Há muito mais entre o céu e a terra do que possa imaginar nossa vã política

Por Suellen Lannes
É aqui onde começarão nossos problemas
se não formos cuidadosos
Harry Truman, apontando o mapa do Irã, em 1952

 

O início de março foi marcado por declarações importantes sobre a questão nuclear iraniana. Os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança e a Alemanha se prontificaram a chegar a um acordo com o governo de Teerã, com previsão de conclusão para o final de março e seria seguido por um acordo mais geral até final de junho. Em linhas gerais, o acordo prevê a autorização do desenvolvimento de algumas atividades nucleares civis e visa impedir, definitivamente, o acesso a bomba atômica. Em troca, as sanções contra o Irã seriam suspensas. Apesar dos esforços, um possível acordo já apresenta grande oposição impulsionada pelo discurso do primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu no Congresso dos Estados Unidos. Independentemente da posição israelense, ou talvez, por causa dela, um possível acordo se apresenta como a melhor, se não a única, saída para um possível diálogo dos países com o Irã.

A organização administrativa do Irã tem relação direta com o processo revolucionário que ocorreu ao final da década de 1970. A Revolução iraniana marcou o estabelecimento de uma nova constituição democrática com algumas características teocráticas, como a existência de um Conselho de Anciões que apresentam cargos vitalícios e influência sobre os representantes dos poderes executivos. Como em qualquer processo político, a elaboração da Constituição desse novo sistema de governo foi fortemente influenciada pelo contexto internacional vigente, no caso, a Guerra Fria.
O advento da Guerra Fria foi marcado pela eclosão das bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki e o estabelecimento de uma nova revolução nos assuntos militares. A obtenção de uma bomba atômica significa a obtenção do que há de mais moderno e mortífero, chegando próximo a “guerra total” de Clausewitz. O detentor da bomba atômica teria um poder de rendição do adversário imprescindível. Essa necessidade por esse novo artefato guiou diversos Estados e, ao longo do século XX, alguns países conseguiram participar do seleto grupo de detentores dessa tecnologia. Assim, a bomba atômica simboliza a soberania per excellence.
No final do século XIX, início do XX, a Inglaterra começa um processo de troca da base energética de suas forças armadas do carvão para o petróleo. Carente desse mineral, a Inglaterra vai expandir o seu domínio para aquisição desse mineral em outros Estados e nesse contexto o Irã passa a ter um papel de destaque, principalmente após a descoberta do campo de petróleo em Masjed Soleiman. O resultado foi a fundação, em 1909, da Anglo-Persian Oil Company. Essa empresa foi a primeira a explorar o petróleo no Oriente Médio e ao mesmo tempo gerará riqueza para os Xás iranianos, o qual empreenderá um processo forte de modernização aos moldes ocidentais. Esse contexto vai mudar com o advento da Segunda Guerra Mundial e a invasão por soviéticos e ingleses do território do Irã. Os Aliados vão obrigar o Xá Reza Pahlavi a renunciar em prol do seu filho, Mohammad Reza Pahlavi.
No governo de Mohammad acontecerá uma crise que será um divisor de águas para a história iraniana, a nacionalização do petróleo. A grande figura desse movimento será o primeiro-ministro Mohammad Mossadegh. Nacionalista secular, ele orquestrará a aprovação do projeto de nacionalização do petróleo, o que será aprovado pelo parlamento iraniano, em primeiro de maio de 1951. O resultado dessa medida foi a exclusão da Anglo-Iranian Oil Company[1] do território iraniano, onde ela “reinava” desde 1909. A atuação de Mossadegh inspirou movimentos nacionalistas e acirrou um processo interno de afirmação da sua soberania por meio do controle de suas riquezas e território. A resposta ocidental veio no ano seguinte por meio da Operação Ajax. Em linhas gerais, os Estados Unidos patrocinaram o general Fazlullah Zahedi, o qual, por meio de passeatas “populares”, iria depor Mossadegh.
Com a volta de Reza Pahlavi, a Anglo-Iranian volta ao Irã acompanhada de Shell e outras petrolíferas estadunidenses e o movimento nacionalista ganha apoio nas mesquitas iranianas, onde se fortalecerá. A contínua repressão que marcou o governo de Pahlavi e a dominação crescente das potências ocidentais levou ao estopim da Revolução de 1979. A chegada do aiatolá Khomeini, do exílio, a crescente insatisfação popular, o fortalecimento dos movimentos nacionais pelo mundo, a crise do petróleo, a Guerra do Vietnã, os conflitos árabes-israelenses fizeram com que o movimento em prol de mudanças no Irã tomasse corpo e ganhasse espaço.
O resultado foi a deflagração da Revolução Iraniana em 1979 e a formação de um governo teocrático fortemente nacionalista. A Constituição iraniana[2] desse momento é um exemplo desse contexto.
Como observamos previamente, a Guerra Fria foi marcada pelo advento da bomba atômica e sua relação com a soberania foi um passo. Esse contexto teve grande reflexo no que virá a ser a Constituição iraniana. Uma importante característica desse documento é a preocupação com a consolidação da soberania iraniana e uma oposição forte a qualquer tipo de hegemonia e intervenção nos assuntos iranianos. Essas características já se apresentam no longo preâmbulo, o qual vai identificar os valores que estão por trás dos princípios constitucionais. Nele, a história do Irã é apresentada sob a ótica das intervenções de poderes hegemônicos em sua política interna. Primeiro a Grã-Bretanha, depois os Estados Unidos, que atuavam por meio da instalação de governos “fantoches”. Por trás desse cenário estava o interesse desses poderes no petróleo e gás iraniano e na posição estratégica do Irã, interligando a Ásia a Europa e tendo o Mar Cáspio ao norte e o Golfo Pérsico ao sul, importantes rotas para o tráfego de pessoas e mercadorias. O exemplo desse pensamento reside em seu terceiro artigo, onde a Constituição apresenta uma proposta anti-hegemônica. Nele o dever do governo é voltado para direcionar todos os seus recursos para atingir diversos objetivos, dentre eles “a completa eliminação do imperialismo e a prevenção da influência estrangeira”.[3] [Iran Constitution, Capítulo I, Artigo 3, § 5]
No capítulo X, destinado a política externa, a postura contrária a formação de hegemonias se torna mais explícita. De acordo com o artigo 152, a política externa do Irã é baseada na rejeição de todas as formas de dominação e na preservação da independência do país e de sua integridade territorial, a defesa dos direitos de todos os muçulmanos e o não alinhamento aos superpoderes hegemônicos. O artigo seguinte proíbe que todo acordo que resulte no controle estrangeiro sobre os recursos naturais, economia, exército ou cultura do país, assim como outros aspectos da vida nacional, seja firmado [Iran Constitution, Capítulo 10, Artigo 153].
Nesse contexto constitucional e externo o domínio sobre as atividades nucleares se torna imprescindível. A questão nuclear é algo atrelado a soberania iraniana e respaldado por sua constituição nacionalista. Ir de encontro a isso é acirrar o debate e não proporcionar abertura para um diálogo. Compreender a forma como os iranianos entendem a sua posição no mundo é demonstrar algum interesse nos grandes impasses que envolvem a questão nuclear iraniana.
[1] Em 1935 a Anglo-Persian muda de nome estimulada pelo interesse dos governantes iranianos em adotar o nome “Irã” para o território persa.
[2] A Constituição foi elaborada por uma Assembleia de Notáveis e tem como características principais o forte cunho religioso, trazendo à tona a formação de um Estado teocrático. O papel do presidente foi reduzido, ficando subalterno ao Líder Supremo. Este cargo, atualmente ocupado por Ali Khamenei, foi criado para evitar influências seculares e manter a Revolução no caminho do islamismo. O poder ficou dividido entre legislativo, executivo e judiciário, mas para cada cargo foi criado outro com poderes equivalentes, mas controlado por um clérigo. No Legislativo, os duzentos e setenta membros do parlamento estavam sujeitos ao poder de veto do Conselho dos Guardiões. [TRAUMANN, 2010: 10]
 
[3] Tradução livre do inglês: Article 3: In order to attain the objectives specified in Article 2, the government of the Islamic Republic of Iran has the duty of directing all its resources to the following goals:(…) 5. the complete elimination of imperialism and the prevention of foreign influence.

Referências

Iran Constitution. Extraída do site www.salamiran.org, da Embaixada da República do Irã no Canadá.

TRAUMANN, Andrew Patrick. O Irã entre o Ocidente e a sua Autoderteminação. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, v. Jun/05, p. 257-260, 2005.

Diálogos Internacionais

Divulgação científica de Relações Internacionais, Defesa e Economia Política Internacional ISSN 2596 2353