Uma análise de Ruanda pós-genocídio através da liderança feminina com base no panorama da socióloga Spivak
Volume 8 | Número 86 | Out. 2021
Por Beatriz Raponi Vence Rey
Ruanda, um país localizado na região dos Grandes Lagos na África, presenciou, entre os meses de abril e junho de 1994, um dos maiores massacres do século XX: em apenas 100 dias de violência, cerca de 800 mil pessoas foram mortas durante a guerra entre os grupos étnicos: Hutus e Tutsis[1]. Em relação aos motivos do conflito, é algo que ainda traz incertezas e deixa muitas lacunas abertas, visto que alguns estudos consideram que foi por questões políticas; outros por questões étnicas ancestrais e, também análises que abordam às fortes colonizações[2] como estopim ao incentivo das indiferenças entre as duas etnias (questões identitárias e físicas) (SANTOS, 2019).
Em consequência ao terrível genocídio, o país foi posto à prova de diversos desafios, como a reestruturação de suas áreas políticas e econômicas, criação de espaços para conciliações dos grupos étnicos e reconstrução do país como um todo. Porém, a grande maioria dos homens foram mortos ou exilados durante o confronto, e de maneira muito rápida as mulheres e meninas representavam 70% da população ruandesa (WOMEN’S ENEWS, 2003). Por este motivo, em prol da igualdade de gênero, houveram mudanças nas estruturas políticas de poder ruandês, que foram utilizadas a favor dos direitos e representações das mulheres em lugares antes nunca ocupados, como na política, economia, no âmbito acadêmico e em posses de terras (BATISTA, 2015).
Nesse sentido, o foco deste trabalho é analisar o caso da “ausência/presença” do gênero feminino pré e pós-guerravis-à-vis ao estudo pós-colonialista de Gayatri Spivak[3], mais concretamente com os aspectos de representações existentes e o essencialismo. É relevante abrir uma reflexão para o seguinte questionamento: houve de fato mudanças em Ruanda?
Papel feminino em Ruanda X Spivak.
É possível realizar uma relação dos estudos da socióloga, com o contexto de Ruanda antes do genocídio, como propriamente uma sociedade profundamente patriarcal e afetada pelo pós-colonialismo[4]. O lugar das mulheres era como donas de casas e submissas aos chefes de suas famílias, a educação lhes era restrita – assim como seus direitos – não possuíam terras, tudo que “tinham” como delas eram de posse de seus maridos e, se não eram casadas, seus pertences eram de seus pais ou irmãos (BATISTA, 2015). Durante o período da guerra, a violência de gênero foi transformada como utensilio para ferir o inimigo, as mulheres eram constantemente estupradas e abusadas sexualmente, e se engravidassem, seriam usadas como forma de controle étnico, pelo fato de que os frutos dos estupros causariam – a longo prazo – uma “limpeza étnica” do outro. Ademais este tipo de violência sexual é uma das formas de propagar humilhação e medo sobre as comunidades envolvidas (adicionalmente, os altos casos de HIV-AIDS no país que foram aumentados devido aos fatos trazidos) (BALISTIERI, 2018).
A fim de um melhor entendimento, do porquê ferir a mulher do inimigo é algo comum neste caso, Balistieri[5]cita Crenshaw: “as mulheres são alvos especiais desse tipo de abuso por serem frequentemente percebidas como representantes da honra simbólica da cultura e como guardiãs genéticas da comunidade” (CRENSHAW, 2002, p. 176).
Estas problematizações, têm como razões primordiais o resultado das consequências históricas dos pilares do imperialismo e colonialismo globais, que de forma sistematizada e hierarquizada, estruturou gêneros, classes e raças em divisões de quem seria o dominante e quem seria o dominado, no caso estudado, definindo papéis sociais através do gênero. Considerando o caso do país africano, que já é – se for possível dizer desta forma – subalterno na ordem internacional, em seu interior cria-se um reflexo desta relação de subordinação entre os gêneros masculinos e femininos ainda mais profundos, já que em períodos de confrontos, o papel social da mulher se torna ainda mais subordinado ao masculino (CRENSHAW, 2002).
No livro “Pode um subalterno falar?”[6], Spivak reflete sobre os termos criados por Marx – a fim de explicar os dois tipos de representações existentes – em “O 18 Brumário de Louis Bonaparte”: vertretung – (significa a representação estrutural democrática, onde há a representação feita pelo dominante sobre o dominado, alegando que este último não tem condição de se auto representar – aqui como a elite ruandesa-) e darstellung (significa a representação falsa, a qual esconde a manutenção do imperialismo existente). Ela completa: “além desses termos se situa o lugar no qual os sujeitos oprimidos falam, conhecem e agem por si mesmos, leva a uma política utópica e essencialista.” (SPIVAK, 2010, p. 35). Em outras palavras, uma das formas do silenciamento dos subalternos, é esta representação feita por posições privilegiadas em determinados cenários. O problema é que classes dominantes, em blocos parlamentares, por exemplo, representam-se como “grupos identitários”, identificando-se como iguais e falando em nome de grupos específicos – que sofrem pelo racismo, xenofobia, violência de gênero -, e assim anulando a interseccionalidade de classe, raça e gênero e as peculiaridades que existem claramente entre si.
Este tipo de deficiência de representação, nem sequer havia acontecido em Ruanda antes do genocídio, já que as mulheres não eram envolvidas em nenhum tipo de discussão política e tampouco em tomadas de decisões. Ao analisar este caso com o essencialismo de Spivak, o grupo subalterno feminino se colocava distante de ser livre, autônomo e único. Na maneira, que o país estava sendo direcionado, influenciado pelo patriarcado e imperialismo, as mulheres estavam fadadas a serem divididas, subordinadas e descontínuas até os seus fins. Além disso, levando em consideração o lugar onde essas mulheres estão inseridas, uma região extremamente afetada pelos processos de colonização e descolonização, Spivak comenta: “se, no contexto da produção colonial, o sujeito subalterno não tem história e não pode falar, o sujeito subalterno feminino está ainda mais profundamente na obscuridade.” (SPIVAK, 2010, p. 66-67). Ou seja, em comparação a um sujeito masculino subalterno, o sujeito subalterno feminino é duplamente silenciado devido a violência de gênero.
Após o genocídio, houve uma enorme necessidade de algum grupo assumir o comando da situação caótica que o país se encontrava, e foi assim que as mulheres se inseriram nas esferas públicas, privadas e governamentais, a fim de reestruturar nacionalmente o país e serem obrigadas a mudarem a linha de pensamento que tinham de si mesmas, pelo fato de estarem acostumadas a uma posição de constante subalternidade e opressão que levou a subjetividade do feminino.
Segundo dados do PNUD, no pós-guerra, 56% das famílias eram chefiadas por viúvas (UNITED NATIONS DEVELOPMENT PROGRAMME RWANDA, 2007). Nesse sentido, foi um desafio colossal tomar a liderança do país e de suas famílias naquele momento e, era mais que necessário as mulheres aceitarem que é sim um direito obter independência financeira e que cabia a elas o desenvolvimento, a estabilidade e a segurança em direção a um novo recomeço de Ruanda.
Por este motivo, as mulheres foram obrigadas a realizar novas atividades e tomaram frente na reconstrução de casas, cuidados aos sobreviventes da guerra e a busca de lares para a grande quantidade de crianças órfãos (WOMEN’S ENEWS, 2003). Assim sendo, as organizações femininas se multiplicaram demonstrando a importância de movimentos sociais ao embate as injustiças, e ONGs voltadas aos direitos das mulheres foram criadas, em prol de superar a crise na qual estavam sofrendo, ganhando apoio financeiro e técnico por parte da comunidade internacional em razão da assistência às vítimas crianças e mulheres de países afetados por guerras. Porém, infelizmente a ideologia seguida pela grande parte dessas ONGs são postas pelo feminismo liberal, que inclui a mulher de elite que mora em regiões urbanas e exclui a mulher de baixa renda que vive em áreas rurais (LIPP, 2013). Nesse contexto, mesmo com avanços consideráveis no país, ainda há a exclusão da mulher rural ruandesa, quem não logrou a representação merecida ao longo deste processo. E sim, condicionando uma representação da classe dominante sobre ela, pois sofre a sua “falsa representação” mencionada anteriormente. Logo, existe a mesma deficiência do sistema caracterizado de antes do genocídio, que a mulher oprimida, não pode ser ouvida e não pode se auto representar.
É deveras importante criar a reflexão sobre o que foi comentado acima, mas não se deve tornar irrelevante todos os progressos em relação a igualdade de gênero que transformaram Ruanda nos últimos 25 anos. Tal como, os seguintes dados do site UN WOMEN: as mulheres ruandesas ocupam 61% da Câmara dos Deputados; 50% dos cargos ministeriais; 38% dos assentos do Senado e 43.5% dos cargos de vereadores em níveis locais. Além de emergirem como líderes em setores privados, como em bancos (WOMEN’S ENEWS, 2003). É promovida a igualdade de gênero e o empoderamento feminino, através de comícios em pelo menos 13 convenções e protocolos internacionais e regionais, como a “Convention on the Elimination of All Forms of Discrimination against Women (CEDAW)” (UN. WOMEN).
Considerações finais.
O dado mais impressionante nos tempos atuais, é de as mulheres ruandesas ocuparem 61,3% de legisladoras na câmara baixa e 38,5% na alta[7], a maior taxa de parlamentaristas femininas do globo. Em vista disso, e dos argumentos apresentados, é de forma justa dizer que Ruanda está de acordo, como local de liderança e representação feminina e ser sinônimo de progresso na paridade de gênero, em relação à representação singular em suas principais esferas, principalmente se houver a comparação com países desenvolvidos que estão distantes da igualdade de gênero.
Contanto, é importante salientar, que Ruanda também não é sinônimo de perfeição, uma vez que é de extrema necessidade que estas mulheres que agora estão em posições de alto escalões – principalmente em órgãos governamentais -, criem discursos menos excludentes, reconhecendo as verdadeiras realidades de todas as mulheres subalternas ruandesas e, assim, tornem possível a independência de mulheres que ainda são deslegitimadas e que estas últimas logrem espaços onde sejam de fato ouvidas e representadas. Dado o exposto, Ruanda se torna de maior modelo e influência ao empoderamento feminino como sinônimo de desenvolvimento – realizando a inclusão de gêneros subalternos – para diversos países, sem que haja a necessidade de um conflito tão violento para criar mudanças que são primordiais.
Beatriz Raponi Vence Rey é estudante de Bacharelado em Relações Internacionais pela PUC-SP. Interesse pelos temas de Direitos Humanos e Meio Ambiente.
Referências:
BATISTA, S. L. Ruanda: Os avanços na promoção da igualdade de gênero e a ascensão das mulheres na política no pós-genocídio. Brasília, Março de 2015.
BALISTIERI, Thaís Regina. “Sejam honestas, sejam ativas, articulem-se”: o empoderamento e a garantia de direitos das mulheres pela participação feminina no processo de reconstrução de Ruanda após o genocídio de 1994. TCC (graduação) – Universidade Federal de Santa Catarina. Centro Socioeconômico. Relações Internacionais. 2018-11-27
CRENSHAW, Kimberlé Williams. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Rev. Estud. Fem. 2002, vol.10, n.1, p. 171-188. Disponível em: Acesso em 05 out. 2021.
ENDA, Jodi. Women Take Lead in Reconstruction of Rwanda. ONG Women’s News, 2003. Disponível em: Acesso em: 05 out. de 2021.
LIPP, Camila Soares. RELAÇÕES DE GÊNERO EM RUANDA NO PERÍODO PÓS-GENOCÍDIO: MUDANÇAS DE FATO? Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 13, n. 13, p. 281-304, janeiro/junho de 2013.
SANTOS, Bruna Tais. SOBRE A RELAÇÃO ENTRE TUTSIS E HUTUS: A QUESTÃO IDENTITÁRIA NOS CONFLITOS DE RUANDA (1994). ANPUH-Brasil – 30 SIMPÓSIO NACINAL DE HISTÓRIA – Recife, 2019, [S. l.], p. 1-16, 19 out. 2019. Disponível em: https://www.snh2019.anpuh.org/resources/anais/8/1565646594_ARQUIVO_ArtigoANPUH-Recife-BrunaTaiss.pdf. Acesso em: 6 out. de 2021.
SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? 1. ed. Trad. Sandra Regina Goulart Almeida; Marcos Pereira Feitosa; André Pereira. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2010.
RWANDA. AFRICA.UN WOMEN. Disponível em: <https://africa.unwomen.org/en/where-we-are/eastern-and-southern-africa/rwanda> Acesso em: 02 set. de 2020.
UNITED NATIONS DEVELOPMENT PROGRAMME RWANDA. Disponível em: <https://www.rw.undp.org/> Acesso em: 02 set. de 2020.
[1] A etnia Hutu representava e ainda é, a maioria da população ruandesa, por enquanto a etnia Tutsi teve a sua população reduzida em 20% após o massacre (ONU, 2004).
[2] Colonizações, pois Ruanda sofreu influências coloniais da Alemanha, Bélgica, França e após o genocídio, dos Estados Unidos da América.
[3] Gayatri Chakravorty Spivak é considerada uma das mais importantes intelectuais de estudos pós-colonial, subalternos e feministas em âmbito global.
[4] O período de pós-colonialismo, foi marcado pelas marcas e influências imperialistas em sociedades que sofreram a colonização, de maneira mundial e como fenômenos particulares em cada tipo de colonização. Assim, surgiu os estudos pós-coloniais, para que através de abordagens críticas e teóricas, fosse possível uma maior compreensão, de quais foram os rumos e as consequências advindas de sociedades uma vez colonizadas.
[5] Balistieri, Thaís Regina. “Sejam honestas, sejam ativas, articulem-se”: o empoderamento e a garantia de direitos das mulheres pela participação feminina no processo de reconstrução de Ruanda após o genocídio de 1994. TCC (graduação) – Universidade Federal de Santa Catarina. Centro Socioeconômico. Relações Internacionais. 2018-11-27.
[6] No livro, a autora discute as condições de subalternidade das mulheres – pobreza, gênero e raça – com capítulos focados na marginalização da mulher negra em um cenário colonial e que carrega as suas influências até os dias de hoje.
[7] Dados extraídos do próprio site das Nações Unidas, com atualização de 10 de março de 2021.> https://news.un.org/pt/story/2021/03/1743972<