América “LaChina”: nova etapa da dependência latino-americana?
Por Bernardo Salgado Rodrigues
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A China é o fenômeno mais ilustrativo da nova etapa de reprodução do sistema mundial na atualidade. Com uma economia que cresce a taxas de 10% a.a. ao longo de duas décadas, vem influenciando a economia mundial, alterando preços e deslocando fluxos de comércio e de investimento. Recentemente, há a constatação do interesse chinês na evolução de suas relações exteriores com a América Latina que, consequentemente, influencia tanto a região como um todo como o país asiático.
Entretanto, há a hipótese de uma nova etapa da dependência latino-americana a partir da crescente participação chinesa, principalmente com relação aos recursos naturais. Esse câmbio estrutural de maior vínculo com a potência asiática na reorientação da balança comercial, de investimentos e de financiamento materializa alternativas econômicas e políticas, cujos países latino-americanos devem avaliar se, e em que grau, tal cooperação é pertinente para alavancar sua potencialidade produtiva, ou se, opostamente, constitui apenas uma retórica reprodutora de padrões de subordinação escamoteados.
Atualmente, a China corresponde a um centro cíclico regional, no qual pauta sua estratégia de desenvolvimento na busca de uma inserção internacional conhecida como going global. A partir dessa estratégia, foram elaboradas diretrizes para o investimento externo, que podem ser resumidas em três principais objetivos: acessar recursos naturais escassos no país, fomentar a industrialização e o desenvolvimento tecnológico das empresas nacionais, e aumentar a competitividade das empresas chinesas por meio da promoção de marcas no exterior e da construção de uma rede global de produção e fornecimento. (COELHO et AL., 2015)
Desde meados da década de 1990 até a atualidade, diversos estadistas chineses reafirmaram a importância da América Latina para a estratégia de política externa da China, cujos interesses econômicos e políticos passam a ser cada vez mais convergentes. O China’s Policy Paper On Latin America And The Caribbean é considerado um marco nas relações sino-latinoamericanas, a partir do momento em que insere a América Latina nos interesses de política externa imediata. Exemplo disso é que, ao longo dos últimos anos, houve a assinatura de inúmeros acordos intergovernamentais com mais de vinte nações latino-americanas e desenvolveram relações bilaterais mediante parcerias estratégias.
Entre 2002 e 2011, a corrente de comércio (exportações mais importações) entre a China e a região aumentou em aproximadamente 13 vezes. Neste período, as exportações da América Latina para a China elevaram-se de US$ 6,2 bilhões para US$ 86,3 bilhões, enquanto as importações foram multiplicadas por 127 (de US$ 0,4 bilhão para US$ 45,5 bilhões) (Comtrade/ONU), passando a ocupar uma posição privilegiada nas relações comerciais com os países da região. Em 1993, a China consumiu menos de 2% das exportações da América Latina, mas em 2013 foi responsável por 9%. Entretanto, essa importância foi bastante desigual entre os diferentes setores de exportação: a China triplicou a sua quota do total das exportações latino-americanas na última década, mais do que triplicou as exportações de produtos extrativos e duplicou a sua quota das exportações agrícolas. Mas a sua demanda por bens manufaturados continua constante, ficando em cerca de 2% das exportações de manufaturados da América Latina. (RAY et al, 2015)
A China tem sido um motor importante na expansão da exportação de bens agrícolas e extrativos da América Latina. A demanda chinesa também desempenhou um papel no aumento do nível geral da maioria das commodities durante o período, aumentando significativamente os termos de troca em favor da América Latina. (RAY et al, 2015) Entretanto, parte significativa dos países da região possui déficit comercial com a China. Ainda, é preciso destacar que o padrão de comércio, mesmo nos países superavitários, foi marcado por uma relação assimétrica em que se verificaram elevados superávits em favor da região nos produtos primários e nas manufaturas intensivas em recursos naturais e crescentes déficits nos produtos manufaturados (de baixa, média e alta intensidade tecnologia), sobretudo após a crise internacional, quando a China direcionou parte de suas exportações de manufatura da Europa e dos Estados Unidos para a região. Em contrapartida, as exportações da China para a América Latina são compostas, fundamentalmente, por produtos eletrônicos e mecânicos. Concomitantemente, os países da América do Sul que possuem um parque industrial considerável são os mais prejudicados com o desenvolvimento dessa especialização comercial. (VADELL, 2011)
Além da maior conexão no comércio, a China vem expandindo de forma expressiva o investimento direto especialmente na segunda metade da década de 2000. Esse novo papel desempenhado pela China fica circunscrito ao investimento greenfield, ao processo de aquisições e fusões realizadas por empresas da China na região e pela ampliação de empréstimos de bancos chineses (notadamente o China Development Bank) para firmas e governos. O interesse primordial chinês tem sido voltado aos recursos naturais e energia (petróleo, cobre e ferro), para suprir sua demanda interna. Entre 2005 e 2013, o fluxo de IED chinês para a América Latina cresceu de US$ 3,8 bilhões para US$ 16 bilhões, sendo que a partir de 2009 verificou-se um expressivo crescimento. O valor acumulado para esse período foi de US$ 101,8 bilhões, representado 12,7% do total mundial dos investimentos da China. (The China Global Investment Tracker/Heritage Foundation).
O IED chinês na América Latina ficou concentrado, sobretudo, no setor de energia (54,6% do total acumulado entre 2005 e 2013), sendo que deste valor 40% foram direcionados ao segmento do petróleo. As participações de outros setores de atuação das empresas chinesas na América Latina foram: 17,7% em metais; 14% no setor de transporte (automóveis); 4,6 % na agricultura; 4,5% em imóveis. (The China Global Investment Tracker/Heritage Foundation). Evidencia-se a estratégia chinesa de garantir o acesso às fontes de recursos naturais no período (RAY et al, 2015). A América do Sul é o destino principal dos IED chineses, que podem ser divididos em três principais categorias, de acordo com seus propósitos: a) “orientados aos recursos naturais” (natural resource-seeking); b) “orientados ao mercado” (market-seeking) e c) “orientados à eficiência” (efficiency-seeking). A grande maioria dos IED com destino à América do Sul são orientados à exploração de recursos naturais, em setores de grande demanda da China, como cobre, aço, petróleo e soja. Ademais, pode-se observar investimento em infraestrutura ligados a facilitar o escoamento desses produtos. (VADELL, 2011)
Desde 2005, a China tornou-se uma fonte adicional de financiamento para a região, notadamente para os países com dificuldades em acessar o mercado de crédito mundial. Os empréstimos concedidos pelos bancos chineses (China Development Bank, Export-Import Bank of China, entre outros) às empresas e aos governos da América Latina totalizaram entre US$ 118,5 e 125 bilhões no acumulado entre 2005 e 2014 (MYERS; GALLAGHER; YUAN, 2016). Desse total, US$ 19 bilhões foram destinados ao governo e empresas da Argentina para investimento em energia e, sobretudo, em infraestrutura; US$ 22 bilhões para as empresas brasileiras, sendo a maior parte para a exploração de petróleo no pré-sal brasileiro realizado pela Petrobras; US$ 2,4 bilhões para o México para área de energia e infraestrutura; US$ 2,3 bilhões para o Peru, voltados, sobretudo, para equipamentos de mineração; e US$ 0,150 bilhão para empresas do Chile. Apesar de desaceleração do crescimento, as finanças chinesas para a América Latina expandiram-se consideravelmente em 2015. Como nos anos anteriores, o foco principal são as áreas de infra-estrutura e matérias-primas. Recentemente, a China também estabeleceu aproximadamente US$ 35 bilhões em fundos de infraestrutura para toda a região, além de outros projetos. (MYERS; GALLAGHER; YUAN, 2016)
Dos dados acima, podem-se concluir três fatores capitais:
1 – A importância da China no impulso do crescimento econômico da região a partir de 2001-2002, fator fundamental para entender a recuperação econômica de muitos países da América do Sul após o fracasso das políticas econômicas neoliberais e, na contrapartida, intensificação do processo de desindustrialização e reprimarização das economias latino-americanas;
2 – A China é altamente dependente de recursos naturais, que faz com que tenha certa instabilidade no sistema internacional e a busca de mercados e suprimento/oferta por parte do governo chinês. Para os países latino-americanos, a solução seria realizar alianças com a China a fim de suprir o mercado chinês, realizando juntamente com os chineses um processo de industrialização dos recursos naturais regionais;
3 – Para a América Latina, o financiamento em infraestrutura realizado pela China, em portos, rodovias, estradas, ferrovias, são benéficos para a região reduzir os custos, diminuir gargalos e melhorar a competitividade. Entretanto, a dependência da exportação de commodities é um entrave pelo baixo valor agregado, vulnerabilidade de preços e variações internacionais de oferta e demanda.
Os ganhos temporários dos termos de troca não devem substituir projetos de diversificação industrial de maior valor agregado e de fomento científico tecnológico, ou, do contrário, a inserção latino-americana na economia global será a mesma dos séculos XIX e XX.
Assim, visualizam-se nuances que corroboram a hipótese de uma nova etapa da dependência latino-americana, devido a especialização regressiva da região, reprimarização, desindustrialização e a histórica dependência em recursos naturais com baixo valor agregado. Diferentemente da constatação atual, no qual o comércio China-América Latina reproduz a assimetria de uma relação Norte-Sul – em detrimento de laços Sul-Sul -, a China, no longo prazo e na busca de um mundo multipolar, não deveria repetir a estratégia atlantista, e sim realizar relações comerciais com os demais países periféricos horizontalmente, de maneira a reduzir as fronteiras econômicas e tecnológicas dos países do Sul Global.
Nesta nova ordem mundial, é crucial para a América Latina compreender as características de seus vínculos com a China ao definir sua inserção global, uma vez que a região latino-americana serve aos objetivos geopolíticos da nova política externa chinesa de transformar o sistema internacional num sistema multicêntrico. Assim, é crucial para a região buscar modificar as condições internacionais na qual se insere, processo que requer o estabelecimento de estratégias de inserção internacional que superem o perfil de meros exportadores de commodities no que tange às relações com os pólos dinâmicos da economia global.
Referências Bibliográficas
COELHO, Diego Bonaldo et al. A ascensão da China e seus reflexos no Brasil: fundamentos e evidências para uma estratégia de desenvolvimento. Rev. Bras. Inov, Campinas, v. 14, p.85-108, jul. 2015.
MYERS, Margaret; GALLAGHER, Kevin; YUAN, Fei. Chinese Finance to LAC in 2015: Doubling Down. The Dialogue, 2016. 9 p.
RAY, Rebecca et al. China in Latin America: Lessons for South-South Cooperationand Sustainable Development. Boston: Boston University, 2015. 26 p.
VADELL, Javier. A China na América do Sul e as implicações geopolíticas do Consenso do Pacífico. Revista Sociologia Política, Curitiba, v. 19, p.57-79, nov. 2011.