Desequilíbrios globais, moeda estatal e demanda efetiva
Por André Saboya
Imagem: mozreal.com |
O fenômeno dos desequilíbrios globais refere-se ao aumento dos superávits e dos déficits em conta corrente em nível mundial. No período anterior à crise de 2008, esse desequilíbrio aumentou com o aumento dos déficits dos grandes países importadores e dos superávits dos grandes países exportadores. A suscetibilidade da economia mundial à crise aumenta caso os gastos relacionados a essas trocas internacionais não sejam sustentados. Esse fenômeno pode ser explicado pelos conceitos de moeda estatal e demanda efetiva.
Sob a perspectiva dos desequilíbrios globais, o crescimento da economia mundial nos últimos anos, principalmente no período anterior à crise de 2008, tem sido acompanhado por um aumento do desequilíbrio entre as contas correntes dos países. Em períodos de crescimento econômico, os grandes países exportadores (Alemanha, Japão, China,) exportam (ofertam) mais, enquanto os grandes países importadores (Estados Unidos e outros países europeus) importam (demandam) mais. Ao mesmo tempo, os Estados Unidos, responsável por garantir a liquidez internacional, garante o crescimento econômico ao ofertar mais moeda do que demanda.
Gráfico 1: Desequilíbrios globais de países selecionados
Fonte: <https://www.imf.org/external/pubs/ft/weo/2014/02/pdf/c4.pdf> |
Dentro do conceito da Moeda Estatal ou perspectiva chartalista da moeda, defendida por Knapp[1], a moeda não é uma mercadoria, mas uma unidade de conta definida pelo Estado. A moeda não precisa de uma reserva de ouro ou prata para se sustentar, como se defende na teoria clássica sobre moeda. A demanda por moeda é garantida pela cobrança de impostos (o Estado viabiliza o pagamento de impostos por meio da violência), de modo que todos os setores da sociedade submetidos ao controle estatal são obrigados a aceitar a moeda emitida pelo Estado. O Estado, portanto, possui mais liquidez do qualquer outro agente intra-estatal para saldar suas dívidas e gerar gastos, pois controla a moeda aceita por todos. Além disso, para o sistema monetário funcionar, o Estado não pode demandar recorrentemente mais moeda do que o setor privado, para não acabar com a liquidez na economia (como afirmado anteriormente, os impostos servem para gerar demanda por moeda e, não, para financiar o Estado)[2].
No sistema interestatal contemporâneo, a moeda internacional aceita por quase todos os Estados é o dólar americano, de modo que os Estados Unidos possuem mais liquidez do que todos os outros Estados e precisam ofertar mais moeda do que demandam para que o sistema monetário internacional funcione com crescimento. Em larga medida, a aceitação do dólar também depende do poder de coerção norte-americano, exercido pela capacidade de mobilização militar em qualquer ponto no planeta. A demanda global por títulos e moeda americanos é, assim, consequência da imposição da dívida estadunidense sobre os demais países do mundo[3].
Dentro da zona do euro também há uma moeda aceita por todos os Estados europeus e a liquidez é garantida por meio de uma expansão do crédito, porém, a moeda não é controlada por um ente estatal, o que prejudica a autonomia de gasto europeu e torna a economia da zona do euro mais suscetível a crises quando comparada à estadunidense[4].
Dentro do conceito de demanda efetiva, em que se propõe que o crescimento econômico depende de um crescimento da demanda, o crescimento mundial depende do aumento da demanda e, em grande medida, da demanda dos maiores importadores mundiais, Estados Unidos e Europa. O aumento do consumo gera um aumento mais do que proporcional na economia mundial, devido ao efeito multiplicador do consumo, como defendido por Kalecki[5] e Keynes[6].
Sob a perspectiva de ambos os conceitos, se percebe que há uma relação direta entre liquidez e demanda, de modo que o Estado que possuir mais liquidez – ou seja, que controla a moeda aceita por todos – pode gerar mais renda, mais gastos e, portanto, maior demanda. Quando os Estados Unidos expandem seus gastos, há um aumento do crescimento mundial, pois há maior liquidez no sistema; quando eles retraem esses gastos, há uma diminuição do crescimento mundial. A demanda mundial por moeda americana resulta na dependência dos demais países do mundo por maiores gastos estadunidenses, de modo que o crescimento mundial tende a gerar maiores desequilíbrios globais e maiores perspectivas de crises, caso esses gastos não sejam sustentados.
Na Europa, a capacidade dos Estados importadores voltarem ao patamar anterior de consumo ainda não foi restabelecida devido à diminuição do crédito e aos planos de austeridade que prejudicam a renda, a demanda desses países, e, portanto, o crescimento de todo o continente. O problema da moeda supranacional como instrumento do Estado encontra-se mal resolvido, portanto, pois a falta de expansão monetária representa, na prática, uma restrição externa aos países endividados. A posição europeia como importadora líquida mundial pode tornar-se um problema maior, caso a capacidade europeia de gerar gastos não seja modificada.
Esse padrão de crescimento a partir dos gastos dos Estados Unidos e da Europa poderia se transformar com a aceitação de outras moedas e a imposição de outros sistemas de dívida no mundo que pudessem rivalizar com o dólar e com os Estados Unidos. Essa perspectiva de mudança, contudo, continua distante.
André Saboya é pesquisador bolsista na ENSP-Fiocruz, mestre em Economia Política Internacional pela UFRJ e bacharel em Relações Internacionais pela PUC-Rio.
[1] KNAPP, J.F. The State Theory of Money. Londres: MacMillan 1924.
[2] Cf. GRAEBER, D. Debt: the First 5000 Years. Nova Iorque: Melville, 2011; e WRAY, L.R. Modern Monetary Theory: A primer on Macroeconomics for Sovereign Monetary Systems, Nova Iorque: Palgrave MacMillan, 2015.
[3] FIORI, J.L. O poder americano. Petrópolis: Vozes, 2007
[4] LUCARELLI, B. The Euro: A Chartalist Critique. International Journal of Political Economy, n. 44, v. 1, 2015.
[5] KALECKI, M. Teoria da dinâmica econômica. São Paulo: Nova Cultural, 1977.
[6] KEYNES, J.M. Teoria geral do emprego, do juro e da moeda. São Paulo: Nova Cultural, 1996.