O QUAD, a Belt and Road Initiative e a política externa indiana

Volume 7 | Número 77 | Nov. 2020
Belt and Road Initiative, Wikipedia.
Por João Miguel Villas-Bôas Barcellos
Introdução
Os Ministros das Relações Exteriores de Japão, Índia, Austrália e Estados Unidos encontraram-se no dia 6 de outubro, em Tóquio, para a reunião do QUAD (sigla inglesa para Diálogo de Segurança Quadrilateral). O encontro foi direcionado à China e às vulnerabilidades geopolíticas decorrentes de sua ascensão. Para os quatro países, a região do Indo-Pacífico deve ser “livre e aberta”.
Nesse sentido, o Secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, declarou que o grupo deveria ser institucionalizado na forma de um “arranjo de segurança”, pois assim se criaria melhores condições para combater as ameaças chinesas na região do Indo-Pacífico (REJ, 2020). Todavia, é importante ressaltar que Índia, Japão e Austrália têm fortes laços econômicos com a China, que vem ampliando sua infraestrutura geoeconômica por meio do Belt and Road Initiative. Com isso, Beijing oferece potenciais benefícios econômicos aos três países, ao passo que os EUA pouco oferecem para fazer que seus aliados do QUAD se empenhem em uma política externa explícita de contenção chinesa.
A despeito de ser vista como ameaça, a China é a grande potência da vez e nenhum país da região entende que o enfretamento direto lhes traria ganhos palpáveis. Mesmo a Índia, que vem tendo problemas de segurança na fronteira do Himalaia, não pode se dar ao luxo de iniciar uma cruzada contra o segundo principal parceiro comercial. 
Com a eleição de Narendra Modi (Bharatiya Janata Party[2], BJP) ao cargo de primeiro ministro em 2014, a região do leste asiático foi considerada um espaço privilegiado na agenda indiana por meio da política do Act East – iniciativa lançada durante o 12º encontro do grupo ASEAN (SINGH, 2018). Por outro lado, a política externa indiana passou por um redirecionamento e começou a privilegiar os laços com os EUA. Porém, apesar de Washington ter-se tornado o principal parceiro econômico em 2019, a Índia ainda não é vista como aliado fundamental para Washington, como Japão e Austrália que historicamente fazem parte de alianças estratégicas e compartilham uma visão de mundo liberal (SINGH; RANJAN, 2020).
É importante frisar que as relações entre Índia e China foram e ainda são marcadas por tensões, conflitos e disputas. Não obstante haver um contínuo esforço político-diplomático de ambas as partes, o nível de instabilidade e incompreensões é corriqueiro. Os problemas de fronteira ilustram bem esta questão e o efeito psicológico impregnado nas sociedades cumpre, igualmente, o papel de manter a percepção do outro como inimigo ou rival. Exemplo disso são os recentes choques militares na fronteira do Himalaia – Vale de Galwan, Caxemira – quase levando-os à guerra. De todo modo, a despeito de iniciativas dos dois governos, as tensões são inevitáveis uma vez que um dos principais espaços geopolíticos de expansão do poder chinês é o oceano Índico – declaradamente o principal espaço estratégico indiano.

A Belt and Road Initiative e a potencial alternativa à inserção internacional indiana
A Belt and Road Initiative (BRI) é um ambicioso projeto geoeconômico chinês. Uma grande quantidade de países já assinou memorandos de entendimento para entrarem no megaprojeto econômico-comercial chinês (incluindo países europeus, africanos, latino-americanos e asiáticos). Por que a Índia é tão reticente em aderir a tal projeto? Questões de ordem geopolítica ou econômicas? 
Analisando pela ótica das relações econômico-comerciais, o déficit comercial indiano é um dos principais problemas. Há um histórico e considerável superávit chinês no fluxo bilateral de aproximadamente 95 bilhões de dólares (GE, 2019); porém, em função da pandemia tal superávit foi amplamente reduzido. Um desequilíbrio persiste, no entanto, no comércio China-Índia. A Índia está buscando maior acesso ao mercado chinês de produtos agrícolas e também quer fortalecer as trocas entre as pessoas com a China, exportando serviços de software, setor em que a Índia tem vantagem. As diferenças nas estruturas comerciais também preocupam a Índia, que exporta produtos de baixo custo e valor adicionado, como minério de ferro e produtos agrícolas, enquanto as exportações chinesas são bens de maior valor adicionado, como high-tech.
Com efeito, outra sensível questão para a Índia é o problema geopolítico. O país vem tentando conter o “bloqueio” geoeconômico chinês do “colar de pérolas” (string of pearls)[3] que vem sendo fortalecido com o projeto da Nova Rota da Seda (Belt and Road Initiative, BRI) (ASHRAF, 2017). Nesse sentido, a contenção indiana seria o “Grande jogo” chinês (NALAPAT, 2006). A parceria sino-paquistanesa é também motivo de preocupação indiana, principalmente em função do Corredor Econômico China-Paquistão (China-Pakistan Economic Corridor, CPEC), além da cooperação no âmbito militar. 
A participação indiana em arranjos institucionais, como BRICS, Asian Investiment and Infrastructure Bank(AIIB) ou Organização para a Cooperação de Xhangai (OCX) não alterou a desconfiança com que o país enxerga a BRI. Esta percepção decorre, sobretudo, em função das pressões geopolíticas no Índico e da íntima cooperação sino-paquistanesa via CPEC (SACHDEVA, 2018). O CPEC é considerado um problema também, porque, além de se revelar uma ameaça geoeconômica, é um projeto que se utiliza de região reivindicada pela Índia, a Caxemira, ou seja, torna-se um problema de soberania territorial.
Não se pode olvidar que o CPEC dá à China autonomia decisória sobre o uso estratégico do Índico, uma vez que o porto de Gwadar lhe confere status autônomo de uso e ajuda o país a resolver o dilema do estreito de Malaca[4], além de garantir um porto próximo ao Estreito de Ormuz e Golfo Pérsico – região pela qual passa a maior parte do petróleo importado pela China.
É importante salientar que os vizinhos indianos, Nepal, Bangladesh, Sri Lanka e Maldivas, já se associaram a BRI (PANT; PASSI, 2017). Porém, considerando os enormes obstáculos geopolíticos parece que uma possível participação indiana no ambicioso projeto geoeconômico chinês não deve acontecer. Assim sendo, uma das alternativas à BRI é a parceria que vem sendo trabalhada com o Japão para oferecer outra proposta de integração logística e econômica no continente asiático (BORAH, 2019).
Nesse sentido, o Corredor de Crescimento Ásia-África, lançado por Modi e substanciado por um documento de visão conjunta indo-japonesa durante a 52ª reunião anual do Banco Africano de Desenvolvimento, é um passo nessa direção. A Índia também permanece comprometida com o Corredor Internacional de Transporte Norte-Sul – um sistema proposto de transporte multimodal de 7.200 quilômetros (navio, ferroviário e rodoviário) que conecta o Oceano Índico e o Golfo Pérsico ao Mar Cáspio, através do Irã à Rússia e ao norte da Europa – embora o progresso em direção à sua operacionalização permaneça lento. Se a Índia perceber e capitalizar mais opções que não envolvem a China, poderemos acabar vendo uma resposta indiana que não é circunscrita pelos contornos da BRI (CLARKE, 2017).
Para alguns policymakers indianos, a BRI foi concebida como um instrumento para o aumento da influência geopolítica chinesa (PANT; PASSI, 2017). Nesse sentido, o ministro das Relações Exteriores da Índia, o diplomata e filho do grande estrategista K. Subrahmanyam, S. Jaishankar, assim afirma:

Para nós, esta é uma iniciativa nacional chinesa. Os chineses a conceberam, criaram um plano. Não foi uma iniciativa internacional que eles discutiram com o mundo, com países interessados ou afetados por ela (…). Uma iniciativa nacional é criada com interesses nacionais, não cabe a outros comprá-la. A nossa posição é que, se isso é algo sobre o qual eles querem uma participação maior, eles precisam ter discussões maiores, e isso não aconteceu (JAISHANKAR, 2015, online, tradução nossa)

Em 2019, o ministro reiterou a postura indiana de não adesão à BRI, alegando a questão sobre a soberania indiana na Caxemira e ao corredor econômico com o Paquistão (JAISHANKAR, 2019).
Outro ponto importante criticado pelo governo indiano é a armadilha da dívida (debt trap) que condena os países que aderiram à BRI, como Sri Lanka ou Mianmar, a uma dependência econômica, mas igualmente concede à China uma vantagem geopolítica em outras questões que possam envolver esses mesmos países amarrados na teia da dívida com a China.
Todavia, a despeito das críticas e declarações contrárias à BRI, a iniciativa pode ser a grande oportunidade para os investimentos tão necessários em infraestrutura na Índia. Haveria uma possibilidade real de ganhos caso o país resolvesse aderir ao megaprograma de investimentos chineses (JAH, 2016). O autor vai mais além ao dizer que:

O fato incontestável de hoje é que a China tem capital financeiro, tecnologia e, acima de tudo, a necessidade esmagadora, em seu próprio interesse nacional, de acelerar o desenvolvimento desses países a uma extensão que não poderia ser imaginada nem mesmo em meia década atrás. Também é um fato incontestável que os túneis, estradas e ferrovias que ele pretende construir perfuram as muralhas naturais do sul da Ásia, o Himalaia e acabam com a hegemonia geográfica da Índia sobre o resto do sul da Ásia. (JAH, 2016, online, tradução nossa)

A adesão indiana à BRI poderia facilitar, outrossim, o acesso à mercados da Ásia central e outras economias envolvidas no projeto geoeconômico chinês, além do quê, a Índia poderia se transformar em um dos nós da importante rede comercial criada. Outro ponto relevante seria o possível isolamento comercial do país ao não aderir à BRI, pois a conexão econômica e a infraestrutura gerada não integrariam a Índia, gerando consequências negativas à economia indiana (PANT, PASSI, 2017). 
Há, portanto, a despeito dos problemas e limitações citados acima, espaço para ganhos indianos na BRI? Pant e Passi especulam acerca dos possíveis acessos a rotas de comércio abertos pela iniciativa e salientam que, caso a China faça concessões às demandas indianas quanto ao CPEC, seria possível uma cooperação no âmbito da BRI (PANT; PASSI, 2017).
Importante líder do Partido do Congresso (INC, em inglês), oposição ao governo Modi, declarou em mais de uma oportunidade que a Índia deveria participar do projeto BRI, pois não há nada a perder em tal iniciativa. A não inclusão do país no projeto seria uma grave falha na política externa em vigor (TEWARY, 2017). Esta é a mesma percepção do líder do partido Comunista indiano que argumenta que a não participação na BRI pode isolar o país (KARAT, 2017). 
Um questionamento relevante deve ser colocado: a Índia consegue fazer frente ao imenso poder de influência e pressão chinês na região? “Se não puder superar seu inimigo, junte-se a ele”. Seria esta a estratégia indiana de conformação ao projeto de poder de Beijing ou há uma alternativa juntamente com outros parceiros críticos da iniciativa BRI, como Estados Unidos e Japão?
A BRI seria um projeto de conectividade econômica via uma grande rede de infraestrutura que responde à necessidade chinesa de aportar seu excesso de capital e capacidade industrial, aproveitar a demanda externa e exportar serviços, bem como garantir influência política.
Conclusão
A Índia é uma potência militar e econômica com interesses amplos e participação em grupos de geometria variável, como BRICS, IBAS ou OCX, ou seja, como uma nação de poder emergente, Nova Délhi não pode deixar de se beneficiar das relações diversificadas e aproveitar as oportunidades de uma inserção mais autônoma. Desse modo, a política externa indiana deve ser instrumentalizada para extrair os maiores benefícios possíveis das disputas entre Estados Unidos e China de maneira a contemplar seus interesses nacionais e não se comprometer com lados, com o risco de ser arrastada para conflitos desnecessários que apenas lhe prejudicaria.


João Miguel Villas Boas Barcellos é mestre e doutorando no programa em Economia Política Internacional, pela UFRJ.

Referências
CHALLANEY, Brahma. Myths of Kashmir. Project Syndicate, 02, Set. 2019. Disponível em: < https://www.project-syndicate.org/commentary/jammu-kashmir-special-status-india-pakistan-china-terrorism-by-brahma-chellaney-2019-08> . Acesso em: 08/10/2019.
CLARKE, Michael et al. China’s Belt and Road Initiative: Views from along the Silk Road. Asia policy, n. 24, p. 65-122, 2017.
GE, Huang. India’s BRI rejection means lost opportunities: experts. Global Times, 04/Ago. 2019. Disponível em : < http://www.globaltimes.cn/content/1145086.shtml#targetText=China%2DIndia%20trade%20rose%2013.2,the%20Chinese%20Ministry%20of%20Commerce.>. Acesso em: 08/10/2019.
JAISHANKAR, Subrahmanyam. India won’t join BRI, it’s concept won’t apply to us. The Economic Times, 04, Out. 2019. Disponível em: < https://economictimes.indiatimes.com/news/politics-and-nation/india-wont-join-bri-its-concept-wont-apply-to-us-jaishankar/articleshow/71441347.cms>. Acesso em: 05/10/2019.
________. IISS Fullerton Lecture by Dr. S. Jaishankar, Foreign Secretary in Singapore. Ministry of External Affairs, 2015. Disponível em: < http://mea. gov. in/Speeches-Statements. Htm >. 
JHA, Prem Shankar. Why India must embrace China’s One Belt One Road plan. The Wire, 2016.
JOSHI, Manoj. Fresh overtures hint at a thaw in India-China relations. AsianTimes, Março, 2018. Disponível em: < https://www.asiatimes.com/2018/03/opinion/fresh-overtures-hint-thaw-india-china-relations/>. Acesso em: 08/10/2019.
KARAT, P. Belt and Road initiative: Blinkered view of government. People’s Democracy, 21, Mai. 2017. Disponível em: <https://peoplesdemocracy.in/2017/0521_pd/belt-and-road-initiative-blinkered-view-government>. Acesso em: 08/10/2019.
REJ, Abhjinan. QUAD Foreign Ministers Meet in Tokyo Amid Post-Pandemic Concerns. The Diplomat, 07/10/2020. Disponível em:< https://thediplomat.com/2020/10/quad-foreign-ministers-meet-in-tokyo-amid-post-pandemic-concerns/>. Acesso em: 18/10/2020.
SINGH, Lakhinder; RANJAN, Rajiv. The Quad: Is it a strategic mirage for India? Asian Times, 13/10/2020. Disponível em:< https://asiatimes.com/2020/10/the-quad-is-it-a-strategic-mirage orindia/?fbclid=IwAR1yn7m4BDEf2xvOK7azHUC6Gv5MInI8fTUhvqJaU0HappqxSHDBUbzhi3g>. Acesso em: 18/10/2020.
SACHDEVA, Gulshan. Indian perceptions of the Chinese Belt and Road initiative. International Studies, v. 55, n. 4, p. 285-296, 2018. 
TEWARI, Manish. OBOR is the Grandest Failure of Indian Foreign Policy. The Indian Express (Online). 17. Mai. 2017.
[2] “Partido do Povo Indiano”, tradução nossa.
[3] Este conceito remete à ideia de que a Índia está cercada por uma rede de bases militares, portos e constrangimentos econômicos chineses. Para mais informação ver: KHURANA, Gurpreet S. China’s ‘String of Pearls’ in the Indian Ocean and Its Security Implications. Strategic Analysis, v. 32, n. 1, p. 1-39, 2008.
[4] O problema do Estreito de Malaca é que é uma região geopoliticamente vulnerável, pois pode ser bloqueado ou ter seu acesso dificultado em caso de conflito com a Índia ou Estados Unidos e comprometer o grande fluxo de comércio que passa por ali.

Como citar: BARCELLOS, João Miguel Vilas-Bôas. O QUAD, a Belt and Road Initiative e a política externa indiana. Diálogos Internacionais, vol.7, n.77, nov. 2020. Disponível em: http://www.dialogosinternacionais.com.br/2020/11/o-quad-belt-and-road-initiative-e.html

Diálogos Internacionais

Divulgação científica de Relações Internacionais, Defesa e Economia Política Internacional ISSN 2596 2353