Volume 7 | Número 71 | Mai. 2020
Por Érika Damião,
Luciana Reses,
Bruno Hendler
O presente artigo tem como objetivo mapear a atuação de empresas chinesas no setor hidrelétrico brasileiro, com destaque para as estatais State Grid e China Three Gorges que, juntas respondem por cerca de um terço do total de investimentos da China no Brasil desde 2010. Tendo como base os dados publicados pelas empresas e as notícias de veículos de mídia, o estudo pretende contribuir para o debate público sobre os rumos do setor hidrelétrico brasileiro diante da onda de investimento chinês no país.
Há três grandes tipos de investimento externo oriundos da China para o Brasil. O primeiro e mais antigo, que costuma passar despercebido dos holofotes da mídia, advém da atuação das famílias da China continental (principalmente de províncias do sul, como Guangdong e Fujian) e de Taiwan, que migraram em grande quantidade para a América Latina nos anos 1970 e 1980 (PINHEIRO-MACHADO, 229) e, desde então, mantêm fortes laços econômicos com sua terra natal (ARRIGHI et al, 2003). Através de redes de contato e relações familiares, o famoso guanxi, esses grupos atuam no Brasil há décadas em setores como gastronomia e comércio varejista, além da importação de produtos manufaturados e eletrônicos que atendem a este comércio.
Desde a abertura no final dos anos 1970 a economia da China continental tornou-se muito mais complexa e o crescimento puxado por investimentos públicos e exportações tem sido substituído, a partir de meados dos anos 2000, por um novo arranjo mais voltado para o aumento do poder aquisitivo da população, maior distribuição de renda, expansão do mercado interno, expansão da cobertura de serviços básicos (CINTRA; PINTO, 2017) e ampliação de laços econômicos com o Sul Global. Ao contrário da atuação das famílias diaspóricas, os outros dois tipos de IED chinês no Brasil (vistos a seguir) decorrem de políticas de governo específicas que visam, direta ou indiretamente, reforçar a transição para o novo modelo econômico e garantir, no exterior, as altas taxas de lucro que as empresas têm auferido no plano doméstico.
A exportação de capitais, junto com comércio exterior e oferta de serviços financeiros, tem sido uma das principais vias de conexão da China com os países em desenvolvimento. Para além da atuação das famílias diaspóricas, é possível classificar o recente afluxo de IED chinês no Sul Global em duas ondas praticamente sobrepostas. A primeira, iniciada em meados/finais dos anos 2000, consiste em investimentos nos setores de construção civil, mineração e infraestrutura de transportes, energia e telecomunicações. A segunda, que ganhou força alguns anos depois, é voltada para setores de turismo, cultura, mídia e, principalmente, serviços de tecnologia. Cabe ressaltar que essas ondas reforçam-se mutuamente, de forma que a primeira funciona como uma ponta de lança de empresas estatais (SOE´s) seguida pela segunda, protagonizada por empresas privadas (POE´s) que também contam com uma série de incentivos do governo (HENDLER, 2018).
O Brasil entrou no mapa do IED chinês em 2005 com um crescente afluxo de capital nos setores de mineração e energia, típicos da primeira onda. Enquanto esses setores continuam se expandindo, a segunda onda também tem aparecido, embora com menos destaque, nos ramos de manufatura (automóveis, computadores e eletrônicos e aplicativos, com empresas como Alibaba, Lenovo, Didi Chuxing e JAC Motors) (AEI).
Neste ensaio, propomo-nos a mapear as atividades do capital chinês em um subsetor específico da primeira onda, o de energia. Duas empresas estatais têm se destacado: a China Three Gorges Brasil (CTG) e a State Grid (SG). A primeira tem atuado na construção, gestão e modernização de usinas, ou seja, nas atividades que envolvem geração de energia. Já a segunda tem maior atuação na transmissão e distribuição, inclusive com a construção de novas linhas de transmissão e a aquisição de empresas de distribuição, como a CPFL.
As tabelas abaixo, que têm como base os dados do China Global Investment Tracker (CGIT), disponível no sítio virtual do American Enterprise Institute, apresentam a seguinte atuação dessas empresas no Brasil, que se iniciou em 2010.
Embora os dados qualitativos fornecidos pelo AEI não estejam completos, a tabela nos dá uma dimensão relativa. Desde 2010 as duas empresas juntas respondem por quase US$ 22 bilhões do total de US$ 47 bilhões de IED chinês no setor de energia (ou seja, quase 50%) e do total de US$ 65 bilhões em todos os setores (cerca de um terço do total). O auge desses investimentos ocorreu em 2016, quando as duas empresas celebraram contratos no valor de US$ 10 bilhões, correspondendo a 20% de todo o IED recebido pelo Brasil naquele ano.
Não obstante, os dados do AEI requerem aprofundamento. A partir do site oficial da China Three Gorges Brasil e de notícias divulgadas em diversos veículos de mídia, foi possível elaborar a tabela abaixo, que resume a atuação da empresa no país.
A empresa possui participação em 17 usinas hidrelétricas (em operação) no Brasil, sendo que em 14 delas o controle acionário é de 50% ou mais, chegando a 100% em duas (Garibaldi e Salto). A maior parte das aquisições ocorreu entre 2012 e 2016, com destaque para 2015 e 2016, quando ocorreram oito das 17 compras. O período de vigência das concessões varia bastante: de 17 anos (Canoas I e II) a cerca de 30 anos (Cachoeira Caldeirão, Garibaldi, Ilha Solteira, Jupiá, Santo Antônio do Jari e São Manoel) – e a média por contrato fica em torno de 24 anos.
A maior parte das aquisições ocorreu por meio de compra direta de grupos privados, brasileiros ou estrangeiros. As usinas de Garibaldi e Salto, por exemplo, foram adquirida pela CTG por meio de negociação com a brasileira Rio Verde SA. Já a portuguesa EDP Brasil vendeu quatro unidades e a norte-americana Duke Energy onze. Outro traço relevante é a distribuição geográfica das plantas: 12 das 17 listadas se encontram nas regiões sul-sudeste, com destaque para as sete usinas localizadas ao longo do Rio Paranapanema, na divisa entre os estados do Paraná e de São Paulo.
A State Grid é uma empresa chinesa fundada em Pequim em 2002 e iniciou seus trabalhos no Brasil em 2010 com o nome de State Grid Brazil Holding (SGBH) ocupando atualmente a posição de maior empresa distribuidora de energia hidrelétrica do país. A SGBH já investiu cerca de R$ 6 bilhões na indústria de energia brasileira (dados de 2018), sendo também a responsável pela maior linha de transmissão de energia do mundo, a linha Xingu-Rio.
A SGBH disponibiliza diversos dados sobre sua atuação no Brasil – dados que foram compilados nas tabelas abaixo.
As linhas de transmissão que pertencem integralmente à State Grid possuem uma concessão de trinta anos de duração sendo que a maior parte das linhas de transmissão foi adquirida na primeira década dos anos 2000, sendo 2007 e 2009 os anos de maior número de compras. Além disso, é possível notar também como essas linhas de transmissão não são necessariamente muito extensas, sendo que apenas duas delas (XRTE e PRTE) ultrapassam os 1000 km de extensão.
Dentre as linhas de controle parcial, 60% das aquisições ocorreram em 2012 sendo a Companhia Paranaense de Energia (Copel) a maior parceira da State Grid, tendo envolvimento em três das cinco linhas.
É interessante analisar e destacar Belo Monte que é responsável pela linha Xingu Rio, um dos projetos mais promissores da State Grid nos últimos tempos. A linha por si só apresenta uma estimativa de 2539 km, sendo a maior linha de transmissão da empresa chinesa até agora.
Conclusão
Os dados apresentados mostram que empresas estatais chinesas como a State Grid e a CTG Brasil se aproveitaram de duas conjunturas favoráveis. A primeira e mais evidente foi o suporte do governo chinês para a internacionalização de empresas estatais (no contexto da primeira onda de exportação de IED). A segunda, menos evidente, é a fragilização de empresas brasileiras e estrangeiras que já atuavam no Brasil. Isto decorreu da fragilização da burguesia nacional ligada aos setores de infraestrutura e construção civil e do contexto macroeconômico desfavorável de 2015-2016, que elevou os custos e a imprevisibilidade dos investimentos no país.
As duas empresas analisadas apresentam focos diferentes no setor hidrelétrico. Enquanto a China Three Gorges investe na atividade de geração de energia, a State Grid especializa-se na expansão e gestão da malha de transmissão energética. Ambas as empresas intensificaram sua atuação no Brasil entre 2010 e 2013 e, juntas, correspondem a aproximadamente 47% do IED chinês no setor de energia e 33,8% de IED chinês total.
Os dados apresentados neste artigo elucidam a estratégia de investimento em energia limpa que a China vem protagonizando nas duas últimas décadas – e o Brasil tem se destacado como um dos mercados prioritários. As implicações de longo prazo do afluxo de IED da China no setor hidrelétrico brasileiro ainda são desconhecidas. Por um lado, as empresas examinadas tornaram-se referência mundial e apesar de possíveis choques de gestão corporativa e de acidentes esporádicos como um incêndio em turbina na usina de Taquaruçu em 2018, não se deve esperar quaisquer tipos de queda na qualidade ou aumento dos preços para o consumidor final. Por outro, a dependência de capital e tecnologia estrangeiros para completar ciclos econômicos em setores estratégicos nos quais o Brasil tem uma “vocação natural”, como o hidrelétrico, diz muito sobre os retrocessos que o país tem sofrido nos últimos anos. Ademais, a expansão da construção de novas usinas precisa passar por um debate público que envolva populações locais afetadas e estudos rigorosos de impacto ambiental. De todo modo, este artigo apenas pretendeu mapear a atuação da CTG e da State Grid no Brasil e contribuir para o debate em torno do setor de energia.
Referências
CINTRA, Marcos; PINTO, Eduardo. China em transformação: transição e estratégias de desenvolvimento. Revista de Economia Política, vol. 37, nº 2 (147), pp. 381-400, 2017.
ECOA.
Quem são os chineses de olho na Amazônia? Empresa chinesa com rastro de violação de direitos humanos quer construir a usina de São Luiz do Tapajós, a maior polêmica ambiental desde Belo Monte. 16/02/2016. Disponível em:
https://ecoa.org.br/quem-sao-os-chineses-de-olho-na-amazonia/. Data de acesso: 20/02/2020.
HENDLER, Bruno. O Sistema Sinocêntrico Revisitado: a sobreposição de temporalidades da ascensão da China no século XXI e sua projeção sobre o Sudeste Asiático. Tese de doutorado, UFRJ. 2018.
PINHEIRO-MACHADO, Rosana. Made in China: produção e circulação de mercadorias no circuito China-Paraguai-Brasil. Tese de Doutorado. UFRGS, 2009.
* Este artigo foi desenvolvido no âmbito do Grupo de Estudo em Ásia-Pacífico do Centro de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Federal de Santa Maria.
Érika Damião é graduanda em Relações Internacionais pela UFSM e membro do Grupo de Estudo em Ásia-Pacífico
Luciana Reses é graduanda em Relações Internacionais pela UFSM e membro do Grupo de Estudo em Ásia-Pacífico.
Bruno Hendler é Professor Adjunto do curso de Relações Internacionais da UFSM, Doutor em Economia Política Internacional pela UFRJ e Coordenador do Grupo de Estudo em Ásia-Pacífico.
Como citar
DAMIÃO, Érika; RESES, Luciana, HENDLER, Bruno. Investimento externo chinês no setor hidrelétrico brasileiro: mapeando a atuação da State Grid e da China Three Gorges. Diálogos Internacionais, vol. 7, n. 71, Mai. 2020. Acessado em: 08 Mai. 2020. Disponível em: http://www.dialogosinternacionais.com.br/2020/05/investimento-externo-chines-no-setor.html