Cartas à mesa

Por Julia Monteath de França
“One heartbeat away from the presidency, 
not a single vote cast on my name….
Democracy is so overrated.”
Frank. J. Underwood

Michael Dobbs, um político conservador inglês, realizou grande parte de sua formação superior nos Estados Unidos, tendo lá estudado nas áreas de direito e diplomacia, sendo seu doutorado na área de estudos de defesa nuclear. Adquiriu seu PhD em 1975, quando retornou à Inglaterra para trabalhar no Partido Conservador inglês. Trabalhou ao lado da Dama de Ferro, Margareth Tatcher, quando ainda era líder da oposição, de 1977 a 1979. Construiu toda sua carreira política no Partido Conservador, tendo entrado para a Câmara dos Lords em dezembro de 2010 – dentre outros feitos de sua importante participação na vida política britânica.

Isso tudo apenas para mostrar que, se tem alguma coisa que, de acordo com seu currículo, Dobbs conhece bem, são as engrenagens do poder político do tão enaltecido “mundo livre” [1] – e o conhece a partir do topo. Mas Dobbs também tem outra face profissional, ainda que mais recente, não menos notável: a de escritor. Ele começou a escrever em 1989, quando lançou o primeiro livro de uma trilogia [2], intitulado House of Cards.  A trilogia, que se completa com os volumes subsequentes, To Play the King (1992) e The Final Cut (1994), foi televisionada pela BBC no formato de minisséries e o primeiro de seus livros, assim como a minissérie, inspiraram a atual serie, lançada pelo Netflix, já com duas temporadas no ar.
Basicamente a série americana conta a história de um astuto, experiente e ambicioso congressista norte-americano, do Partido Democrata, representante do estado de Carolina do Sul, Frank J. Underwood – aliás, a citação em epígrafe é de uma fala de seu personagem no segundo episódio da segunda temporada. O deputado, Frank (excepcionalmente interpretado por Kevin Spacey), não faz muitas restrições no que diz respeito aos meios necessários para conseguir chegar onde quer. Também despido de qualquer preocupação ou apego com o outro, exceto, talvez, sua esposa e parceira, Claire (interpretação igualmente notável de Robin Wright), com quem compartilha planos e ambições. Os dois personagens, a despeito dos poucos e discretos gestos de carinho um com o outro, têm uma sintonia fina no que se refere à estratégia de ação para alcançar suas ambições.
A trama tem início quando, ao ajudar a eleger um novo presidente dos Estados Unidos, o deputado descobre que não ocupará o desejado cargo de Secretário de Estado dessa nova gestão – posto prometido ainda nos tempos de campanha do recém-eleito presidente. Frank e sua companheira, então, resolvem dar o troco aos responsáveis por tal decepção. Assim, dão início a um longo e complexo plano de vingança. Desde a primeira cena, Frank deixa claro que ruas relações são guiadas única e exclusivamente por seus interesses pessoais e profissionais.
Com tal promessa descumprida logo nos primeiros dias de mandato, Frank resolve se vingar daqueles que considera que o traíram. É neste enredo que se constrói a trama, instigante e, ao mesmo tempo, rica em detalhes do cotidiano da política formal no maior dos países do “mundo livre”, bem como sua conturbada relação quase que de protocooperação entre a política e os meios de comunicação.
Além de tocar em questões importantes, e muitas vezes polêmicos, de assuntos domésticos de um país – como educação, saúde, infraestrutura e, mais especificamente, aborto, drogas e prostituição, dentre outros – a série traz uma perspectiva deveras interessante sobre a política internacional, a partir de uma perspectiva de dentro do governo daquele país até hoje considerado como a maior potência mundial.
Em particular, a série dá bastante ênfase, principalmente em sua segunda temporada, à relações dos Estados Unidos com a China. Interessante ver o destaque dado às relações econômicas com Pequim/Beijim, quase que em subordinação às relações políticas – que quase se restringem à diplomacia e ao asilo político de um grande empresário chinês. A série consegue ilustrar bem como essas duas esferas – a política e a economia – são, no fundo, faces de uma mesma moeda, o capitalismo contemporâneo.
Nesse sentido, o poder político é alimentado pelo poder econômico e vice-versa. Ao apresentar os “bastidores” da maior potência mundial, a série consegue mostrar toda a promiscuidade dessa relação. Ilustra muito bem também como muitas vezes, para não dizer todas, as coisas do mundo político como nos são apresentadas – a nós, cidadãos comuns – não são o que parecem ser. Como nessa teia de relações, apenas a ponta do iceberg está explícita – até mesmo para os próprios políticos, partes das engrenagens desses poderes – e todo o resto fica submerso, implícito, conformando um complexo jogo de interesses e poder em que as cartas são estrategicamente colocadas à mesa.
É claro que a trama de House of Cards é uma historia ficcional e, como tal, pinta muitos aspectos com cores mais fortes que outros. Mas o próprio Dobbs tem em sua biografia uma amostra dessa relação, tendo ocupado altos cagos em importantes empresas em especial do ramo das comunicações e publicidade.
E essas são as regras do tão idolatrado “mundo livre”, que de livre tem tão pouco.
E a arte segue imitando a vida.
[1] “Free world” em inglês, uma expressão muito usada na série americana.
[2] A trilogia recebeu 14 indicações ao British Academy of Film and Television Arts, dos quais ganou dois, tendo sido também eleito como o 84º Best British Show in History.
Na história, Frank tem um apreço especial por uma costela de dar água na boca de ver seu prazer em destruí-la. O prato é preparado por Freddie, um negro de subúrbio com uma cantina pouco frequentada. Só porque eu descobri recentemente e resolvi compartilhar a receita.

Diálogos Internacionais

Divulgação científica de Relações Internacionais, Defesa e Economia Política Internacional ISSN 2596 2353

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