Os Estudos de Segurança Internacional e a Tríplice Fronteira
Volume 9 | Número 88 | Jan. 2022
Por Micael Alvino da Silva
Esse texto é um diálogo proposto entre a leitura de Barry Buzan e Lene Hansen (2012) e a inserção internacional da Tríplice Fronteira entre Argentina, Brasil e Paraguai (TF). O livro é uma história intelectual do posicionamento das diferentes abordagens nos debates sobre Estudos de Segurança Internacional (ESI). A TF é uma região da América do Sul que entrou na agenda de segurança internacional principalmente após os ataques terroristas aos Estados Unidos em 11 de setembro de 2001. O objetivo desse texto é refletir sobre como os estudos internacionais sobre a TF podem ser posicionados no espectro mais amplo dos ESI e qual seria um caminho teórico-metodológico apropriado para seu estudo.
A Evolução dos Estudos de Segurança Internacional é uma leitura obrigatória para estudantes de Relações Internacionais. Constitui-se em referencial básico para disciplinas clássicas da área como Estudos Estratégicos e Estudos para a Paz. Como se propõe a analisar a história desde o surgimento dos ESI até a edição original do livro (em 2008), é de se esperar que o livro passe por todas as temáticas relevantes da subárea desde o pós-Segunda Guerra Mundial até o pós-Guerra Fria, adentrando nas primeiras décadas do século XXI. Antes de abordar a questão da TF, duas ponderações: o contexto ocidental e a identidade dupla dos ESI.
Sobre o contexto ocidental, os autores nos advertem que os ESI, assim como a área de Relações Internacionais, são “de nascença” anglo-americanas e “baseada em uma concepção ocidental de Estado” que pressupõe “relevância política e empírica limitada para grande parte do mundo não ocidental” (BUZAN e HANSEN, 2012, p. 48-9). Também é importante destacar que boa parte da produção impactante dos ESI deve ser lida com certos cuidados por vezes indicados pelos próprios autores do campo dos ESI. No clássico O Choque de Civilizações, por exemplo, Samuel Huntington adverte seus leitores a não considerar o livro como uma obra de ciência social, mas uma leitura interpretativa do mundo pós-Guerra Fria (HUNTINGTON, 1997, p. 12).
Barry Buzan e Lene Hansen resumem um aspecto importante dos ESI, a saber, sua identidade dupla: acadêmica e política. Nesse sentido, os ESI não são conduzidos exclusivamente pelo processo de descoberta científica, mas também “pelo seu engajamento no mundo da política e pela influência do mundo da política sobre eles”, de modo que nos EUA, por exemplo, é normal que escritores de ESI passem “uma parte de suas carreiras na academia ou Think Tanks e parte delas no governo” (BUZAN e HANSEN, 2012, p. 87). Essas ponderações sobre o contexto ocidental e a identidade dupla devem soar como alertas para os iniciantes na temática sob o risco de incorrer em equívocos de análise, especialmente ao se deparar com produções que representam mais algum tipo de “propaganda” do que estudos de “qualidade acadêmica” (BUZAN e HANSEN, 2012, p. 254).
Uma das perspectivas de estudo sobre a TF é aquela denominada internacionalista, cujos autores se preocupam com a inserção da região na agenda internacional de segurança após 11 de setembro de 2001 (SILVA, 2021). Ainda que a América Latina tenha atraído “um interesse relativamente pequeno” por não possuir “centralidade estratégica” (BUZAN e HANSEN, 2012, p. 276-7), a TF foi incorporada na agenda de segurança internacional por suspeitas de vínculo com o terrorismo.
A leitura de Buzan e Hansen nos permite situar esse conjunto de análises de internacionalista no contexto dos eventos históricos e da evolução dos ESI. No contexto histórico, é possível associar o caso da Tríplice Fronteira no âmbito de uma constatação do período pós-Guerra Fria. A propósito, é central considerar as concepções de segurança objetivas (existência de ameaça), subjetivas (existência de ameaça que pode variar entre superestimada, racional e subestimada) e discursivas (sem existência de condição material, são construídas) (BUZAN e HANSEN, 2012, p. 66-68). Em que pese o fato de que essas construções podem ser muito mais em torno de um “risco” do que de uma “ameaça”, “as concepções discursivas de segurança” ocuparam “uma parte central das abordagens ampliadoras desde os anos 1980” (BUZAN e HANSEN, 2012, p. 366).
As abordagens ampliadoras (Pós-estrututuralismo, feminismo, pós-colonialismo, construtivismo e Escola de Copenhague) são apresentadas em contraste com as abordagens tradicionalistas (Estudos Estratégicos e Estudos para a Paz). Para o estudo da Tríplice Fronteira, a ausência de “provas” do nexo com o terrorismo leva à conclusão de que há muito mais o “risco” do que a “ameaça”. Nesse sentido, as abordagens discursivas oferecem melhores explicações do que aquelas baseadas em concepção objetiva ou subjetiva de segurança.
Dentre as abordagens ampliadoras, a Escola de Copenhague parece oferecer um caminho mais promissor para o estudo de regiões inseridas no mapa da segurança internacional nos moldes da Tríplice Fronteira. Dessa escola, as contribuições mais distintas são os conceitos de segurança social e securitização. Esse conceito, em especial, é altamente recomendável para os internacionalistas que optam pelo estudo da TF, uma vez que pode ser definido como “os processos pelos quais grupos de pessoas concebem algo como ameaça” (BUZAN e HANSEN, 2012, p. 72).
A partir da Escola de Copenhague, “a maneira de estudar securitização é estudar o discurso e as constelações políticas”. São considerados como atores de securitização certos “líderes políticos, burocratas, governos, lobistas e grupos de pressão” (BUZAN, WAEVER e WILDE, 1998, p. 25; 40). Nesse sentido que a leitura de A Evolução dos Estudos de Segurança Internacional permite-nos fazer coro à essa abordagem que já vem sido considerada em trabalhos sobre a TF (AMARAL, 2010; VILLA, 2014; CASTRO, no prelo). Por fim, ressalta-se que o processo de conceber a região como ameaça passa pelos discursos dos governos que são reverberados pela mídia, sem desconsiderar os “acadêmicos de Think Tanks”.
Referências
AMARAL, A. B. D. A Tríplice Fronteira e a Guerra ao Terror. Rio de Janeiro: Apicuri, 2010.
BUZAN, B.; HANSEN, L. A evolução dos Estudos de Segurança Internacional. São Paulo: EDUNESP, 2012.
BUZAN, B.; WAEVER, O.; WILDE, J. D. Security: A New Framework for Analysis. London: Lynne Rienner Publishers, 1998.
CASTRO, I. C. S. Contestando a Guerra ao Terror: as respostas brasileiras às suspeitas de terrorismo. In: SILVA, M. A. D.; CASTRO, I. C. S. Além dos Limites: A Tríplice Fronteira nas Relações Internacionais Contemporâneas. São Paulo: Alameda, no prelo.
HUNTINGTON, S. Choque de civilizações e a recomposição da ordem mundial. Rio de Janeiro: Objetiva, 1997.
SILVA, M. A. D.; CASTRO, I. C. S. Além dos Limites: A Tríplice Fronteira nas Relações Internacionais Contemporâneas. São Paulo: Alameda, 2021.
SILVA, M. A. Entre antropólogos e internacionalistas: as perspectivas acadêmicas pós-11 de setembro. In: SILVA, M. A. D.; CASTRO, I. C. S. Além dos Limites: A Tríplice Fronteira nas Relações Internacionais Contemporâneas. São Paulo: Alameda, 2021.
VILLA, R. D. O Paradoxo da Macrossecuritização: Quando a Guerra ao Terror não Securitiza Outras “Guerras” na América do Sul. Contexto Internacional, Rio de Janeiro, 36, n. 2, jul./dez. 2014. 349-383.
Micael Alvino da Silva é Historiador, Doutor em História pela Universidade de São Paulo (USP), e professor de História das Relações Internacionais na Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila). Foi pesquisador no National Archives (Washington, Estados Unidos), no Arquivo Histórico do Itamaraty (Rio de Janeiro) e no Arquivo Público do Paraná (Curitiba). Publicou dezenas de artigos acadêmicos e cinco livros, dentre eles A Segunda Guerra Mundial e a Tríplice Fronteira (Edunila, 2021).