Volume 1 | Número 3 | Ago. 2022
Por Julia Monteath de França
“O processo é lento“
BNegão
É curioso como certos temas permanecem silenciados em uma sociedade – seja por preconceito, pudor ou por, de fato, as pessoas acreditarem que, ao não se tocar no assunto, ele desaparece da existência real. Esses temas costumam vir à tona quando a situação de encobrimento já não é mais sustentável. O tema do refúgio no Brasil me parece se encaixar nesta categoria, muito embora ele ocupe uma importante parte de nossa história, já há muito tempo.
Depois de algum tempo sendo o país de origem de refugiados espalhados por todo o mundo, o Brasil vem invertendo esta situação, já há algumas décadas, passando a ocupar o lugar de país de destino para essas pessoas. Os motivos para esta inversão não são obscuros, e o processo tem ocorrido de forma lenta, gradual e contínua ao longo dos anos[1].
O Brasil tem, hoje em dia, uma legislação para a migração internacional que data dos anos 1980, o Estatuto do Estrangeiro (Lei nº 6.815), do governo do general João Figueiredo, ainda nos tempos da ditadura civil-militar brasileira. Tempos áureos em que a segurança nacional vinha em primeiro lugar (antes mesmo de seus próprios cidadãos, imagine dos aliens, como são chamados os imigrantes em alguns países anglofônicos). Até hoje, no entanto, ela se mantém e, ao invés de inovar e construir uma política migratória para o país, ainda mantemos a doutrina de segurança como orientadora dos processos migratórios nacionais. [2]
De acordo com essa lei o Estado tem poder discricionário. Dentre outras anacronias, como a restrição de direitos humanos, o processo migratório é, até hoje no Brasil, extremamente burocrático e ineficiente – o que acabou levando a várias leituras e aproveitamentos de brechas, o famoso “jeitinho”, para que o país pudesse avançar e se adaptar à sua nova realidade.
É bem verdade que praticamente todos os interessados no tema concordam que a lei precisa mudar urgentemente. Falta ainda, contudo, se chegar a um consenso da direção dessa mudança.
Acontece que, nos últimos cinco anos, não é mais possível esconder o número de solicitantes de refúgio que entraram no Brasil. Desde a entrada dos haitianos no país, como consequência da crise de 2010 que destruiu o país, o número só vem crescendo e as origens são muitas, mas normalmente sempre do hemisfério sul do planeta. Com esse incômodo batendo à porta – quase que literalmente – a sociedade não consegue mais manter o silêncio, o que se reflete também na produção dos meios de comunicação.
Não demora a aparecer aqui ou acolá uma reportagem um pouco maior sobre ”uma das maiores ondas migratórias já registradas no país”[3] e sobre a preocupação que a entrada dessas pessoas traz para toda a sociedade – afinal, trazem doenças, roubam nosso trabalho, moradia, escola, saúde… Obviamente não se pensa isso quando falamos das centenas de milhares de migrantes que entram no país com contrato de trabalho.[4]
Sim, essa distinção conceitual é bastante importante e muito pouco pontuada: em tese, a razão do deslocamento de um migrante é sua busca pessoal (ou familiar) por melhores condições de vida, e o deslocamento parte de uma escolha, enquanto a de um refugiado é se proteger de uma ameaça a sua integridade física e moral, ou seja, o deslocamento e forçado por uma falta de escolha.
Contudo, segundo a legislação ainda vigente, caso você não tenha um contrato de trabalho, o Estado não permite que o imigrante permaneça de forma regular no país. Com isso, o que tem acontecido, é que os imigrantes que chegam sem essa garantia do emprego – normalmente, vindos de países menos desenvolvidos e, em sua grande maioria, negros – entram em territórios brasileiros solicitando refúgio, pois, como solicitantes, eles ganham o direito a um documento provisório até receberem uma resposta do Estado. Como essa resposta costuma demorar, por questões procedimentais das instituições envolvidas, a esperança é conseguir um emprego antes deste prazo.
Tendo em vista que este fato não é segredo para ninguém e aproveitando este momento em que estamos, de repensar a lei de migrações no Brasil, vale refletir sobre o que Souza, alguém envolvido há algum tempo com as questões de refúgio no Brasil, fala:
[a]qui se trata menos de reivindicar a ampliação da condição de vítima daqueles indiretamente atingidos ou para aqueles vulneráveis (as virtuais e potenciais vítimas), e mais de indicar o quanto pode ser irrelevante (para não dizer injusto) distinguir entre os que são verdadeiramente refugiados do que apenas fingem ser. Trata-se, pois, de lutar pela ampliação do próprio conceito de refúgio como forma de legitimar o direito à mobilidade, ainda que para isso seja necessário afirmar a condição de vítima (atual, virtual, potencial ou mesmo fictícia).[SOUZA, 2010, p. 91]
O alarde criado só traz à superfície aqueles preconceitos e discriminações que persistem e que há tanto tentávamos esconder, além da falta de prática de se olhar no espelho e de se olhar para nossos iguais, em diversos sentidos. E aí percebemos as contradições na lógica desse sistema, que também tentam se esconder, em que ainda prioriza-se o capital em detrimento do homem.
As fronteiras do mundo todo se escancaram cada vez mais ao capital financeiro e às mercadorias, à tecnologia de ponta e aos serviços em geral, convertendo o planeta numa aldeia. Por outro lado, a política migratória com suas leis restritivas e controles rígidos endurece cada vez mais em relação aos sonhos e aos projetos dos trabalhadores. [MNDH; DHESCA; MISEREOR; PAD, 2012,p. 367]
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Notas:
[1] Desde a década de 1990, estima-se que algumas dezenas de milhares de imigrantes tenham entrado no país. Este número, no entanto, ainda é bastante incerto.
[2] Justiça seja feita, a discussão sobre uma mudança legislativa já existe e não é de hoje, mas, como canta BNegão na música citada em epígrafe, “o processo é lento”.
[3] Esquece-se, aqui, uma das páginas infelizes de nossa história que foi o tanto de escravo que entrou no país nos primeiros séculos de nossa história. Só no ano de 1848, entraram 60 mil nestas condições [IPEA; BANCO MUNDIAL, 2011, p. 29].
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Referências Bibliográficas:
IPEA; BANCO MUNDIAL. Ponte Sobre o Atlântico – Brasil e África Subsaariana: parceria Sul-Sul para o crescimento. Brasília: IPEA e Banco Mundial, 2011.
Ipea; Banco Mundial, Ipea; Banco Mundial, Ponte Sobre o Atlântico – Brasil e África Subsaariana: parceria Sul-Sul para o crescimento, 2011.
SOUZA, Fabricio Toledo. O caso Battisti e o caso dos refugiados congoleses: a justiça em termos de luta. Lugar Comum, n. 30, 2010.
MNDH, DhESCA, Misereor, PAD. Direitos Humanos no Brasil 3: diagnósticos e perspectivas. Passo Fundo, 2012. Disponível em: <http://oestrangeirodotorg.files.wordpress.com/2012/12/direitos-humanos-brasil-3.pdf >.
Julia, seu texto é de extrema relevância. A falta de uma política migratória construída dentro dos marcos da Constituição Cidadã de 1988 e que perceba a questão da migração e do refugio de maneira humanista demonstra o quanto o país ainda precisa avançar. Essa política precisa ser construída em consonância com o interesse nacional e associada a um projeto nacional de desenvolvimento distributivo. O que quero dizer é que não basta termos uma política migratória, mas oferecer condições de vida para esses indivíduos não apenas nos grandes centros, como sul e sudeste que já sofrem com superpopulação nas cidades, mas em outras regiões do país, estimulando assim o crescimento populacional e econômico do interior do país. Será que algum dos candidatos a presidência está preocupado com isso?
Pois é, guria. Infelizmente, como o pensamento político ainda se limita muito às eleições no Brasil, inclusive pelos próprios políticos, essa questão nunca faz parte da pauta prioritaria de nenhum candidato, já que os imigrantes têm seus direitos políticos restritos no Brasil, não podendo votar em ninguém – aliás, é vedada qualquer forma de organização!
Espero que ela não apareça na pauta como acontece na Europa, como uma reação a essas entradas em massa e a partir de uma perspectiva xenofóbica.
De resto, é esperarmos para ver quais os próximos passos dessa discussão no Congresso que, dado o período eleitoral, já está sendo esvaziado.