Por Larissa Rosevics
O pensamento realista na área internacional tem Edward Hallet Carr (1892-1982) como seu precursor contemporâneo. Poucos teóricos, inclusive, tiveram as mesmas oportunidades que Carr teve, de participar das principais transformações do início do século XX. Pertencente a uma família de classe média londrina, E. H. Carr realizou seus estudos superiores na Universidade de Cambridge, no curso de Estudos Clássicos. Com o deflagrar da Primeira Guerra Mundial, alistou-se nas forças armadas inglesas e, em 1916, foi designado para o Ministério das Relações Exteriores, onde permaneceu até 1936. Como funcionário da diplomacia inglesa, teve a oportunidade de participar da Conferência de Paz em Paris e de presenciar a assinatura do Tratado de Versalhes, em 1919. Essas experiências permitiram que lecionasse Política Internacional no Colégio da Universidade de Gales a partir de 1936, onde escreveu um de seus livros mais conhecidos, Vinte anos de crise: 1919-1939.
As críticas realizadas por Carr em Vinte anos de crise aos estudos de política internacional de seu tempo revelam a importância da história, da filosofia política e da economia política. Seus principais interlocutores são os pensadores pré-Primeira Guerra e do período entre guerras, em especial: o jornalista Norman Angell, que em 1912 havia publicado o livro A grande ilusão, em que defendia ser a guerra um fenômeno em extinção, por se tornar cada vez menos interessante financeiramente, graças à interdependência pelo comércio que o mundo globalizado proporcionara; o professor Alfred Zimmern, defensor da normatização do sistema internacional e da criação de instituições como a Liga das Nações para a regulamentação das relações entre os Estados; e o presidente estadunidense Woodrow Wilson, propositor de uma ideia de segurança coletiva para o sistema internacional, institucionalizada na figura da Liga das Nações.
Harmonia de interesses
A crítica de Carr aos pensadores “idealistas” pode ser sintetizada na ideia de harmonia de interesses. O objetivo é desconstruir as ideias de que laissez faire, o comércio e a normatização das relações entre os Estados seriam capazes de criar uma harmonia geral dos interesses, e consequentemente uma “paz perpétua”.
A tese do laissez faire de afastar o Estado das questões econômicas, confinando aos indivíduos o controle dos interesses coletivos e ao mercado a autorregulação, promoveu a concentração de renda e a desigualdade social. O livre comércio só interessava aos países que já haviam se industrializado, como a Inglaterra e os Estados Unidos, e ainda sim, a base de muito protecionismo. A tese de que o interesse individual é o mesmo que o interesse coletivo se converte na ideologia de uma classe dominante, interessada em preservar seu status de poder em relação às demais classes da sociedade.
Basear a moral internacional a partir da moral individual via harmonia de interesses seria como ignorar a contribuição de Maquiavel com relação importância da moral do Estado dissociada da moral do indivíduo, pois a preocupação do Estado está na sua sobrevivência e no bem-estar de seus cidadãos.
Entre os Estados, a ideia de harmonia de interesses segue a lógica de que os interesses de uma nação são os mesmos que os interesses de toda a humanidade. O livre comércio se justifica no fato do interesse econômico de cada nação intensificar-se com o interesse econômico do mundo inteiro. No entanto, o liberalismo econômico gerou o acirramento pelas disputas por mercados e o Imperialismo. Mais tarde, Kenneth Waltz irá aprofundar as percepções de Carr, ao afirmar que as intensas relações comerciais que a Alemanha tinha com a Inglaterra, com a França e com a União Soviética não a impediram de entrar em conflito com esses países, pois havia outros interesses em jogo além dos econômicos. A partir da perspectiva do poder, a guerra passa a ser percebida como um fenômeno inevitável, dada a insegurança intrínseca da condição anárquica do sistema internacional.
Pensamento de Carr Pós Segunda Guerra
A partir da década de 1950, Carr assumiu a cadeira de docente na Universidade de Cambridge, o que lhe possibilitou o desenvolvimento de diversas pesquisas sobre história contemporânea, especialmente da União Soviética. Simpático às ideias socialistas e esquerdistas, ele buscou na URSS alternativas para as contradições presentes no capitalismo. Alguns dos seus estudos sobre os soviéticos foram publicados no Brasil sob o título de A revolução russa de Lenin a Stalin, pela editora Zahar na década de 1970.
A concepção de história de Carr é outro aspecto marcante em sua obra. Publicadas sob o título Que é história?, as conferências realizadas na Universidade de Cambridge entre janeiro e março de 1961 trazem uma crítica à história tradicional. Ao historiador é imputado um papel central na construção da história, sendo ele o responsável pelos recortes no tempo, pela seleção dos fatos, pela análise crítica e pela construção do conhecimento. No entanto, ele está inserido em um processo histórico particular, único, que o constrói e influencia. Não há imparcialidade nem neutralidade, impedidos pelo uso da linguagem .
Dentre os estudos menos explorados de Carr encontram-se seus escritos sobre o Nacionalismo. Entre os anos de 1937 e 1939, Edward Hallet Carr foi membro de um grupo de estudos do Royal Institute of International Affairs, onde desenvolveu uma pesquisa relacionada à questão do nacionalismo. Seus estudos, apontados no prefácio da primeira edição de Vinte anos de crise, foram publicados em 1945, no livro Nationalism and after.
Entre as décadas de 1980 e 1990, diversos centros de pesquisa promoveram releituras críticas das obras de Carr, como destacam Charles Jones (1998) e Maikel Trento (2008). O legado intelectual deixado por Carr e a influência do marxismo em suas obras, torna difícil classificá-lo em uma escola teórica, especialmente a realista. No entanto, sua importância segue inquestionável.
Referências
CARR, E.H. Nationalism and after. London: Macmillan, 1945.
CARR, E.H. Que é história? 7 reim. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
CARR, E.H. Vinte anos de crise: 1919-1939. 2.ed. Brasilia: UNB, 2001.
JONES, Charles. E.H.Carr and International Relations: a duty to lie. Cambridge: Cambridge University Press, 1998.
TRENTO, Maikel. O tema da guerra na escola inglesa das relações internacionais. Contexto Internacional, Rio de Janeiro, v.30, n.1, p.171-208, jan-abr.2008.
DINIZ, Eugênio. Política internacional: guia de estudos das abordagens realistas e da balança de poder. Belo Horizonte: Ed. PUC MINAS, 2007.
GRIFFITHS, Martin. 50 grandes estrategistas das relações internacionais. São Paulo: Contexto, 2005.
WILSON, Peter. Introduction: the twenty years’ crisis and the category of ‘Idealism’ in International Relations. IN: LONG, David; WILSON, Peter (ed). Thinkers of the twenty years’ crisis: inter-war idealism reassessed. Oxford: Clarendon Press, 1995. (p.1-24).