Uns mais iguais que os outros
Por Julia Monteath de França
“Em última instância, o essencialismo dos
direitos humanos (os seres humanos já possuem os direitos) propicia a ignorância e a passividade, ao invés de promover o conhecimento e a ação.”[1]
(Joaquin Herrera Flores)
Amanhã completará um mês depois do triste episódio na sede do semanário francês Charlie Hebdo, em Paris. Antes de mais nada, vou confessar que pouco li sobre o caso. Apesar de muito pipocar e por todos os lados – é na linha do tempo do Facebook, é no e-mail, é no celular, hoje em dia não tem muito por onde escapar das informações e, pior, das desinformações -, li menos do que gostaria e absorvi menos do que li. Dito isto, esclareço desde já que minhas reflexões daqui para frente serão pouco fundadas no grande e acalorado debate que se abriu depois do incidente. Na verdade estão muito mais para divagações sobre algumas histórias com as quais tive contato nesse começo de ano. De fato, meu objetivo com esse texto não é focar no evento ocorrido há um mês no 11º arrondisssement de Paris, mas em três histórias com as quais, graças aos avanços da tecnologia, tive contato no último mês. Descreverei os casos brevemente.
1. Chalie Hebdo
O episódio está fresco na mente de todos nós, afinal ocorreu já neste ano que mal começou. Os acusados: dois irmãos franceses de origem árabe. Para aqueles que procuram maiores reflexões sobre o tema, recomendo o tema de nossa especialista do mês de janeiro, Janaína Pinto, Do micro ao macro: o que esconde o apelo à liberdade de expressão?. Foi curioso acompanhar de longe o movimento de divisão das pessoas entre aqueles que defendiam as publicações do periódico e os contrários – os “je suis chalie” e os “je suis pas charlie”, ou seja qual for a hashtag encontrada para se expressar. Não acho que seja o caso de se voltar ao tempo em que se tinha uma lei contra a blasfêmia, ou algo parecido. Nesse sistema internacional em que nos encontramos, crescemos, criamos, e morremos, religião vai muito além da crença e a crítica não pode ser impedida. A diferença nesse episódio, é o que a crítica em questão carrega de histórico em si mesma. Aqui cito o artigo Palavras e Metralhadoras, de Vladimir Safatle, na Carta Capital: “Liberdade de expressão nunca significou, nem nunca significará, dizer qualquer coisa de qualquer forma”.
2. Adnan Syed
Esse personagem me surgiu a partir do podcast Serial [2], também de regularidade semanal, mas, como uma série, com temporadas. Até então conhecia pouco dessa tecnologia, mas não apenas por gostar do hábito do rádio, mas também por adorar policiais, essa história me prendeu. Acontece que esse policial conta uma história do fantástico mundo da vida real. O podcast apresenta o caso do assassinado de uma estudante americana de 18 anos e origem coreana, Hae Min Lee, em Baltimore, Maryland, Estados Unidos [3]. O caso aconteceu em janeiro de 1999 e em fevereiro do mesmo ano, com base no depoimento pouco preciso de uma única pessoa e sem nenhuma outra prova material ou de qualquer tipo, o ex-namorado da menina, Adnan, foi condenando à prisão perpétua aos 19 anos de idade (hoje em dia com 34 anos). Além da ausência de provas e a parca investigação, me chamou atenção nessa história algo que só foi desenvolvido no décimo episódio: a origem do réu, que é um jovem pouco abastado e de família mulçumana, de origem paquistanesa.
3. Kalief Browder
Tal constatação me fez associar outra história que havia lido um pouco antes em outro periódico, The New Yorker: a de Kalief Browder. Browder é um jovem negro do Bronx, Nova York, e foi preso voltando de uma festa para casa, prestes a completar 17 anos de idade . Mais uma vez, sem nenhuma prova além do testemunho pouco preciso de uma única pessoa. Por já ter passagens pela polícia, como é parte do histórico de grande parte dos jovens negros do Bronx, Browder foi mantido na prisão, sendo sua liberdade taxada em um valor que definitivamente não estaria a seu alcance. Enfim, Browder seguiu estratégia de defesa ligeiramente diferente da de Adnan. Apesar de ter passado “apenas” três anos em uma das mais famosas prisões da região [4], tendo sido libertado em 2013, os efeitos físicos e psicológicos para a pessoa são evidentes nesse jovem.
É o negro, é o mulçumano, é o árabe, é o imigrante, é o pobre… todos parte de minorias-maiorias marginalizadas e acusadas, vivendo em uma sociedade de iguais tão desiguais. Eventualmente, terroristas. O que me chamou atenção a ponto de juntar essas três histórias é a violência contida nos preconceitos coloniais que carregamos até hoje. Já dizem os estudiosos da decolonialidde – para mais sobre essa corrente, recomendo o artigo de Larissa Rosevics, Do pós-colonial à decolonialidade – acabamos com a colonização, mas ainda não nos desfizemos das amarras coloniais. Ainda são elas que orientam as nossas relações, desde as cotidianas até as internacionais. Definitivamente já passou da hora de se desfazer de tais amarras e um dos caminhos propostos é do giro decolonial, que se concretiza “[n]a abertura e a liberdade do pensamento e de formas de vida-outras (economias-outras, teorias políticas outras) […].” [5]
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[1] Herrera Flores citado por Costas Douzinas, em DOUZINAS, Costas. “O Fim dos Direitos Humanos”. São Leopoldo: Unisinos, 2009, p. 41.
[2] Serial é um spin-off do programa This American Life, apresentado por Sarah Koenig e produzido por Koenig e Julie Snyder.
[3] Baltimore é uma das maiores cidades do estado de Maryland, nos Estados Unidos e uma das mais populosas do país. Baltimore já foi uma cidade de indústrias, mas hoje em dia, depois de um dramático processo de desindustrialização, passa por uma fase preocupante, com altas taxas de desemprego e com uma parcela significativa de sua população (um quarto da população total e cerca de 37% de suas crianças) vivendo em situação de pobreza.
[4] Rikers, uma ilha no Rio East, com pouco menos de 162 hectares, entre Queens e Bronx. De cada oito milhões de pessoas vivendo na cidade de Nova York, algo em torno de onze mil estão confinados em suas prisões, sendo que a maioria em Rikers.
[5] Tradução livre. MIGNOLO, Walter. “El pensamiento decolonial: desprendimiento y apertura – um manifiesto”. In: CASTRO-GÓMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramón (Eds.). El giro descolonial: reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá, Siglo del Hombre Editores; Universidad Central; Instituto de Estudios Contemporáneos y Pontifícia Universidad Javeriana, Istituto Pensar, 2007, p. 29.