A importância de uma reconstrução plural e crítica da região
Por Glauber Cardoso Carvalho
Novo encontro do FoMerco. Inscrições abertas para submissão de resumo. Confira a programação no site www.congresso2015.fomerco.com.br. |
Há uma constatação de que o projeto integracionista faz parte do acervo histórico consolidado das relações internacionais sul-americanas. Isso, porém, não deve ocultar as características e graus distintos que distinguem a longa travessia composta de diferentes concepções de desenvolvimento e de autonomia nas estratégias de política internacional do continente.
Se é possível perceber que a autonomia do conhecimento se viu limitada primeiro pela ditadura militar e depois pela ditadura do mercado, com incrível tendência a individualização a compartimentalização, como comentou Daniela Perrotta (para todas a pessoas citadas, ver seus textos no link do livro abaixo), também é possível entender que o quadro começou a se transformar diante da conjuntura das retomadas democráticas na América do Sul, quando, a despeito da manutenção da importância da abertura comercial, os governos conferiram prioridade à formação de grandes blocos econômicos no projeto de integração.
A formação do Mercosul, com a aproximação entre Argentina e Brasil se enquadra nesse momento no qual se privilegiou a aproximação comercial, embora, no caso do Cone Sul, as definições geopolíticas em torno da Bacia do Prata e a cooperação em matéria nuclear também tenham exercido forte influência no que tange à nova inserção internacional da região.
No eixo do Cone Sul as políticas nacionais buscaram atualizar as agendas e agir de forma a atender ao novo cenário internacional, ascender ao rol dos chamados desenvolvidos e eliminar o seu caráter, visto como pejorativo de “Terceiro Mundo”. Assim, a estratégia de inserção internacional passou pela tentativa de aumento da credibilidade econômica com a renegociação da dívida externa e a adesão aos princípios internacionais ditados desde as potências, como a adesão aos regimes multilaterais, especialmente os de controle de tecnologia sensível, de direitos humanos, comércio e meio-ambiente, consolidando o processo democrático. (hirst; pinheiro, 1995)
No eixo andino, os países que já haviam buscado a integração a partir da formação do Grupo Andino, de 1969, continuavam na dependência das exportações de commodities às economias desenvolvidas. Assim também ocorreu com a Venezuela e o petróleo no processo de utilização da farta entrada de divisas dessa commodity como indutora de um desenvolvimento, o que ao mesmo tempo dificultou a diversificação produtiva e facilitou a concentração de renda no setor (medeiros, 2008). Cabe constatar que por toda a América Latina o pensamento neoliberal foi transformador e se associou a uma nova formulação teórica da Comissão Econômica para a América Latina – Cepal, órgão da Organização das Nações Unidas – ONU – sobre os processos de regionalismo (considerado “aberto”) e fortaleceu o arraso dos projetos desenvolvimentistas.
Contudo, o modelo cepalino do regionalismo aberto escolhido pelos sul-americanos manteve-se nos marcos da redução do Estado e de sua soberania, promovendo a integração comercial centrada na liberalização crescente de tarifas, mercadorias e do capital, tal como recomendava a cartilha neoliberal dos noventa. À crise e à falência do modelo neoliberal se adiciona “o esgotamento de forma de organização estatal, dominação social, baixa inclusão político-social e monopólio partidário” (silva, 2011: 265)
No início deste século, porém, é possível pensar que houve uma saturação da situação vigente e um novo desabrochar da consciência popular. Esse momento marcou a região tanto nos contextos nacionais quanto no contexto internacional. Nos âmbitos nacionais, as forças das mudanças propagadas pela distorção dos anos de políticas neoliberais no conjunto das sociedades aproximaram os Estados em sua concepção de futuro. No campo internacional, fatores como a melhoria dos preços das commodities, um ajuste na estratégia da política externa norte-americana, assim como as potencialidades de novos jogadores na arena internacional contribuíram para favorecer o ânimo dos países.
O reordenamento das relações internacionais da região a partir das renovadas concepções de integração e desenvolvimento, e que acrescentavam a questão da autonomia, ganhou o impulso regional necessário com a chegada ao poder de governos que possuíam como interesse o fortalecimento regional e comum. Eles estipularam um novo consenso e novas formas e temas de atuação, incluindo a esfera institucional, com bases outras que apenas o econômico-comercial. A ampliação do rol de itens em debate nos organismos do processo integrativo sul-americano foi um dos fatores mais importantes. O foco que os novos governos da região conferiram à cooperação setorial extracomercial foi condizente com os discursos que ressaltavam a necessidade do entendimento e do fortalecimento social. Nesse contexto está a ampliação de ações para articulação de novos atores que tinham como circunstância a formatação de condições para a produção de conhecimento regional voltado para o aprofundamento integração.
A perspectiva foi a reconstrução da região para que passasse a representar de forma efetiva a sua pluralidade e originalidade. Essa questão, dada pelos temas culturais e educacionais, os quais incluem produção, formação, difusão, conscientização e criação de novos saberes, também giram em torno de questões como as garantias para as liberdades fundamentais e a possibilidade de uma gestão democrática do conhecimento.
Desde sur y para sur: as redes para um conhecimento continental
De acordo com Daniela Perrotta, a América Latina tomou parte da internacionalização das ciências nos anos sessenta e se consolidou como produtora de conhecimento em sua condição periférica, criando epicentros de irradiação como o caso do Chile. Para a pesquisadora, devemos reconhecer que estamos vivendo novos tempo que exigem, por sua vez, a ampliação da visão de uma nova região e de uma nova forma de produzir conhecimento. Perrotta indaga quais são as condições para a produção desse conhecimento, que tipo de conhecimento é esse e como ele é criado de fato. Essa provocação, sem o intuito de esgotar o tema, encontrou no painel algumas pistas de respostas.
Nosso momento histórico tem exigido o repensar da região e a sua reconstrução a partir de marcos sociopolíticos e culturais diferentes. O campo do conhecimento exige, portanto, múltiplas visões que só podem ser criadas pelo incentivo de um ambiente plural. As universidades e centros de pesquisa, focos de excelência desse projeto de criação de saberes, apresentam idiossincrasias quando se analisa o ambiente nacional e quando se amplia a visão para o nível regional. Cita-se de um modo prático, por exemplo, a burocratização como um dos fatores determinantes em que um pesquisador consome seu tempo. Soma-se a isso um velado nivelamento ou uniformização de atividades quando da liberação de financiamentos para determinadas atividades, que, quando ocorre, segue com uma densa prestação de contas. O incentivo à pesquisa é um item que também assume importância no contexto dos desenvolvimentos nacionais, mas que em diversos momentos parece negligenciado e, novamente, altamente burocratizado para sua efetivação, sendo necessário suplantar essas questões para avançarmos em uma efetiva cooperação interuniversitária.
O tipo de conhecimento que se propõe criar quando se trata da integração regional é algo que consiga conjugar uma visão plural e ao mesmo tempo única e continental. É importante salientar que já houve diversos pensadores em distintos momentos da história com esse tipo de visão, entretanto, como o tema sempre surgiu como ondas recorrentes, o problema foi que na maioria das vezes as questões encontravam pouco eco nas sociedades. Para Geronimo de Sierra, em algumas oportunidades essa visão teve maior abrangência, com produção de conhecimento que se voltava na formação de quadros para a integração, como no Instituto Latino-americano y del Caribe de Planificación Económica y Social – Ilpes, da Cepal. Para De Sierra, o marco deve ser a educação para a região, ou seja, a construção de um horizonte de reflexão, mas também de ação, de problemas da região e de soluções para a região por meio da educação.
A percepção de que apesar do tema ser recorrente, ele não conseguiu se consolidar, ou se aprofundar de forma prática, demonstra tanto sua complexidade quanto a dificuldade de pensar a região como uma unidade. A construção desse conhecimento continental, subcontinental, regional, se bem deve passar pelo saber formal acadêmico, tem sido beneficiada pelas novas tecnologias.
Como explicam Hernán Thomas et alii – a seguir – quando nos relatam experiências de campo na aplicação de tecnologias sociais, percebe-se que há questões que ultrapassam o mero formalismo científico e que devem ser aprofundadas com o contato com o público alvo. Os autores advogam, assim, a necessidade de construção coletiva do conhecimento entre a comunidade acadêmico-científica e os atores locais, que serão os beneficiados da aplicação tecnológica, uma vez que estes possuem demandas específicas e contam com um know-howlocal. Assim, o processo de desenvolvimento de tecnologias apropriadas e cuja aplicação será bem-sucedida passa, certamente, pelo que propôs o próprio congresso do FoMerco, a necessidade de realização da ampliação do conhecimento e vivência cultural regional.
Destacam-se nesse tema, as redes de cooperação, universitárias e de pesquisa, que não são fenômenos de todo novos, mas mudaram sua intensidade, abrangência e alcance. Para Perrota, falta para os pesquisadores atuais a realização de um núcleo dinamizador de conhecimento crítico como foi o Chile nos anos sessenta.
A pulverização das redes simplesmente baseada no crescente uso da internet, embora tenha a capacidade de ampliar a discussão em termos quantitativos, pode não ser capaz de aprofundar propostas concretas. Para a pesquisadora, as redes podem ser temáticas, generalistas, e estar ligadas a universidades ou não, mas dois itens importantes devem ser levados em conta quando pensamos nesse assunto, primeiro é que os princípios que estão presentes em qualquer rede são a solidariedade, a construção de conhecimento e o apoio mútuo de pesquisa; segundo, que uma rede sobre integração regional deverá considerar as assimetrias na educação superior dos participantes e agir para a sua superação.
Perrotta indica três formas das assimetrias que definem as diferenças entre os países do Mercosul: estruturais, regulatórias e culturais. Para ela, é muito visível a questão estrutural uma vez analisado o tamanho dos sistemas universitários, por exemplo, entre o Brasil que possui 6 milhões de estudantes de ensino superior, contra 131 mil do Uruguai. Em termos regulatórios, ao contrário, a maioria dos estudantes brasileiros está em universidades privadas e no Uruguai na universidade pública, na única existente. O que gera uma importante discussão sobre se as pesquisas acadêmicas e sua destinação social: o conhecimento é público ou pode ser privatizado?
A terceira questão assimétrica são as diferentes culturas e sobretudo, as culturas acadêmicas. Levando-se em consideração as características próprias de cada país e de cada centro acadêmico, é importante verificar, por exemplo, que as universidades brasileiras são do século XX, enquanto em outros países há universidades ainda da época da colonização, assim, fica claro que a cooperação de universidades em termos intrazona são favorecidas pelos acordos regionais que levam em conta as assimetrias e tentam compatibilizá-las. Ao mesmo tempo, torna-se um passo importante a tentativa de fazer com que a academia escape de tensões políticas entre países e a qualquer movimento pendular de suas políticas externas, fortalecendo, por intermédio da integração dos saberes, laços mais profundos e duradouros.
A percepção não é que não se tenha avançado na tomada consciência na região, mas que todo processo educacional tem em seu cerne uma tensão, entre a universalização do saber e do conhecimento e a elitização, o privilégio de saber.
Referências
HIRST, M.; PINHEIRO, L. A política externa do Brasil em dois tempos. Revista Brasileira de Política Internacional. Brasília: v. 38, n. 1, 1995: 5-23
MEDEIROS, C. Celso Furtado na Venezuela. Introdução. In: furtado, c. Ensaios sobre a Venezuela. Subdesenvolvimento com abundância de divisas. Rio de Janeiro: Contraponto/ Centro Celso Furtado, 2008.
SILVA, F.P. Vitórias na crise: trajetória das esquerdas latino-americanas contemporâneas. Rio de Janeiro: Ponteio, 2011.
Extrato do texto: CARVALHO, Glauber. “A integração sul-americana: cooperação, redes e produção do conhecimento” In: SARTI, I.; MARTINS, J.; LESSA, M.; CARVALHO, G. (Org.) Os desafios da integração sul-americana: autonomia e desenvolvimento. [livro eletrônico]. Rio de Janeiro: FoMerco / Folio Digital, 2014. pp. 79-85
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