Em tempos de solidariedade, aos amigos, o egoísmo; aos inimigos, a guerra.

Volume 7 | Número 70 | Abr. 2020

Por Luiz Felipe Brandão Osório 
Publicado originalmente no site da rádio Mundial News FM

Não há nada de tão ruim que não possa piorar. Em meio ao avanço do COVID-19 no mundo (e, principalmente, no Brasil) e das medidas de isolamento social que afetaram a rotina de milhões, o telespectador, ainda atônito com as drásticas mudanças e com a estranha sensação de estar sendo tragado vivo pelo redemoinho da história, testemunhou, envolta na enxurrada de notícias sobre a pandemia, no dia 26 de março, a transmissão[1] do indiciamento do Presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, e de funcionários da alta cúpula do governo e das forças armadas, pela justiça estadunidense por narcoterrorismo, e o governo Trump fixou uma recompensa de 15 milhões de dólares pela captura do presidente.
A cena, que remetia a espetáculos midiáticos anteriores e fracassados, despertando um sentimento dèjá vu (já vi isso em algum lugar antes), com a utilização de projeções básicas do programa PowerPoint, mais uma vez repetia a história como farsa. A todos aqueles governantes da história da América Latina que em algum momento ousaram desafiar o poderio estadunidense, defendendo a autonomia local, passaram por essas acusações (que se alternam entre narcotráfico, terrorismo ou corrupção ou as três em conjunto). A seriedade dos rostos dos acusadores contrastava com a fragilidade das provas apresentadas. Se as provas cabais de tais acusações aparecerão ou não, isso pouco importa. Historicamente, em nome da defesa da liberdade, intervenções e atrocidades foram perpetradas pelos Estados Unidos em todo continente. A coação e a ameaça extrapolam o processo judicial.
Em uma manifestação da sutileza assustadora da geopolítica, o governo Trump enviou, no dia 1º de abril, navios e aeronaves de guerra da Marinha para o Caribe, dobrando seu efetivo militar na região, com o objetivo explícito de conter uma possível expansão do narcotráfico durante a pandemia[2]. O movimento acompanhou acenos diplomáticos dados pelos Estados Unidos, no dia 31 de março, e por seus aliados ao Sul, como expressam as notas da chancelaria brasileira[3] e do Grupo de Lima[4]. Todas as posições convergem na defesa de uma proposta de transição democrática no país caribenho, cujo principal pressuposto seria a saída do poder de Maduro.
Não é a primeira ofensiva dos Estados Unidos e seus aliados à Venezuela. Há aproximadamente um ano atrás os tambores da guerra soaram forte na região amazônica, com o fechamento de fronteiras e a tentativa de invasão pelos limites lindeiros colombianos. Além de atentados internos contra o governo e sanções econômicas permanentes que sufocam a economia local, que se somam ao boicote pelas organizações internacionais para empréstimos e ao acirramento das restrições externas em meio à pandemia deliberadamente para cacifar os efeitos da crise. Ainda assim, sob pressão constante, Maduro manteve-se no poder em uma articulação com Rússia e China que lhe garantiam capacidade material e militar de resistir e afastou o perigo mais imediato de derrubada. Mesmo após o fracasso retumbante da estratégia golpista, que chegou até a autoproclamar um presidente alternativo, os Estados Unidos recuaram, mas não desistiram.
A ambição de tirar do poder os representantes da revolução bolivariana não é novidade. Desde a posse de Chávez, variadas tentativas foram empreendidas, sendo a mais conhecida o golpe de 2002, o qual conseguiu ser revertido graças ao maciço apoio popular. A organização popular e o papel das Forças Armadas locais na defesa da soberania nacional tem sido o grande esteio do socialismo do século XXI em nossas fronteiras. Mesmo com êxitos e fracassos, avanços e retrocessos, inerentes de um processo revolucionário, a Venezuela está prestes a completar 22 anos, ou seja, sua longevidade demonstra que foi reconstruída sob bases sólidas, tendo resistido a variadas ofensivas de governos estadunidenses diferentes. O que chama atenção, particularmente, nas manobras dos últimos dias é o tempo histórico em que elas estão sendo executadas.
A linha do tempo do capitalismo já atravessou outras pandemias, algumas, inclusive, bem recentes, como a influenza (conhecida como gripe espanhola), SARS, gripe aviária, gripe suína (H1N1). A peculiaridade do coronavírus é que ela não foi o fator externo e imprevisível que levou de roldão a estável economia internacional, mas, sim, que foi a gota d’água em um copo já em transbordamento. Ou seja, a crise econômica já em curso conheceu apenas um fator de aceleração, intensificando os efeitos deletérios. O horizonte trágico que se avizinha de um elevado número de mortes em todo mundo ocidental, principalmente, se deve não apenas à letalidade do vírus, mas ao desmonte dos sistemas de saúde, da ampla privatização de setores estratégico, da diminuição dos investimentos em pesquisas científicas, da retirada da proteção social via seguridade e previdência, do declínio das condições de trabalho, em suma, da implementação das políticas neoliberais sobre o modelo de bem-estar social. Não apenas os países europeus, mas os americanos, sobretudo os Estados Unidos, que carecem de uma ampla rede estatal de proteção da sociedade, se aproximam de uma convulsão social sanitária.
Nesse cenário de exceção, os países socialistas, como China, Cuba, Coreia, Vietnã e mesmo a Venezuela (com baixo registro de casos), além de demonstrarem eficiência no combate interno, ainda, com mais intensidade chineses e cubanos, somados pelos russos, exportam solidariedade por meio do envio de médicos, materiais e estrutura para o controle da pandemia nos países ocidentais. Basta lembrar aqui que a União Europeia deixou a Itália à deriva em meio ao auge do surto viral, somente vindo a manifestar alguma ajuda após França e Espanha serem contaminadas por completo[5]. Além dos Estados Unidos que, junto com a chinesa[6], recentemente aceitaram a ajuda russa[7]. Enquanto isso, os países ocidentais brigam entre si por migalhas[8] (como as máscaras e pequenos carregamentos que fazem a diferença em horas cruciais), segundo as duas ações estadunidenses mais recentes ante os aliados França[9] e Brasil[10]. Não há qualquer melindre na imposição da força material pelos fortes na dinâmica do capitalismo, independentemente da gravidade da situação no plano global[11].
Dado esse panorama é possível apontar, ao menos, duas razões para as recentes movimentações rumo à intervenção na Venezuela. A primeira é a mais conhecida de deslocamento das atenções do plano interno para o externo. O desejo de derrubada dos governos bolivarianos é antigo e, com o elemento aleatório da pandemia, foi aberta uma janela para o acirramento da crise interna, apostando no caos social para uma insurreição popular. Um possível conflito (com uma eventual vitória) seria uma tentativa de aplacar a insatisfação no contexto nacional de um provável caos sanitário. O apelo para a guerra com vistas à reeleição não é novidade na estratégia dos presidentes estadunidenses. E com o apoio dos vizinhos, notadamente Brasil e Colômbia, as ações militares ficam facilitadas, levando em conta que Rússia e China (e todo o mundo) se ocupam, por ora, de concentrar os esforços no combate ao vírus. A segunda envolve a crise do petróleo já em curso, antes da pandemia, que retroalimentava a derrocada econômica. A Venezuela detém grandes e importantes reservas de petróleo que desde a assunção de Chávez saíram do controle dos Estados Unidos, ainda que empresas do país ainda operem e comercializem por lá, em condições menos favoráveis que outrora. O principal motivo do incômodo com os venezuelanos é a alocação dos dividendos do recurso natural.
A questão do petróleo é muito mais permanente e estruturante do que a da pandemia que, em princípio, é um elemento episódico. O mercado de petróleo, após a Segunda Guerra Mundial, tornou-se o principal palco de conflitos. Há grandes potências, como Estados Unidos e Rússia, e países periféricos, com grandes reservas e sendo os principais produtores mundiais. Até 1960, as Sete Irmãs, empresas privadas de petróleo do eixo anglo-saxão, dominavam o mercado, dentro de seu próprio cartel. A partir dessa data, os países periféricos reuniram-se para diminuir a subalternidade e fundaram a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP), sendo composta por nações latino-americanas (Venezuela e Equador), africanas e asiáticas, que criou seu próprio cartel. Fez-se, então, crescer a queda de braço entre a OPEP, representante da periferia, e as Sete Irmãs, que representavam, não tão imediatamente, as potências centrais. As crises do petróleo da década de 1970 serviram para acomodar as tensões e lançar o patamar atual. A Rússia e outros países vizinhos de sua esfera de influência não fazem parte da OPEP, mas iniciaram aproximações em 2016 com a organização internacional, formando o foro de diálogo OPEP + (Rússia, Cazaquistão e Azerbaijão). A disputa geopolítica entre Rússia e Estados Unidos também se acirra, notadamente com as sanções recebidas pelos russos que acabou impactando a economia local. Com a recente ameaça da Arábia Saudita (aliada dos Estados Unidos) de aumentar a produção, os russos bancaram a queda do preço ante os sauditas, dizendo que conseguem se segurar por volta de uma década com esse preço (o que ajuda em muito a recuperação econômica da China). O baixo preço do petróleo atingiria produtores estadunidenses do Texas, altamente endividados em função da custosa extração do xisto no local. Nessa dinâmica, o controle das reservas venezuelanas seria uma garantia de fôlego e blindagem aos Estados Unidos em meio à disputa com os russos.
A política dos Estados está em pleno vapor. A permanente e estrutural disputa pela hegemonia, a concorrência para assumir a dianteira internacional dentro do sistema de Estados e seu modo de produção predominante, acirra-se com a ascensão chinesa e o declínio relativo dos Estados Unidos. A pandemia, mais uma vez, não causou nada, mas acelerou os processos em curso. A tradicional polaridade da geopolítica entre a potência hegemônica (outrora os britânicos), agora, os Estados Unidos, e o eixo anti-imperialista (China, Rússia e até o Irã) pela integração euroasiática volta aos holofotes. E a Venezuela, sem o apoio regional de outros tempos (CELAC[12] e UNASUL[13], esvaziadas com a chegada da direita e extrema direita ao poder na América Latina), resiste bravamente, vislumbrando a mira do canhão da geopolítica atual voltada para seu território.
Referências
BARTLEY, Kim e O’BRIAIN, Donnacha. “A Revolução não será televisionada”. Documentário produzido e filmado em 2003. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=R-7c34tYH1c. Acesso em 3 de abril de 2020.
MADURO, Nicolás. Carta de Maduro a líderes mundiais: os criminosos passos da administração de Donald Trump. Opera Mundi,  Escrita em 30 de março de 2020. Disponível em: https://operamundi.uol.com.br/diplomacia/63855/carta-de-maduro-a-lideres-mundiais-os-criminosos-passos-da-administracao-de-donald-trump. Acesso em 3 de abril de 2020.
MELLO, Leonel Itaussu Almeida. Quem tem medo da geopolítica? São Paulo: Hucitec/Editora USP, 1999.
MÉSZÁROS, István. “Bolívar e Chavéz: o espírito da determinação radical”. Blog Boitempo, Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2014/03/05/bolivar-e-chavez-o-espirito-dadeterminacaoradical/?fbclid=IwAR117G0BYq5HJcra2bCSFC0nyf7buPKrEgB9Ucb4Q902Fo2cO0OBb3s_R0. Acesso em 3 de abril de 2020.
STONE, Oliver. “Ao Sul da Fronteira: Hugo Chávez e a nova América Latina”. Documentário produzido e filmado em 2009. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=dlidWZoy9ag. Acesso em 3 de abril de 2020.
STONE, Oliver. “Meu amigo Hugo”. Documentário produzido e filmado em 2014. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=mJumwvO2DrA. Acesso em 3 de abril de 2020.
YERGIN, Daniel. A Busca. Energia, segurança e a reconstrução do mundo moderno. Rio de Janeiro: Editora Intrínseca, 2014.
[12] Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos criada em 2010 para a defesa da autonomia da região na discussão dos assuntos internos.
[13] União das Nações Sul-Americanas criada em 2008 , idealizada e executada pelo governo Chávez, para proteção e promoção da consenso político e de iniciativas conjuntas em várias áreas estratégicas, como a saúde, por exemplo.

Luiz Felipe Brandão Osório é membro do Conselho Editorial da Revista Diálogos Internacionais. Professor Adjunto de Direito e Relações Internacionais na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e atual Coordenador da Graduação em Relações Internacionais. Autor do livro Imperialismo, Estado e Relações Internacionais, pela Editora Ideias & Letras.




Como citar

OSÓRIO, Luiz Felipe Brandão. Em tempos de solidariedade, aos amigos, o egoísmo; aos inimigos, a guerra. Diálogos Internacionais, vol. 7, n. 70, Abr. 2020. Acessado em: 20 Abr. 2020. Disponível em: http://www.dialogosinternacionais.com.br/2020/04/em-tempos-de-solidariedade-aos-amigos-o.html

Diálogos Internacionais

Divulgação científica de Relações Internacionais, Defesa e Economia Política Internacional ISSN 2596 2353