Celso Furtado (1920-2004): dez anos sem o internacionalista

Por Glauber Cardoso Carvalho
Ontem, 20 de novembro de 2014, fez dez anos que Celso Furtado nos deixou. Seu pensamento, porém, guardado e divulgado com excepcionalidade por Rosa Freire d’Aguiar, continua vivo. Via Centro Celso Furtado, do qual tenho a honra de ser o primeiro funcionário e a colaborar desde seu princípio, ela mandou uma linda nota com lembranças que nos transportam no tempo e trouxe palavras do mestre que as novas e antigas gerações precisam refletir. (Leia a nota aqui)
Destaco de imediato um trecho de “Os desafios da nova geração”:

[…] o crescimento se metamorfoseia em desenvolvimento. Ora, essa metamorfose não se dá espontaneamente. Ela é fruto da realização de um projeto, expressão de uma vontade política. As estruturas dos países que lideram o processo de desenvolvimento econômico e social não resultaram de uma evolução automática, inercial, mas de opção política orientada para formar uma sociedade apta a assumir um papel dinâmico nesse processo.

É redundante, e esse post não se propõe parcial, dizer que Celso Monteiro Furtado foi, sem dúvida, um dos expoentes do pensamento econômico brasileiro, reconhecido mundialmente. Além de ter sido atuante no executivo brasileiro, sobretudo na área do planejamento e cultura, teve grande produção acadêmica no exterior, onde foi professor de algumas universidades norte-americanas e europeias durante o período da ditadura no Brasil.
Sua trajetória foi marcada pelo profundo desejo de compreender os problemas nordestinos, brasileiros, latino-americanos e mundiais. Sua enorme capacidade de absorver a realidade e traduzi-la guardava estreita relação com sua inquietude para atuar neste cenário e modificá-lo. Assim foi que seus estudos sempre tiveram expressão no executivo e se manifestaram de forma a contemplar as possibilidades de um efetivo planejamento nacional.
Fora essa capacidade de avaliação do espectro econômico, das teorias do desenvolvimento, do planejamento econômico e da evolução das estruturas nacionais na formação do Brasil, Celso Furtado contribuiu de forma ativa para a análise das relações econômicas internacionais e para os estudos do cenário internacional. Devemos lembrar que as forças externas, o fluxo de capital, a empresa transnacional, a estrutura de poder, as hegemonias, sempre fizeram parte do método analítico de Celso Furtado.
Suas reflexões maduras sobre as relações internacionais contemporâneas e a integração regional não tem sido, entretanto, utilizadas nas academias nacionais de RI como pensamento brasileiro, com algumas exceções. Talvez porque seus estudiosos, economistas em maioria, não tenham se debruçado sobre seus escritos de forma a capturar esse viés específico. Talvez porque nossa academia de RI tende, desde seu nascedouro, a olhar com mais apreço para fora (de preferencia de todo o continente sul-americano)
E, assim, as características da análise das relações internacionais em Celso Furtado se perdem em meio aos importantes estudos sobre a formação econômica do Brasil – ainda que impensável sem o viés externo – ou permanecem em segundo plano, coadjuvantes nos estudos sobre sua produção intelectual. Diz Luiz Felipe de Alencastro, na introdução da edição definitiva do livro “A economia latino-americana” que

Boa parte da reflexão mais ampla de Celso Furtado, em particular sua obra produzida na França, onde em plena maturidade intelectual, ele se investiu na vida universitária, ficou meio ensombrecida em nosso país pela enorme influência que Formação econômica do Brasil granjeia desde sua publicação, em 1959.[1]

A atualidade do pensamento furtadiano e desenvolvimentista guarda profunda relação, claro, com o cenário internacional, ressaltadas as contribuições da Cepal, sobretudo nas análises dos processos de integração econômica que se desenrolam no continente americano, pensando o subdesenvolvimento e as questões da dependência.
A aproximação entre o pensamento de Celso Furtado e às relações internacionais e à economia política internacional pode ser realizada de diversas maneiras e partir de distintos temas. Enfocamos rapidamente um pensamento sobre integração regional, percebendo como ela não saiu do foco do autor durante toda a sua produção intelectual. Diz Furtado, em texto de 1969,

Essa idéia-força (formação de mercados comuns regionais) que seguramente desempenhará papel fundamental no desenvolvimento da região nos próximos decênios, difundiu-se rapidamente no passado recente como reflexo da percepção de que pequenos países isolados não poderão fazer face aos crescentes problemas colocados pelo subdesenvolvimento. A experiência recente já demonstrou, entretanto, a enorme complexidade da tarefa e a esterilidade dos estereótipos convencionais na abordagem do problema.[2]

Na atualidade tem crescido a importância dos estudos sobre os processos de integração regional, influenciados pela experiência, dita positiva, da história europeia e, ao contrário, pela estagnação ou malogro de outras. Guardadas as especificidades regionais também faz parte da redescoberta desse campo de estudo a tentativa de gerar um olhar mais crítico sobre o fenômeno da “globalização”, que levou a uma homogeneidade de interpretação, de uniformização das tendências e a vitória do poder dos mercados. Tida como um debate contemporâneo, entender a interação da força econômica com a política entre os Estados e o mercado, a percepção da estrutura do sistema internacional, as transformações na ordem econômica mundial e a influência do quadro regional no desenvolvimento regional, são itens que devem ser analisados com profundidade.
Finalmente, Celso Furtado teve grande produção acadêmica, com grande qualidade, ao longo de sua vida, no Brasil e no exterior. Manteve sempre grande preocupação nas relações globais, que permeava toda a sua análise, sobretudo as relações econômicas, que possibilitava a ele uma análise mais completa da conjuntura. É ele mesmo quem explica no prefácio do livro Formação econômica da América Latina, de 1969, que os estudantes sobre o desenvolvimento econômico nacional deveriam de forma crescente levar em consideração as referencias regionais. Também que o próprio estudo da formação econômica do Brasil requeria sua inserção regional e a compreensão do comportamento do que chama dos “pólos dinâmicos da economia mundial”.[3]
De forma geral, vemos o contrário: pouca produção e de pouca qualidade é um mal que nossa academia hoje sofre. Todos sabem tudo de tudo e adoram se expor, e há uma tendência grande de ultrapassar os do “passado”. Alguns em renomadas universidades ousam, por exemplo, julgar a obra de Furtado sem terem escrito um livro sequer, sem ter servido ao Brasil ou qualquer outro país em nenhum posto de relencia e sem conseguir fazer uma reflexão autônoma…
Perdemos Celso e, desde então, alguns outros que nos eram referência. Em breve a maioria terá ido e as futuras gerações terão que inventar novos idolos em tempo de facebook. Temo que não passem dos 15 minutos.
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[1] ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Celso Furtado e a América Latina. In: FURTADO, Celso A economia latino-americana: formação histórica e problemas contemporâneos. 4. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 21.
[2] FURTADO, Celso A economia latino-americana:formação histórica e problemas contemporâneos. Op. Cit. p. 369.
[3] FURTADO, Celso. A economia latino-americana: formação histórica e problemas contemporâneos. Op. Cit. p. 26.

Diálogos Internacionais

Divulgação científica de Relações Internacionais, Defesa e Economia Política Internacional ISSN 2596 2353