa). Partindo da relação entre demografia e economia, apesar da desaceleração da economia mundial graças a crise de 2008, a economia indiana conseguiu manter taxas de crescimento anuais acima de 6% e, portanto, ao lado da China, se tornou um dos principais responsáveis pelo crescimento econômico global (MANZI; LIMA, 2021).
Como visto, outra capacidade interna necessária para a ascensão como potência é a militar. A partir de seu programa nuclear, a Índia já apresentava, no pós-Guerra Fria, ferramentas que a colocavam entre os países mais potentes nesse aspecto. Além disso, graças as tensões fronteiriças, historicamente, a Índia apresenta um investimento elevado na área militar. Portanto, fica evidente a manutenção do desenvolvimento das capacidades internas ocorridas desde o final do século passado.
É valido ressaltar que o aspecto pendente na ascensão indiana durante o pós-Guerra Fria estava atrelado à sua atuação internacional, e não ao aumento do poder econômico-militar (MILLER, 2021). A partir do atentado de 11 de setembro esse cenário começa a mudar. O discurso estadunidense de guerra ao terror fez com que o Paquistão – rival histórico indiano e país com maioria populacional islâmica – passasse a ser um ator relevante como possível barreira à política externa da potência norte-americana de combate a grupos terroristas. Como consequência, os Estados Unidos iniciaram um processo de reaproximação com a Índia. Um grande símbolo desse movimento foi a declaração conjunta, em 2008, dos chefes de Estado dos dois países, no qual os EUA intitularam a Índia como “um Estado responsável com tecnologia nuclear avançada que merece adquirir os mesmos benefícios e vantagens que outros Estados nucleares” (BHATIA, 2017, p. 127). Além de interesses relacionados ao Paquistão, o governo indiano era visto como
(…) uma democracia robusta e diversificada, o único país que podia rivalizar com a China em termos de dimensão e de população na Ásia, mantendo simultaneamente um compromisso com as normas da democracia liberal. Em muitos aspectos, parecia que a Índia era um parceiro “natural” para os defensores da atual ordem internacional liberal (MILLER, 2021, p. 124, tradução nossa).
Esse novo papel na balança internacional de poder coloca a Índia em uma posição de certo protagonismo internacional. Para o Ministro das Relações Exteriores da Índia, S. Jaishankar (2024), seu país está pronto para “interagir com os EUA, gerir a China, cultivar a Europa, tranquilizar a Rússia, envolver o Japão, atrair os vizinhos, alargar a vizinhança e expandir os círculos tradicionais de apoio” (JAISHANKAR, 2024, p.1). Percebe-se uma mudança na postura da política externa indiana se comparada ao final da Guerra Fria. A busca pelo assento fixo no Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) representa esse novo momento. Junto com Alemanha, Brasil e Japão, a Índia faz parte do G4, grupo que reivindica uma reforma no CSNU, especialmente voltada aos membros permanentes (ALBUQUERQUE, 2022).
Além disso, desde sua reaproximação com a Associação de Nações do Sudeste Asiático (ASEAN), a política externa indiana tem progressivamente aumentado sua relevância no sistema internacional. Sendo “simultaneamente, uma prioridade para os EUA, a Rússia e a China” (ALBUQUERQUE; LIMA, no prelo, p. 13), a Índia tem conseguido se beneficiar das disputas geopolíticas globais. Por um lado, faz parte dos BRICS – grupo de países formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul -, Organização para Cooperação de Xangai, e consegue, apesar de algumas tensões históricas, manter parcerias relevantes com os governos russo e chinês. Por outro lado, desde os atentados de 11 de setembro, tem sido percebida como uma potência nuclear aceitável aos olhos ocidentais (ALBUQUERQUE; LIMA, no prelo). Como símbolo dessa aproximação à países aliados aos EUA, em 2017, a Índia lançou, junto com o Japão e a Austrália, o QUAD, um grupo quadrilateral que visa a manutenção da democracia e segurança na Ásia. Além desses movimentos, a presidência indiana no G20, em 2023, foi considerada, não só, bem-sucedida, mas também, uma forma de “agregar valor substantivo a representatividade de seu Estado” (RAKHRA, 2023, p.91, tradução nossa).
Dessa maneira, diferente do final do século passado, a Índia tem se portado de forma ativa em sua política externa. Outro pilar essencial para a ascensão de um país como potência para Miller (2021) é o conceito de idea advocacy. Para Albuquerque e Lima,
O ressurgimento da aspiração da Índia ao status de grande potência tem uma explicação em sua política interna, uma vez que a ascensão do Partido Bharatyia Janata (BJP) nas últimas décadas provocou mudanças profundas no comportamento do país. Como um partido que defende o nacionalismo, as tradições e a cultura hindus, o BJP adotou políticas que destacam a inevitabilidade da visão de mundo indiana (ALBUQUERQUE; LIMA, no prelo, p. 11-12).
Portanto, percebe-se, nesse novo período de transição, a partir de 2008, que a Índia tem buscado aumentar seu poder econômico e militar, globalizar sua autoridade e mudar a percepção do mundo quanto à sua relevância no sistema internacional. Cumprindo os parâmetros estabelecidos pelos teóricos de transição de poder e ascensão de novas potências, é possível perceber que “embora a Índia tenha atendido apenas parcialmente aos critérios após a Guerra Fria, agora ela abraçou de todo o coração seu desejo de ser reconhecida como uma grande potência” (ALBUQUERQUE; LIMA, no prelo, p. 15).
CONCLUSÕES
Após analisar autores relevantes para as teorias de transição de poder e ascensão de novas potências, foi possível compreender como as potencialidades indianas estão alinhadas com suas aspirações de protagonismo no sistema internacional. Comparando os dois marcos temporais aqui examinados – o fim da Guerra Fria e pós-2008 com a ascensão chinesa -, é possível perceber diferentes posturas tomadas pela Índia. No final do século XX, o governo indiano não conseguiu efetivar suas aspirações de potência. Apesar de certo desenvolvimento econômico e militar, por manter sua política externa alinhada com agendas que eram latentes durante a Guerra Fria, em outro contexto internacional, acabou se tornando um país reticente. Desde a virada do século XXI e, de forma mais acentuada, a partir da ascensão da China desde 2008, a Índia tem, progressivamente, buscado uma atuação mais influente no sistema internacional. Mantendo seu crescimento econômico estável, elevados investimentos na área militar e ocupando papéis centrais na dinâmica de poder global, a Índia tem caminhado para alcançar o posto de “potência ascendente ativa”.
Tendo em vista a contemporaneidade desse contexto de ascensão indiana e a dinamicidade do sistema internacional, novas agendas de pesquisa são possíveis. Como exemplo, é possível citar a reeleição do Primeiro-Ministro Narendra Modi, em 2024, e seus efeitos no projeto de ascensão indiana. Outro ponto a ser investigado é a visita de Modi à Polônia e Ucrânia e a como política externa da Índia pode ser afetada pela reinserção da Rússia como ator geopolítico relevante. Além disso, fica em aberto para futuras agendas de pesquisa a análise do impacto da postura indiana de certa oposição às agendas ambientais, propostas em organismos multilaterais, e os impactos em sua percepção como possível líder da governança global.
REFERÊNCIAS
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[1] Este artigo é uma versão reduzida do trabalho de conclusão de curso do autor.
Matheus Petrelli é Graduando em Defesa e Gestão Estratégica Internacional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Atua como pesquisador de política externa indiana pelo Laboratório de Estudos Asiáticos (LEA) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e integra o Observatório Político Sul-Americano (OPSA) do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP), que pertence à Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Além disso, faz parte da iniciativa “De Olho no Front”, do curso de Defesa e Gestão Estratégica Internacional (IRID/UFRJ), que produz conteúdos sobre a conjuntura, defesa e segurança Internacional no Twitter, no Instagram e em podcasts.