O sentimento de ser estrangeiro: o tratamento diferenciado destinado aos grupos de imigrantes a partir da lei Eusébio de Queiroz de 1850 até o Brasil atual

Volume 9 | Número 93 | Ago. 2022

Por Amanda Evangelista Valadão

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INTRODUÇÃO

No dia 22 de abril de 1500, um navio português chegou ao território que seria conhecido como Brasil, resultado das Grandes Navegações. A partir desse dia, os portugueses se destinaram ao território agora conhecido com propósitos exploratórios, mas essa presença não se fez constante até 1530, quando iniciou-se uma política verdadeiramente colonizadora. Dessa maneira, portanto, o Brasil é um país formado pelas populações indígenas nativas, pelo grupo de portugueses “colonizadores”, imigração europeia, e pela desterritorialização de milhares de africanos, para cá impelidos como escravizados e, depois, asiática, desde o século XIX.

Esse quadro de tráfico de pessoas africanas se mantém até o século XIX, quando o Estado brasileiro começa a ser pressionado, principalmente pela Inglaterra e sua lei Bill Aberdeen, para a proibição da escravatura e, com isso, numerosas leis tidas como abolicionistas começam a serem impostas para tentar reduzir a pressão britânica. A primeira delas, Lei Eusébio de Queiróz, é o ponto-chave para o início do marco histórico do presente artigo: a proibição do tráfico negreiro internacional. De 1850 em diante, o preço de compra de africanos escravizados e seus descendentes passou a subir e, a partir desse ponto, alternativas começaram a ser buscadas para a substituição dos escravizados. Uma delas, que mais foi aceita, foi estimular a imigração de europeus, o que aconteceu com diversos propósitos.

A imigração é uma questão comum e amplamente debatida nos dias de hoje. Tais movimentos criam ligações entre países e continentes, conectando povos com culturas e modos de vida diferentes. Nesse sentido, o Brasil é visto como um lugar de acolhimento para imigrantes a partir dos anos 1850, quando europeus – que buscavam fugir das guerras de unificação alemã e italiana – e asiáticos se destinaram ao solo brasileiro para substituir a mão-de-obra até então escravizada nas fazendas de café. Por trás do propósito econômico, havia uma intenção velada de branqueamento da população, pautada por uma perspectiva eugenista, a fim de tornar o Brasil mais parecido com a Europa, diminuir a porcentagem de pessoas negras na formação do povo brasileiro e então se adequar mais aos moldes de “desenvolvimento” europeu.

A partir desse panorama histórico, o propósito deste artigo pode ser visualizado: O tratamento que imigrantes africanos e europeus recebem no Brasil é diferenciado a partir dos primórdios da sociedade, e esse fato se torna notório diante de fenômenos que remontam desde o final do período imperial até os dados socioeconômicos de imigrantes de diferentes origens no Brasil atual.

A ORIGEM DA DIFERENCIAÇÃO DO TRATAMENTO DE ESTRANGEIROS

Como comentado acima, a lei Eusébio de Queiroz é utilizada como marco para o início da análise no presente artigo. Eduardo Galeano, escritor do Livro “As Veias Abertas na América Latina” afirma que “o ouro brasileiro deixou buracos no Brasil, templos em Portugal e fábricas na Inglaterra”. E é válido comentar que a mão-de-obra utilizada para todas essas realizações foi provinda da migração forçada de pessoas negras. E, ainda que a escravização de pessoas negras tenha sido responsável pela criação e constituição do Brasil, a riqueza de Portugal e as grandes fábricas da Inglaterra, as ideologias racistas e eugenistas distorceram essa importância. A partir do século XIX, os pensadores positivistas e influentes escritores brasileiros assumiram que o “atraso” visto no Brasil seria consequência das pessoas negras e associaram o “progresso” aos estrangeiros europeus. Dessa maneira, portanto, a migração de europeus começou a ser incentivada para ocasionar o branqueamento da população (MOURA, 1988, p. 60), e, desse modo, o Brasil supostamente avançaria em direção ao progresso.

Sob o prisma do estímulo à imigração europeia, pode-se comentar sobre o livro “Comunidades Imaginadas”, de Benedict Anderson. Nele, o autor comenta que as sociedades são construídas e forjadas. Dessa forma, a construção da identidade se dá de forma intencional por meio de um recorte utilizado pelo governante para esse fim e, aplicado à realidade brasileira, as práticas eugenistas e higienistas do governo brasileiro formam a pauta para esse recorte. Especificamente em relação à imigração italiana e alemã, pode-se afirmar, segundo os conceitos de Anderson, que a imigração foi encorajada para a construção dessa identidade mais branca e alinhada ao ideal de progresso europeu. Com as influências europeias, a produzida sociedade brasileira e a sua identidade se assemelhariam às comunidades-modelo europeias.

É válido reforçar, inclusive, que as múltiplas habilidades apresentadas pelas diversas etnias que antes eram utilizadas como justificativas para a sua escravização não eram mais consideradas como parâmetros para o trabalho assalariado, e o discurso utilizado à época para estimular a imigração europeia era que os escravos agora libertos não eram qualificados para o trabalho nas fazendas de café. Esse fato demonstra como a proposta da eugenia realmente se fez presente no Brasil após 1850.

Pode-se afirmar, portanto, que ainda que os imigrantes europeus não tivessem demonstrado essa superioridade que motivou a sua vinda, eles foram imediatamente bem recebidos, diferentemente de como os trabalhadores nacionais foram tratados (FAUSTINO, OLIVEIRA, 2021, p. 200). Nesse sentido, percebe-se a origem da diferença de tratamento destinado até hoje aos imigrantes: Enquanto os imigrantes europeus são bem aceitos e acomodados no Brasil, os imigrantes africanos passam por situações que beiram a negação de sua humanidade, como é visto no caso do assassinato de Moïse Kabagambe.

AS MEDIDAS DE IMIGRAÇÃO A PARTIR DA PROCLAMAÇÃO DA REPÚBLICA

 Com a proclamação da República, a política de imigração mencionada persistiu, principalmente no estado de São Paulo, até a Revolução de 1930 de Vargas, quando esse quadro foi mudado e se instaurou um conjunto de medidas restritivas que dificultou a entrada de imigrantes e refugiados (VÉRAN, NOAL e FAINSTAT, 2014, p. 1007). Dessa forma, o último grande fluxo de imigração ocorrido com destino ao território brasileiro foi a imigração europeia citada acima, que perdurou do fim do século XIX até a década de 1920.

A Constituição de 1933 estabelece parâmetros claros para a imigração no Brasil: a partir daquele momento, o Brasil poderia receber anualmente até 2% do total de imigrantes da cada nacionalidade que tivessem imigrado nos últimos 50 anos. Percebe-se, portanto, que o quadro da imigração no Brasil deixou de ser uma política de portas abertas para os imigrantes europeus e se tornou um modelo restrito de imigração, ainda em voga no Brasil, mesmo que tenha passado por uma mínima reformulação na Constituição Cidadã de 1988. Dessa forma, portanto, estabeleceu-se uma política de porta estreita, sem medidas migratórias proativas, que vigora até hoje.

A partir do século XXI, sob os efeitos da Globalização, o Brasil registrou aumentos na chamada migração sul-sul, com imigrantes de muitas nacionalidades, principalmente venezuelanos e haitianos, na América, e congoleses, na África. A Organização Internacional de Migrações (OIM) afirma que os migrantes sul-sul são mais prováveis para viver ilegalmente e sem documentação, o que contribui para a sua posição de vulnerabilidade e a falta de integração no mercado de trabalho.

Além disso, há a barreira da língua, que prejudica a comunicação dos imigrantes com a população brasileira. E é válido comentar também que os estrangeiros são vítimas de xenofobia e racismo. Especialmente imigrantes africanos, que além da barreira da imigração, também têm que enfrentar a barreira do racismo característico da população brasileira. Por exemplo, eles são vítimas do estereótipo da falta de qualificação e ainda são reconhecidos como provenientes de países “perigosos”, tal qual salientado em recentes casos de perseguição direcionada a específicos grupos de imigrantes como o de Djimi Cosmeus, um imigrante haitiano que foi agredido por três seguranças privados em uma fábrica da Brasil Foods em Chapecó, Santa Catarina. No caso, os seguranças agiram com requintes de crueldade ao pressionarem Cosmeus contra o chão e aplicarem força com o joelho em suas costas. Nos seus relatos, Djimi Cosmeus afirmou estar sendo asfixiado.

Sob esse prisma, pode-se comentar sobre o caso da cidade de Tabatinga, no Amazonas, em que Véra, Noal e Fainstat analisam o fluxo de 3 mil imigrantes haitianos que a cidade recebeu entre 2010 e 2012. No artigo, os autores analisam a condição em que os haitianos se encontravam, marcada por demasiada precariedade, com a falta de assistência governamental, trabalhos informais com salários insuficientes e moradias extremamente precárias, com acesso à água muito limitado. Com isso, percebe-se a fragilidade em que os haitianos, que ainda tinham que lidar com a incerteza dos títulos de migrantes ou refugiados, se encontravam no território de Tabatinga. Infelizmente, esse quadro se replica regularmente na realidade brasileira.

Situações como essas constatam como imigrantes provenientes do Sul Global são tratados em solo brasileiro. Diferentemente do ideário de país acolhedor, a realidade brasileira se manifesta insensível e severa para os imigrantes e refugiados que não se adequam aos padrões do Norte Global, com casos de desrespeito, hostilidades, ofensas verbais e agressões físicas sendo registrados por todo o território brasileiro. 

REFLEXOS DA INSERÇÃO DIFERENCIADA NA OCUPAÇÃO DO ESPAÇO FÍSICO E SOCIOECONÔMICO

Pode-se refletir, dessa maneira, sobre os efeitos das políticas estatais de imigração. De forma clara, percebe-se o favorecimento do branco europeu em sua ascensão social e no acesso ao espaço. Para isso, uma análise histórica e socioeconômica da região do centro do Rio de Janeiro, uma cidade que recebeu inúmeras pessoas escravizadas, pode ser feita.

Em um primeiro momento, foi na região do Porto em que grande parte dos navios negreiros vindos da África atracaram, inclusive com os corpos de quem não havia resistido à viagem. Um estudo da Universidade de Emory, nos Estados Unidos, que reuniu registros portuários por todos os anos de tráfico negreiro até sua proibição em 1856, afirma que cerca de 2 milhões de pessoas chegaram ao Rio de Janeiro por meio dessa migração forçada. Foi na região hoje conhecida como Cais do Valongo, tombado pela UNESCO como patrimônio histórico e cultural, em que essas pessoas escravizadas permaneciam em quarentena para evitar a disseminação de doenças.

A partir desse momento, o Centro do Rio de Janeiro se tornou um lugar com larga história para a população negra. A valer, durante o início do século XX, seguinte à proibição da escravatura no Brasil, o presidente Rodrigues Alves, com o auxílio do engenheiro Pereira Passos, instaurou uma reforma no Centro do Rio de Janeiro, que à época era povoado por moradias predominantemente de pessoas negras e pobres em situações demasiadamente precárias. Essa reforma urbana, inspirada nos moldes parisienses, se demonstrou uma medida extremamente prejudicial para os moradores dos casebres e cortiços da região, que se destinaram às encostas dos morros das favelas como são conhecidas hoje.

Vale ressaltar, sobretudo, que por trás da justificativa de progresso utilizada, a reforma teve moldes higienistas e eugenistas. Sobre isso, Neder afirma que “articulou-se uma estratégia de controle social a ser projetada face à massa de ex-escravos. Era o medo branco, manifestado diante das possibilidades de alargamento do espaço (político e geográfico) da população afro-brasileira” (MENEZ, 2014, p. 72, apud NEDER, 1997, p.110).

De forma interessante, algo parecido com essa medida do século XX se repetiu no século XXI, com o prefeito Eduardo Paes na cidade do Rio de Janeiro, que viria a ser a sede das Olimpíadas de 2016. A região do Centro, a mesma que foi derrubada para a reforma de Pereira Passos, foi novamente reformada com o propósito de revitalizar a região que, na concepção dos governantes, não se enquadrava nos parâmetros de cidade modelo para as Olimpíadas. Dessa maneira, instaurou-se novamente uma medida com moldes higienistas, retirando a população mais pobre que morava ali, para a construção de uma cidade-modelo.

Aprofundando-se em relação à maneira como as esferas de poder brasileiras tratam os resquícios da história negra no Brasil, percebe-se notável falta de comprometimento com a importância dessa parte da população para a constituição de uma brasilidade. Como por exemplo, não há no Rio de Janeiro um museu da escravidão que aconteceu nos solos cariocas, mas há um museu do holocausto, que aconteceu na Europa – evidenciando as tentativas de apagamento deste passado na identidade cultural, ao passo que importa padrões internacionais para substituí-lo. Ademais, há os diversos nomes de senhores de engenho que batizam hoje as ruas da cidade. Percebe-se, então, que não há uma política efetivamente direcionada em retratar a importância que as pessoas negras têm na constituição da sociedade brasileira.

Em contrapartida, as principais cidades da região Sul do Brasil que receberam imigrantes europeus a partir do século XIX são portadas como um ideal de cidades. Terrenos e propriedades foram doados para os imigrantes alemães, italianos e eslavos para que a região fosse ocupada e desenvolvida economicamente no fim do século XIX. Nos dias de hoje, a região da Serra Gaúcha, com Gramado, Canela, Bento Gonçalves e outras, é uma região totalmente influenciada pela cultura dos imigrantes italianos e germânicos, com vinícolas e construções que remetem à identidade cultural europeia. Blumenau, uma cidade catarinense, é vista como um pedaço europeu no continente sulamericano, com sua herança alemã e a maior Oktoberfest fora da Alemanha. Situações muito parecidas são vistas em Holambra, em São Paulo, e Penedo, no Rio de Janeiro. 

Portanto, pode-se perceber a diferença recebida por imigrantes africanos e europeus em solo brasileiro. Enquanto imigrantes europeus em duas ou três gerações foram verdadeiramente integrados ao Brasil, com sua cultura sendo vista como modelo e suas cidades herança sendo foco de turismo dentro do Brasil pela proximidade com os padrões europeus, a população negra atual em todo território brasileiro ainda é vista como outsider em muitos contextos, sua contribuição cultural é desvalorizada e as pessoas pretas são discriminadas, com dados econômicos e sociais demonstrando esses fatos.

CONCLUSÃO

 Percebe-se, portanto, que o Brasil trata das políticas relacionadas aos migrantes de forma diferenciada. Os imigrantes europeus que se destinaram ao Brasil após a assinatura da lei Eusébio de Queiroz com a finalidade de trabalhar nas fazendas de café de São Paulo e, posteriormente, à região Sul no final do século XIX foram bem recebidos, recebiam salários, tratamento razoável do governo e da população. Enquanto os escravizados que foram forçados a deixar a África para serem explorados no Brasil não receberam esse mesmo tratamento por parte dos colonizadores e, posteriormente, os governantes da República.

Os reflexos dessa diferenciação podem ser notados em uma análise econômica, social e cultural da sociedade brasileira nos dias de hoje. Enquanto em duas ou três gerações os imigrantes europeus foram capazes de se estabilizar no Brasil, os imigrantes provenientes da África em toda a história do Brasil ainda lidam com um Brasil que, em grande parte, ainda apresenta a mesma estrutura sociológica da época da escravatura. Sem nenhum tipo de auxílio após a abolição da escravatura em 1888, os pretos no Brasil continuam presos de forma muito próxima aos padrões da sociedade escravista. Os novos imigrantes provenientes da África a partir desse período, além da xenofobia destinada às suas culturas, ainda são forçados a enfrentar todos os aspectos que pessoas negras brasileiras sofrem, como todas as consequências do racismo e outras políticas discriminatórias.

O Brasil do século XXI ainda carrega uma herança pós-colonial caracterizada pela violência como linguagem privilegiada para a resolução de conflitos, afirma Dennis Pacheco, pesquisador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, responsável pelo Atlas da Violência. Dessa forma, portanto, uma análise do tratamento que os imigrantes receberam durante toda a sua história recebem no território brasileiro demonstra uma severa inconsistência de acordo com sua origem, quadro que persiste intrínseco à sociedade brasileira atual. Assim como em toda a história brasileira, os imigrantes e refugiados em solo brasileiro, além do quadro de estrangeiro, ainda têm suas vidas atravessadas pelas diversas nuances da sociedade em que agora se encontram, aspecto o qual merece maior atenção das entidades públicas.

REFERÊNCIAS

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Amanda Evangelista Valadão é graduanda em Relações Internacionais, na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Dedica-se a pesquisa de temas relacionados à população negra.

Como citar esse artigo:

VALADÃO, Amanda Evangelista. O sentimento de ser estrangeiro: o tratamento diferenciado destinado aos grupos de imigrantes a partir da lei Eusébio de Queiroz de 1850 até o Brasil atual. Diálogos Internacionais, vol.9, n.93, ago.2022. Disponível em: https://dialogosinternacionais.com.br/?p=2742

Diálogos Internacionais

Divulgação científica de Relações Internacionais, Defesa e Economia Política Internacional ISSN 2596 2353