O Islã e as escolas

Por Suellen Lannes

 
“As palavras, assim como as letras que as compõem, proporcionam à alma a faculdade 
de agir sobre o mundo e, portanto, de deixar 
pegadas sobre os seres criados.”
Ibn Khaldun
Uma das características marcantes na formação dos modernos Estados-nações foi a separação do Estado com a Igreja. Quando o cardeal Richelieu coloca os interesses da França acima dos interesses religiosos, criando a raison d’état, ele edifica o pilar do Estado-nação. Essa separação foi se consolidando ao longo do tempo e, Na prática, se materializou, por exemplo, por meio da institucionalização da educação laica.
No Brasil, esse contexto de separação ainda está em processo. Durante muitos séculos, a política brasileira foi dominada pela Igreja católica, o que deixou fortes marcas como a presença de crucifixos em repartições públicas. No final do século XX, ocorre um processo crescente de afastamento da religião da esfera pública, refletido nos constantes debates sobre a influência da religião na educação. Esse processo tem sido turbulento, marcado pela oposição de dois grupos, um enfatizando a necessidade de aumentar a presença da religião nas escolas públicas,simbolizados pelos evangélicos, e, por outro lado, aqueles que defendem o fim dessa presença.
A Constituição de 1988 afirma no artigo 210 que “o ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental” [grifo nosso, BRASIL, 1988, artigo 210]. Complementando o artigo 19 estabelece que “é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I-estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma de lei, a colaboração de interesse público; II – recusar fé aos documentos públicos; III – criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si” [BRASIL, 1988, artigo 19].
No que tange a Lei de Diretrizes e Bases (LDB 9394/96), reafirma a visão consagrada pela Constituição  e determina que

O ensino religioso, de matrícula facultativa, constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, sendo oferecido, sem ônus para os cofres públicos, de acordo com as preferências manifestadas pelos alunos ou por seus responsáveis, em caráter: I – confessional, de acordo com a opção religiosa do aluno ou do seu responsável, ministrado por professores ou orientadores religiosos preparados e credenciados pelas respectivas igrejas ou entidades religiosas; ou II – interconfessional, resultante de acordo entre as diversas entidades religiosas, que se responsabilizarão pela elaboração do respectivo programa.”


No meio dos debates sobre laicidade passa a ganhar o destaque uma restruturação do ensino tomando por base o perfil da população brasileira e a possibilidade de se rever o tradicionalismo do ensino de história, literatura e artes. O maior exemplo dessa revisão foi a obrigatoriedade, em 2003, do ensino de “História e Cultura Afro-Brasileira” nas escolas brasileiras, pela lei n° 10.639:

Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira. Parágrafo 1o O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil. Parágrafo 2o Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras.

Inspirado por essa lei, o deputado Miguel Corrêa (PT/MG) propôs o projeto de lei n° 1780/11, que “altera a lei n° 9394, (…), para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática ‘cultura árabe e tradição islâmica’ e dá outras providências.” [PROJETO DE LEI, 2011]. De acordo com o projeto de lei,

Art. 26-B – Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre a cultura árabe e a tradição islâmica.
Parágrafo 1º – O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da história dos povos árabes, a cultura e a religiosidade islâmica e o árabe na formação da sociedade contemporânea, resgatando a contribuição do povo árabe nas áreas social, econômica e política pertinente à história do Brasil e do Mundo contemporâneo.
Parágrafo 2º – Os conteúdos referentes à história da cultura islâmica serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística, Literatura e história.

Frente ao contexto internacional e educacional atual esse projeto já nasce polêmico. A ligação direta entre o terrorismo internacional e a religião islâmica já gera especulações de incentivo a práticas terroristas. Esse contexto está ligado a um ambiente de profunda desinformação com relação a religião islâmica e aos povos árabes que o projeto de lei tenta mudar, mas pode acabar perpetuando.

A primeira coisa que tem que se clarear é a distinção entre a etnia árabe e a religião islâmica. Nem todo árabe é islâmico, assim como nem todo islâmico é árabe. A etnia árabe tem relação direta com os povos provenientes da península arábica e que têm como língua materna o árabe. A religião islâmica é seguida por qualquer um que queira fazer parte dessa religião, e para tanto, faça, simplesmente, os rituais de iniciação, seguindo, posteriormente, os seus preceitos. O que une a etnia árabe e a religião islâmica é a origem do islã na península árabe e a adoção do árabe como língua sagrada. Essa origem comum faz com que o estudo da história árabe seja atrelado a religião islâmica, conforme o projeto de lei propõe.
Outra coisa que deve ser levada em consideração são as características dessa religião. Diferente da religião católica, que passou por uma Reforma, no islã não ocorreu tal movimento e uma lida do Corão demonstra como a política e a economia estão atreladas à religião. Não é difícil de se pensar uma teocracia por meio do Corão, as regras do jogo social estão descritas em suas páginas. Sendo assim, estudar a religião islâmica significa também estudar uma forma diferente de sociedade. Estudar a tradição cultural árabe e a tradição islâmica significa estudar os preceitos da religião islâmica, estudar o Corão, enfim, trazer a religião para o ambiente escolar.
Por outro lado, ao ler a justificativa do projeto de lei, pode-se vislumbrar um outro lado desse projeto, que o torna mais polêmico. A colonização do Brasil por portugueses deixou traços que ainda hoje são presenciados na educação brasileira. Um deles é o universalismo europeu. O ocidente, em especial, a Europa são fartamente estudados e analisados pela história, arte e literatura no Brasil. Todo estudante sabe o que foi a Idade Média na Europa, mas poucos sabem da importância do Império Árabe-Islâmico para as artes, filosofia e história universal. É comum ouvirmos os nomes de Maquiavel ou Napoleão, mas é difícil encontrarmos na literatura referências a Ibn Khaldun ou Avicena.
A “quebra” desse universalismo europeu pode ocorrer por meio do estudo de culturas, até então, desconhecidas dos brasileiros. O projeto de lei de Corrêa apresenta esse viés. Procura dar a devida importância a história árabe, conforme o projeto propõe:

É importante ressaltar que a civilização árabe deixou grandes contribuições para a civilização Ocidental. O mundo árabe é um local rico em cultura e tradições e que atuação significativa no desenvolvimento da cultura europeia desde a Idade Média até o Século XV. Foram inúmeras contribuições aos diversos povos. Os árabes incorporaram a cultura grega e antiga e fizeram uma harmonização do pensamento com os ideais islâmicos. Seja na medicina, astronomia e na alquimia, a influência árabe foi muito significativa na Europa. A história narra que na Península Ibérica, os árabes influenciaram as letras, as artes, a filosofia e as ciências. Também no campo religioso, as relações comerciais e os casamentos mistos promoveram o contato entre cristãos e muçulmanos, numa clara demonstração de se expandir a sua cultura de tolerância entre os povos.

Ensinar a história dos povos árabes poderia ajudar a diminuir esse universalismo, mas também acarretaria em problemas práticos como a falta de professores detentores desse tipo de conhecimento e o preconceito, fartamente propagado, que envolve qualquer temática islâmica. A abordagem desse tema em sala de aula, parte, também, da conscientização, pelos professores, sobre o que é o islã.

Esse projeto, que se encontra parado na Câmara, traz questões profundamente relevantes para a sociedade brasileira, mexendo em pilares que estão, ainda, sendo debatidos. Não pode-se falar em cultura árabe e tradição islâmica sem levar em consideração o dilema entre a laicidade e a religião nas instituições brasileiras. Ao mesmo tempo, não se pode manter a história árabe longe das escolas brasileiras. 
 
Referências:
 
 
 
             

Diálogos Internacionais

Divulgação científica de Relações Internacionais, Defesa e Economia Política Internacional ISSN 2596 2353