Resenha: Filme “BACURAU:Se for, vá na paz

Volume 12 | Número 116 | Mar. 2025

Por Bryan Barros Bizarello Morais

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BACURAU. Direção: Juliano Dornelles, Kleber Mendonça Filho. Pernambuco: Vitrine Filmes, 2019. (131 min).

Bacurau é um filme franco-brasileiro lançado em 2019, escrito e dirigido pelo diretor Kleber Mendonça Filho e por Juliano Dornelles, estrelado por grandes nomes como Sônia Braga, Silvero Pereira, Bárbara Colen e Udo Kier. Indicado a diversas premiações internacionais, como Cannes, Chicago Film Critics Association Awards, Sitges (Catalonian International Film Festival), foi vencedor em seis categorias no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro. 

A trama se passa em um futuro distópico não muito longe do momento atual e apresenta a pequena e pacata Bacurau, uma cidade fictícia localizada no interior do sertão nordestino, que é aos poucos assediada e perturbada por estrangeiros. Ao longo do filme a população local enfrenta diversas situações inusitadas e violentas que podem ser compreendida através do conceito da necropolítica de Mbembe (2018).

O Nordeste brasileiro possui uma das três grandes áreas semi-áridas da América do sul; com temperaturas médias anuais muito elevadas e constantes, baixos níveis de umidade, escassez de chuvas anuais, prolongados períodos sem água, solos parcialmente salinos e ausência de rios perenes. Essa área detém um total de 700 mil km², no qual cerca de 23 milhões de brasileiros vivem. Um exemplo de obra ficcional da literatura brasileira que se passa nesse cenário e que destaca a ausência extrema de água é ‘Vidas Secas’, de Graciliano Ramos, que narra a trajetória de uma família de retirantes tentando permanecer vivos à seca, evidenciando a pobreza extrema, a desigualdade e as opressões sociais que assolam a região.

A pequena comunidade fictícia de Bacurau fica localizada em meio a caatinga, o bioma predominante do nordeste com clima semiárido. Em uma das primeiras sequências do filme acompanhamos a dificuldade que é levar água potável para a região, com o exemplo da construção de uma barragem no rio que alimenta a cidade, o que dificulta o acesso a um direito básico aos moradores. Essa situação evidencia o problema de acesso à água que as pequenas cidades do interior têm e a ausência do Estado para essa problemática. O longa-metragem nos demonstra como o acesso à água e os problemas climáticos da região são um desafio para as classes mais baixas da sociedade, assim como pode ser observado em ‘Vidas Secas’.

A necropolítica é o conceito criado por Achille Mbembe (2018) no qual define o poder que ao Estado detém para determinar, via políticas de segurança pública, quem pode permanecer vivo e quem deve morrer, através de ações ou omissões, geralmente direcionadas para grupos ou setores da sociedade em contextos de desigualdade e/ou condições de vida precárias. 

Esse poder se relaciona com o longa-metragem não só com o desenrolar da narrativa, mas também com a escolha da distopia enquanto estética, pois “… nas distopias, as personagens convivem com variados níveis de ameaça; submetem-se aos métodos mais perversos de coerção; padecem devido ao sadismo daqueles que se regozijam em punir quem ousou ultrapassar os limites e confrontar a ordem” (CHAUVIN, 2024, p. 33). A narrativa é construída de forma distópica, se passando em um futuro próximo, o que possibilita a apresentação de uma realidade de violência extrema, com os diversos níveis de ameaças que os personagens enfrentam. 

As situações sádicas e violentas pelas quais os moradores de Bacurau passam, revelam o exercício de poder de uma classe estrangeira, que se considera superior, sob uma classe local, considerada como inferior, sendo identificável essa dinâmica pelo jeito que se portam em relação aos locais nacionais. Ao decorrer do filme descobrimos que a matança cometida pelos estrangeiros está ligada ao Estado, pela relação próxima e amigável entre o prefeito e o líder dos assassinos, prefeito esse que fecha os olhos e se ausenta durante o massacre.

Bacurau, além do nome da cidade e do filme, também é o nome de uma ave de hábitos noturnos do nordeste brasileiro, referenciada em certo momento da película, que utiliza de folhas para se camuflar e, assim como na população da obra, usa dessa estratégia para para sobreviver. Essa relação fica evidente quando no ato final todos os cidadãos se escondem dos assassinos e armam seu plano de sobrevivência durante a noite. A medida em que diversas situações atipicas vão acontecendo na povoação (como o sumiço da cidade na internet, a falta de sinal e o assassinato de uma familia inteira) vemos como cada vez mais a comunidade se unir e se comunicar entre si para se proteger contra as invasões estrangeiras. 

 Na trama, esse ataque cometido no interior do nordeste, conhecida popularmente por ser uma região muito pobre e esquecida pelo Estado, evidencia o descaso do poder público brasileiro em relação ao sertão e, portanto, a necropolítica ali implantada. De forma simbólica, a relação colonial e a necropolítica aparecem nos ataques protagonizados por estrangeiros da Europa e dos EUA, motivados pelo desejo e tesão em matar, em um jogo que desumaniza os moradores da região, vendo-os apenas como pontos para subir de ranking em uma tabela. Uma situação que apesar de ser uma ficção exagerada, elucida as relações de colonizador e colonizado que protagonizaram o Brasil no seu passado, mas que ainda permeiam seu imaginário, e nos deixa claro a realidade pobre, violenta e excludente da região. Essa violência ficticia por parte dos ‘gringos’ é uma forma de manifestar esse poder sobre o outro e conservar a relação dominador-dominado através do prazer.

 Em contrapartida, a união da população sintetiza a força que precisa para sobreviver aos ataques e resistir a tentativa de terem a sua própria soberania invadida pelo outro. A violência cometida pela população é a forma de manifestar a resistência contra sua história, sua terra e sua comunidade, e acabar com essa relação de submissão em relação ao outro através do sentimento de sobrevivência. Durante a invasão, toda a comunidade se une para tomar um psicotrópico, para deixar mais digerível a luta contra os estrangeiros, essa reação violenta dos moradores pode ser definida como a “loucura homicida” que Jean-Paul Sartre escreve no prólogo de ‘Os Condenados da Terra’, de Frantz Fanon: “no momento da impotência, a loucura homicida é o inconsciente coletivo dos colonizados” (FANON, 1961, p. 16). Ou seja, a violência partida dos cidadãos de Bacurau é justificada pelo seu instinto de sobrevivência inconsciente acerca dos ataques e assassinatos pelos outros.

As situações que ocorrem por parte dos estrangeiros à população local evidencia a relação subalterna entre dominador e dominados que ocorre a anos em nosso país, mas especificamente no contexto do nordeste brasileiro. O filme nos ajuda a pensar sobre a importância de se articular uma comunidade em prol de escapar das correntes que perpetuam as relações de dominação acerca do Brasil, principalmente em comunidades mais carentes e isoladas. Bacurau é um importante filme para se pensar em resistência, a desumanização de pessoas que moram na periferia do mundo por parte das elites e como as ações e omissões do Estado impactam essa dinâmica. 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BACURAU. Direção: Juliano Dornelles, Kleber Mendonça Filho. Pernambuco: Vitrine Filmes, 2019. (131 min).

MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: N-1 edições, 2018.

AB’SÁBER, A. N. Sertões e sertanejos: uma geografia humana sofrida. Estudos Avançados, 13 (36), p.07-59, 1999. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ea/v13n36/v13n36a02.pdf

CHAUVIN, Jean Pierre. Notas sobre a distopia literária moderna. Revista da USP, São Paulo, 2024. 

Preto Souza, Alisson, Hübner Alves Elisa . Abandono social, injustiça e esquecimento: identidade nordestina e o sertão nas obras de Antônio Torres e Graciliano Ramos. Travessias [en linea]. 2020, 14(2), 216-232[fecha de Consulta 5 de Noviembre de 2024]. ISSN: . Disponible en: https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=702078659015

GOMES, Thiago. Violência e Necropolítica em Bacurau: processos de descolonização e ecos da contracultura. Revista Zanzalá, v.8, n.1, Campinas, 2021.

RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. 139ª ed. São Paulo: Record, 2016.

FANON, Frantz. Os Condenados da Terra. Rio de Janeiro: Ed Jorge Zahar, 2022 [1961].

Bryan Barros Bizarello Morais é graduando em Defesa e Gestão Estratégica Internacional e membro do Núcleo de Artes, Interculturalidade e Política Internacional do IRID-UFRJ.

Diálogos Internacionais

Divulgação científica de Relações Internacionais, Defesa e Economia Política Internacional ISSN 2596 2353