Caminhos tortuosos
Por Suellen Lannes
Alguns livros têm o poder de deixar marcas, profundamente, incômodas que geram uma inquietação permanente e constantes questionamentos, normalmente pouco compreendidos e solucionados. Um dos livros que mais gerou isso em mim foi a obra de Albert Memmi, “Retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador”. Tunisiano, Memmi vai escrever um relato sobre o que é ser um colonizado e os efeitos da colonização sobre uma sociedade. Existem inúmeras obras sobre esse assunto, mas o incômodo gerado em mim, por Memmi, foi o foco de sua análise, nos efeitos psicológicos e sociais dessa dominação.
Esse tipo de efeito é dificílimo de ser estudado e analisado, principalmente se levarmos em consideração as normas científicas, e desconfio que perdure muito mais tempo na sociedade, criando raízes e ajudando a construir e consolidar uma imagem deteriorada do colonizado.
As inquietudes geradas por esse livro fizeram com que eu passasse a ler mais sobre colonização e imperialismo, procurando compreender de que forma o colonizador influência o colonizado. Desde então, esse tem sido tema da minha pesquisa, a qual está longe de achar alguma resposta plausível.
Nessas andanças pela mente dos colonizadores me deparei com uma figura peculiar que demonstra esse efeito psicológico gerado pelo fenômeno da colonização, o cristão maronita Négib Azoury (1873-1916), um dos “pais” do nacionalismo árabe.
Tendo um primeiro contato com os seus escritos, logo se tem a impressão que se trata de um escritor francês, entusiasta das instituições liberais francesas. De origem síria, Négib estudou na École libre des sciences politiques, em Paris, e foi funcionário do império otomano até 1904, quando retornou a Paris, onde viveu por um tempo até se instalar no Cairo, onde morreria em 1916. Logo que chegou a Paris fundou a Ligue de la Patrie Arabe (Liga da Pátria Árabe), na qual conclamava ser o expoente de um nacionalismo árabe. As atividades dessa liga se limitaram a emissão de manifestos em defesa da formação de uma união de países árabes [1]. Posteriormente, ele vai publicar, durante um curto período de tempo (1907-8), o periódico L’indépendance arabe (A independência árabe). Ele é resultado de suas ideias, já previamente defendidas no livro, publicado em 1905, Le Réveil de la nation árabe (O despertar da nação árabe) (HOURANI, 2005).
Em Le réveil, Azoury faz uma análise da relação do império otomano com outros países, em especial as potências europeias, e exalta a necessidade das províncias árabes em romper com o império otomano, procurando a sua independência visando uma pátria única. Somado a esse movimento, de acordo com Azoury, emergia um movimento sionista voltado a construir uma nação judaica no território otomano. Esses dois movimentos seriam antagonistas e fadados ao conflito.
Um pequeno detalhe salta aos olhos do leitor desse pequeno livro. Azoury vai definir as fronteiras dessa nova nação árabe a partir de todos os países da Ásia que falam árabe, mas não inclui o Egito e o Norte da África. Para ele, o Egito não era árabe no pleno sentido da palavra e o autor era contrário ao nacionalismo egípcio propagado por Mustafa Kamil, o qual era caracterizado por uma postura pró-islâmica e otomana, seguindo o movimento nacionalista presente entre as elites otomanas. Nas palavras de Hourani, Azoury segue o pensamento afirmando que os egípcios “não são capazes de governar a si mesmos, deveriam ser gratos pela boa administração britânica” (HOURANI, 2005, grifo nosso).
Apesar de pouco influenciar nesse suposto mundo árabe, o livro de Azoury teve bastante influência nas elites francesas e reforçou a imagem de um império otomano em frangalhos, onde movimentos nacionalistas estavam eclodindo, mas precisavam do consentimento da Europa para conquistarem o sucesso. Algumas críticas com relação ao livro e aos manifestos de Azoury afirmam que suas ideias sobre um movimento político de cunho nacional nos países árabes eram improcedentes, apesar da existência de movimentos culturais nacionalistas.
Em seus últimos anos de vida, Azoury morou no Cairo, Egito, justamente o país que não faria parte dessa nova nação árabe. Exerceu a função de secretário das relações exteriores de um “Partido dos Jovens Egípcios”, cujo programa era a criação de um governo representativo (HOURANI, 2005) em colaboração com os ingleses, os quais dominavam diretamente a política egípcia desde 1882. Em linhas gerais, Azoury procurava legitimar o poder imperialista da Inglaterra no Egito e no império otomano.
Tempos depois de escrever o livro, Azoury vai assumir que não era porta-voz de um movimento nacional árabe, muito menos tal movimento estava sendo construído no mundo árabe. Ele vai afirmar que o seu objetivo era criar esse sentimento (KRAMER, 2011). Apesar da nação ser uma “comunidade imaginada”, seguindo o conceito e Benedict Anderson, a forma como ela é pensada, imaginada tem relação com o contexto social dos povos que a imaginam. No caso árabe, a influência não são as instituições árabes, como o califado, mas sim as instituições liberais britânicas e francesas, são as ideias xenófobas que marcam o século XIX.
Nesse momento não consigo deixar de lembrar do livro de Albert Memmi. Apesar de querer ser porta-voz dos árabes, Azoury, assim como outros pensadores de mundos colonizados ou sob o julgo imperialista, nunca pensou a partir do mundo árabe. Suas influências e ideias eram pensadas a partir da mente do colonizador, do imperialista. Sua forma de pensar o mundo era ocidental e com isso legitimava as ações imperialistas e coloniais desse ocidente. O contato com novas ideias é louvável, mas perde mérito quando a mente do colonizado vira a mente do colonizador.
[1] Muito se questiona se essa Liga de fato existiu. Em seus últimos anos na França, as autoridades francesas investigaram Azoury e não descobriram nada que comprovasse a existência dessa Liga. Além disso, a Liga é composta apenas por Azoury e mais uma pessoa.
Referência bibliográfica
HOURANI, Albert. O pensamento árabe na era liberal: 1789-1939. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
KRAMER, Martin Seth. Arab Awakening and Islamic Revival: The politics of Ideas in the Middle East. Transaction Publishers, 2011.