Resenha: Filme “Jogos de Poder” e uma perspectiva Construtivista sobre a construção do “outro” durante a Guerra Fria
Volume 12 | Número 116 | Mar. 2025
Por Laís Simões Lima

JOGOS de Poder. Direcção Mike Nichols. Produção: Tom Hanks Gary Goetzman. Estados Unidos: Universal Pictures, 2007.
O filme intitulado “Jogos do Poder” (Charlie Wilson’s War) é uma produção americana de 2007, dirigida por Mike Nichols e estrelada por grandes nomes como Tom Hanks, Julia Roberts e Philip Seymour Hoffman. O enredo se desenrola durante a Guerra Fria, quando o congressista Charlie Wilson, o protagonista, desvia sua atenção da necessidade de estar rodeado por lindas mulheres em seu escritório e de realizar favores políticos a figuras locais, e passa a se empenhar em obter financiamento para o grupo Mujahedin (combatentes afegãos que resistiram à invasão soviética nesse período). Nesse sentido, a resenha propõe-se a avaliar o posicionamento “altruísta” dos Estados Unidos, centrado na figura de Wilson, durante as décadas de 1970 e 1980, período em que as duas maiores potências (Estados Unidos e URSS) disputavam uma corrida pelo controle da soberania no sistema internacional. Discutir-se-á também como a construção do “outro”, dentro da perspectiva construtivista, marcou a Guerra Fria e de que maneira isso se apresenta no filme.
Para Adler (1999), o construtivismo é uma perspectiva paradigmática que nos permite enxergar todas as realidades como socialmente construídas, sejam elas consideradas “boas” ou “más”. É sob essa ótica que se torna possível analisar o sentido de “poder”. O conceito de poder ultrapassa a simples ideia de ser a capacidade de impor a própria vontade ou visão sobre os outros por meio de recursos materiais ou força. O poder também envolve uma dimensão mais sutil e profunda: reside na manipulação que define e molda os significados compartilhados que orientam as interações sociais, políticas e econômicas. Dessa forma, o construtivismo em Adler (1999) se manifesta na capacidade de influenciar a maneira como as identidades, os interesses e os inimigos são entendidos.
Dentro do contexto da Guerra Fria, a invasão soviética justificou-se por um receio de que o Afeganistão se tornasse um país que estivesse no radar dos EUA, influenciado pela retórica ocidental como o que ocorreu com o Irã (antes de 1979), Turquia e Paquistão. Contudo, existem diversas outras variáveis envolvidas, o que torna arriscado atribuir um único motivo a esse conflito. Entre essas motivações, destacam-se fatores econômicos, como os investimentos de décadas na região; fatores políticos, como a derrota do partido comunista no país; fatores sociais, como a guerra civil; e fatores geopolíticos, como a área de influência (Rieger e Teixeira, 2013, p. 35). A verdade é que a região ganhou uma importância significativa durante o processo de decisão e manutenção do conflito, participando ativamente da disputa no mundo bipolar e reativando as tensões entre as grandes potências.
Rieger e Teixeira (2013) também discutem que os desdobramentos iniciais após a investida soviética no território afegão foram percebidos e imediatamente discutidos entre políticos norte-americanos. Porém, de maneira proposital, uma das estratégias adotadas pelos EUA foi a não intervenção, a princípio, acreditando que a invasão soviética resultaria em um fracasso histórico para a URSS.
A estratégia norte-americana evidencia-se no que foi trazido pelo construtivismo e, ao relacionarmos o conceito de poder à criação de discursos, observamos que a capacidade de moldar a imagem do “outro” depende não apenas de recursos tradicionais, como influência política ou controle da mídia, mas também da habilidade de controlar as normas que guiam as interpretações coletivas. Por exemplo, ao utilizar os meios de comunicação globais, narrativas podem ser amplificadas com o intuito de descredibilizar as estratégias políticas de um Estado. Portanto, é possível verificar a tomada de decisão de não intervenção estadunidense no contexto analisado, a partir do segundo pilar que Amin Saikal (2010) debate, baseado em uma campanha diplomática e de propaganda para impedir os soviéticos de alcançar apoio internacional para sua invasão.
A maneira como o filme constrói quem ocupa os papéis de herói, vítima e vilão é intencionalmente feita para comunicar ao espectador como os Estados Unidos foram cruciais para “libertar” o povo afegão das ameaças socialistas. Nesse sentido, a dinâmica entre Charlie Wilson e Joanne Herring, estadunidenses, bem como a interação com os líderes paquistaneses, reitera como a percepção e a interpretação de situações podem influenciar decisões políticas em um contexto internacional.
Herring, como amiga e interesse romântico, representa uma voz persuasiva que instiga Wilson a agir em prol dos afegãos, que viaja até o território para constatar o apelo da amiga. É nesse momento que o filme retrata em algumas cenas a brutalidade da ocupação soviética, mostrando os efeitos devastadores da guerra sobre a população civil focando a narrativa nas histórias pessoais e na determinação do povo afegão em lutar pela sua liberdade.
Os heróis norte-americanos, especialmente Charlie Wilson, são retratados como figuras genuinamente preocupadas com o bem-estar dos afegãos. Impulsionado por uma combinação de empatia pessoal e ambições políticas, Wilson decide agir para ajudar os mujahedin. De maneira velada, o subconsciente do espectador passa a desenvolver uma imagem positiva dos EUA como defensores da liberdade e da democracia, em oposição à opressão soviética que causa desespero e miséria.
O filme “Jogos do Poder” impactou a maneira como as retóricas desenvolvidas no contexto da Guerra Fria podem ser observadas, especialmente ao abordar as dinâmicas de poder e a construção de narrativas que moldam identidades nacionais e interesses geopolíticos, conforme discutido na perspectiva construtivista. Ao apresentar a intervenção dos EUA no Afeganistão como uma ação heroica destinada a combater a opressão soviética, o filme simplifica a complexidade dos conflitos da época, levando à promoção de uma visão dicotômica que vilaniza a União Soviética enquanto exalta os valores americanos. Essa representação pode acabar reforçando estereótipos culturais e legitimando intervenções futuras sob o pretexto de defender a liberdade, ao mesmo tempo que mobiliza sentimentos patrióticos e reduz o jogo político entre vilões e mocinhos.
REFERÊNCIAS
ADLER, Emanuel. O construtivismo no estudo das relações internacionais. Lua Nova: revista de cultura e política, p. 201-246, 1999.
JOGOS de Poder. Direcção Mike Nichols. Produção: Tom Hanks Gary Goetzman. Estados Unidos: Universal Pictures, 2007.
RIEGER, Fernando; TEIXEIRA, Yves. A invasão soviética ao Afeganistão e suas consequências para a Guerra Fria. Revista Perspectiva: Reflexões Sobre a Temática Internacional, Rio Grande do Sul, n. 10, p. 27-41, 2013.
SAIKAL, Amin. Modern Afghanistan: A History of Struggle and Survival. New York: L.B.Tauris, 2004
Laís Simões Lima é estudante de Defesa e Gestão Estratégica Internacional e membro do Núcleo de Artes, Interculturalidade e Política Internacional (NAIPI) do IRID-UFRJ.