Do sonho ao pesadelo: o imobilismo europeu

Volume 7 | Número 71 | Mai. 2020

Por Luiz Felipe Brandão Osório 
Publicado originalmente no site da rádio Mundial News FM
Cantada em verso e prosa como o símbolo da pós-modernidade, a União Europeia entrou na mira dos holofotes mundiais. Foi objeto de discussão nas mais variadas searas, pelo direito, pela política, pela economia, pelas relações internacionais, e foi vendida como o farol que guiaria o mundo pós-bipolaridade, pós-Guerra Fria. Não coincidentemente iniciativas semelhantes foram empreendidas em todos os continentes do globo[1]. A razão do entusiasmo com o experimento europeu significava a diluição dos conflitos históricos no aprofundamento das relações econômicas e comerciais entre as nações, de maneira a afastar o espectro da guerra, diante da tamanha inter-relação, de complementaridade e dependência das economias nacionais entre si[2]. Em outras palavras, travar uma guerra com os vizinhos seria irracional, pois afetaria diretamente os interesses econômicos do próprio país. Esse raciocínio baseava-se no laboratório europeu ocidental que gradativamente foi costurando acordos em várias áreas até englobá-los em um grande guarda-chuva, a União Europeia, concretizada no pós-1991. E a paz duradoura [sic][3] no continente europeu se dera em função da cooperação e da integração regional do pós-Segunda Guerra Mundial.
Se fosse possível hierarquizar os sonhos do mundo, da nova ordem mundial, a utopia da União Europeia estaria no topo[4]. Sobrevivendo e caminhando em meio a tropeços eventuais, a União Europeia, desde 1993, foi crescendo como um gigante com pés de barro. E na primeira grande crise econômica que enfrentou, a de 2008 (comparada somente com a de 1929), foi levada de roldão, deixando à mostra todas suas fraturas. No rescaldo da crise, pelos anos seguintes, seu descrédito e sua desaprovação foram crescendo consideravelmente a ponto de o Reino Unido abandonar o barco em respeito à vontade popular[5]. Não que a saída dos britânicos tenha sido um duro golpe, foi apenas um leve arranhão (em ambas as partes), dado que o país sempre se portou com distanciamento em relação ao bloco. O sinal de esgotamento maior pode ter sido dado com a COVID-19.
A pandemia expõe as vísceras da União Europeia, desnudando-a por completo. A total falta de solidariedade e o tratamento nacional dado no combate ao vírus destoam de tudo que os europeus apregoaram por anos a todo o mundo: as fronteiras e a soberania nacional não foram diluídas, e os conflitos não foram equacionados. Os países do bloco foram deixados à deriva, lutando contra a própria sorte em meio ao caos nos sistemas de saúde. Imagens, relatos e dados colocam de joelhos o centro do capitalismo mundial, desde os Estados Unidos, por hegemônico, até os seus sócios menores do velho continente (os quais somados, com exceção da Alemanha, contabilizam 73% das mortes pela pandemia no globo)[6]. Fica evidente, portanto, a total incapacidade da União Europeia de atuar conjuntamente para além da política monetária ortodoxa e da custosa e inútil burocracia de Bruxelas.
Não se pretende aqui discutir os números ou os impactos isoladamente em cada território, mesmo porque as estatísticas mudam diariamente e os impactos do vírus ainda não são completamente mensuráveis. O que cabe a esse ensaio é apontar as fraturas estruturais e inerentes desse processo, as quais não foram criadas pela pandemia, mas, a partir dela, se tornaram mais visíveis.
1) A União Europeia não dissolveu as nacionalidades e soberanias estatais. Em assuntos estratégicos e em momentos de exceção, como o atual, as fronteiras territoriais impõem-se sobre qualquer princípio de coletividade. A Itália, primeiro país a ser afetado em grandes proporções, foi deixada à deriva pelo eixo comunitário, Alemanha e França. Junto com a Espanha, também brutalmente atingida, os italianos compõem o que se pode chamar relativamente de periferia econômica na Europa. Assim como não ocorreu em 2008, quando os países europeus foram tragados pela crise econômica, ficando eles engessados por não conseguirem tomar soluções nacionais em função da camisa de força da moeda única, em 2020, a União Europeia estacionou na inércia, deixando que cada Estado virasse de costas para o outro. Nessa dança, até a França sentiu os efeitos deletérios. Em virtude de seu poderio econômico e sistema estatal sólido, a Alemanha é o único país que consegue colher melhores resultados[7]. À míngua não demoraram para aparecer as dinâmicas de arruíne seu vizinho, em uma corrida desesperada para obter aparelhos e equipamentos de segurança, que, inclusive, transbordou os limites da União Europeia, abarcando todo o continente. Desde a ira da Sérvia[8], passando pela interceptação dos Estados Unidos[9], até o saqueio de carregamentos[10], muitos são os exemplos da guerra de todos contra todos que se tornou a solidariedade europeia.
2) A escalada de tensões internamente esgarça ainda mais as fissuras do bloco, revelando uma liderança limitada da Alemanha, a qual colhe os bônus da política monetária ortodoxa e do reforço da desigualdade, mas não arca com os custos (pesados) da dianteira regional. A dependência externa fica ainda mais evidente quando o maior apoiador do grupo, os Estados Unidos, sócios maiores no condomínio de poder da hegemonia mundial, abandona a região à própria sorte. O vácuo do poder permite que ele seja preenchido externamente, como por potências que fazem o jogo de cooperação e conflito do eixo anti-imperialista. Nem é preciso dizer que a maior contribuição ao caos sanitário veio das concorrentes comerciais e geopolíticas Rússia e China, além, claro, do fundamental suporte biotecnológico de Cuba.
3) Não apenas a assimetria das soluções nacionais dadas ao surto viral, mas o que, principalmente, está em descompasso com a União Europeia são as receitas heterodoxas adotadas pelos países para o combate à pandemia. A injeção cavalar de dinheiro na economia e o retorno às raízes do modelo de bem-estar social vão na contramão do que significa o projeto europeu de integração, o qual, com isso, acusa mais um duro golpe. Nem o tímido pacote de ajuda financeira adiantou[11] nem seria diferente, dado o caráter imanente do bloco regional. A União Europeia trouxe consigo, além da acomodação de variadas iniciativas, uma ambiciosa união monetária, e materializou a economia política liberal em uma ossatura institucional desenvolvida e uma imposição normativa que, com o tempo, foi impondo o neoliberalismo às sociedades europeias e desconstruindo o modelo de bem-estar social por cima, por fora da correlação de forças e classes dos espaços nacionais. A moeda única somente acirrou as desigualdades existentes, por meio de uma condução ortodoxa e austera, favorável à Alemanha e draconiana com os países periféricos do bloco[12]. Os ditames neoliberais entraram quer por decisões judiciais e normativas comunitárias quer pela política econômica monetária[13]. Nesse cenário de desfazimento da teia de bem-estar social, não é tão surpreendente perceber a fragilidade dos sistemas de saúde e a proporção intensa que a pandemia tomou nas sociedades europeias.
4) A União Europeia enquanto organização internacional[14] existe a partir da entrada em vigor do Tratado de Maastricht[15] em novembro de 1993, como a centralização política e formal de diversas iniciativas de integração regional do pós-Segunda Guerra Mundial. Desde então, a partir do Plano Marshall[16], a Europa Ocidental constituiu-se em um laboratório de experiências liberais dos Estados Unidos no mundo[17]. Formou-se naquela porção do continente um gradativo espaço de liberdades econômicas. E ao mesmo tempo, claramente, um bastião anticomunista, uma contenção ao avanço do socialismo e uma vitrine do capitalismo ocidental. Como o texto inicialmente não era favorável à expansão do liberalismo no mundo, o projeto foi crescendo paulatinamente até sofrer uma guinada em suas pretensões, com o fim da Guerra Fria, a dissolução da União Soviética e do bloco socialista europeu e com o retorno das teses liberais[18].
5) Como uma construção da socialdemocracia europeia, a União Europeia também acompanhou a tendência mundial de concessões cada vez maiores ao liberalismo, com a ampliação das garantias e direitos individuais acompanhada da desregulamentação e privatizações próprias do desmonte do bem-estar social. O que o BREXIT significou, por exemplo, foi a explicitação de mais uma das feridas do bloco: o consenso socialdemocrata à esquerda e à direita, ou seja, das frações moderadas da socialdemocracia, que até possuem divergências pontuais entre si, mas que concordam no que é essencial (a economia política liberal)[19]. O voto popular majoritário entre os britânicos em favor da parcela do partido conservador mais protecionista e caudatário de um nacionalismo vulgar é o maior exemplo disso. A insatisfação popular agarrou-se na primeira alternativa apresentada, ainda que pela extrema-direita, dado o deserto de ideias (sobretudo, à esquerda) quando o assunto é o contraponto à União Europeia. A remissão à recente saída (morosa, pouco entusiástica e ainda não concluída) do Reino Unido do bloco serve para ilustrar o consenso política que sustenta a arquitetura europeia. Isso significa que tudo indica que o arroubo de paixões pelo Estado de bem-estar social demonstrado agora em meio ao caos, com a adoção imediata de política de estímulo à demanda agregada, é pontual e episódico, não devendo persistir no continente após uma mínima estabilização. Ao contrário, a economia política heterodoxa provavelmente reforçará o argumento pelo retorno à austeridade e pela adoção ainda maior ao neoliberalismo para que a conta seja paga. Não há que se ter ilusões quanto aos rompantes atuais dos líderes europeus[20].
Em suma, o sonho virou pesadelo. A experiência da União Europeia abre os olhos para a necessidade do internacionalista escapar das brumas da abstração e buscar sempre trazer os fenômenos sociais para o terreno do concreto, situando-a em meio ao contexto histórico e a correlação de forças e classes que o moldam. A integração regional europeia não pode ser nem sobrevalorizada nem subestimada, mas discuta em sua exata medida para que possa ser plenamente compreendida, sem alegorias e ilusões com o entusiasmo fugaz dos modismos.
Referências
ANDERSON, P. El nuevo viejo mundo. Madri: Ediciones Akal S.A., 2012.
DARDOT, Pierre e LAVAL Christian. “A prova política da pandemia”. Disponível em: <https://blogdaboitempo.com.br/2020/03/26/dardot-e-laval-a-prova-politica-da pandemia/?fbclid=IwAR3eL898CmwxRw82nCWTaSPb79TNAfzWuI3TBhLoPZeZ_sFD4Z7CKh9GqQ> Acesso em 27 de março de 2020.
FIORI, José Luis. “O custo intangível do fracasso europeu”. Jornal Valor Econômico. Junho de 2008b. Disponível em: http://cartamaior.com.br/?/Coluna/O-custo-intangivel-do-fracasso-europeu/20883. Acesso de 28 de dezembro de 2016.
HIRSCH, J. Teoria Materialista do Estado: processos de transformação do sistema capitalista de Estados. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2010.
KANT, Immanuel. À Paz Perpétua. Tradução de Marco Zingano. Porto Alegre: L&PM, 2008.
MARTINS, Carlos Eduardo. “O Brasil na geopolítica mundial da COVID-19 e o caos sistêmico”. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2020/04/09/o-brasil-na-geopolitica-mundial-da-covid-19-e-do-caos-sistemico/ Acesso em 13 de abril de 2020..
OSORIO, L. F. “A integração econômica via União Europeia: lições para a América do Sul?” Texto para Discussão 2219. Brasília/Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada-IPEA, 2016.
OSÓRIO, L. F. “Capitalismo e processos de integração regional” Revista de Estudos Jurídicos UNESP, Franca, ano 22, n. 35, jan/jun de 2018a, pp. 13-38.
OSÓRIO, Luiz Felipe Brandão (2018). O Direito da União Europeia e a deterioração democrática e social. Revista Eletrônica do Curso de Direito da UFSM, Santa Maria, RS, v. 13, n. 1, p. 265-318, abr. 2018b. ISSN 1981-3694. Disponível em: < https://periodicos.ufsm.br/revistadireito/article/view/29158 >. Acesso em: 2 de abril de 2020.
[1] O MERCOSUL (Mercado Comum do Sul), na América do Sul, pode ser listado como um exemplo dessa dinâmica.
[2] Noção liberal que não é nova, mas é requentada e convenientemente interpretada, baseada na ideia da paz perpétua de Kant.
[3] A dita paz duradoura na Europa é muito conveniente, pois desconsidera por completo a região dos Balcãs, na qual foram vividas a Guerra da ex-Iugoslávia, no início dos anos 1990, e, como um de seus desdobramentos, a Guerra do Kosovo, em 1999.
[4] Fiori, 2016.
[5] O movimento de saída do Reino Unido da União Europeia ficou popularmente conhecido pelo acrônimo BREXIT que junta as palavras em inglês Britain e exit, significando a saída dos britânicos.
[6] Martins, 2020.
[7] Para mais ver: https://www.worldometers.info/coronavirus/
[8] https://www.noticiasaominuto.com/mundo/1435337/servia-agradece-ajuda-a-china-e-acusa-ue-de-falta-de-solidariedade
[12] Osorio, 2016.
[13] Osorio, 2018b.
[14] Ainda que a personalidade jurídica internacional, ou seja, a condição de um sujeito do direito internacional somente tenha vindo com os Tratados de Lisboa, de 2009.
[15] O Tratado de Maastricht foi celebrado em 7 de fevereiro de 1992, na cidade holandesa que lhe nomeou, e significou a materialização da guinada na União Europeia que já vinha sendo preparada desde os anos 1980, mas que foi acelerada com a queda da União Soviética e do bloco socialista na Europa. Além da união monetária, já se manifestavam indícios, que vieram a se concretizar não muito tempo depois, em 2004, de uma possível incorporação do Leste Europeu na dinâmica comunitária.
[16] O Plano Marshall foi um programa de recuperação econômica da Europa Ocidental, que foi financiado pelos Estados Unidos, visando à retomada da capacidade produtiva e material dos países, de sorte a conter, assim, o avanço do socialismo no continente.
[17] Anderson, 2012.
[18] Osorio, 2018a.
[19] Hirsch, 2010.
[20] Dardot e Larval, 2020.

Luiz Felipe Brandão Osório é membro do Conselho Editorial da Revista Diálogos Internacionais. Professor Adjunto de Direito e Relações Internacionais na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e atual Coordenador da Graduação em Relações Internacionais. Autor do livro Imperialismo, Estado e Relações Internacionais, pela Editora Ideias & Letras.

Como citar

OSÓRIO, Luiz Felipe Brandão. Do sonho ao pesadelo: o imobilismo europeu. Diálogos Internacionais, vol. 7, n. 71, Mai. 2020. Acessado em: 07 Mai. 2020. Disponível em: http://www.dialogosinternacionais.com.br/2020/05/do-sonho-ao-pesadelo-o-imobilismo.html

Diálogos Internacionais

Divulgação científica de Relações Internacionais, Defesa e Economia Política Internacional ISSN 2596 2353