Por Bernardo Salgado Rodrigues
Nas últimas duas décadas, a política externa da China caracterizou-se por um processo de projeção internacional baseado no paradigma do desenvolvimento pacífico
[1] e harmonioso
[2], sustentada na cooperação Sul-Sul. Como parte deste processo, o país aproximou-se de regiões como a América Latina, ocupando espaços geopolíticos e geoeconômicos que resultaram em crescimento dos vínculos comerciais, elevação dos investimentos/financiamentos e a concretização de acordos bilaterais e multilaterais.
Dentro desta perspectiva, em 2013, a Nova Rota da Seda (NRS), também conhecida como Belt and Road Initiative (BRI) ou One Belt One Road (OBOR), foi proposta pelo presidente chinês Xi Jinping durante uma visita oficial à Ásia Central. Na busca de retomar a Rota da Seda original − corredor econômico que uniu Oriente e Ocidente no primeiro milênio de nossa era −, a China intenta fortalecer os laços econômicos entre Ásia, África e Europa com investimento de bilhões de dólares em infraestrutura (MAÇÃES, 2018, pp.9-13), que favoreceriam a conexão e o comércio entre os países assim como confirmaria, direta ou indiretamente, a disputa pelo poder global.
Nos primeiros anos após o anúncio da NRS, oficiais chineses e acadêmicos de think tanks negavam regularmente a incorporação da América Latina. Dentre os fatores que contribuiriam para a sua exclusão estariam: o distanciamento físico natural entre as regiões, com as demandas chinesas atualmente atendidas pela região em termos de recursos e mercados sendo supridas pelo escopo da NRS; a mudança da política externa dos países latino-americanos a partir de 2015, com a ascensão de governos conservadores com perfil de maior alinhamento aos Estados Unidos, assim como a própria reação norte-americana à presença chinesa no hemisfério; e a preocupação geopolítica com seu entorno estratégico imediato.
Recentemente, no entanto, as autoridades e empresas chinesas, assim como suas contra partes latino-americanas, têm sido mais abertas à negociação diplomática e comercial sob a bandeira da NRS. Seja através dos pronunciamentos multilaterais e bilaterais, formais e informais, ou dos documentos oficiais do governo chinês, como o China’s policy paper on Latin America and the Caribbean (principalmente a segunda versão de 2016), há fortes sinais indicativos de um estreitamento de diálogos relacionados à NRS, ressaltando a inclusão gradual da região no escopo do projeto.
Chinese decision-makers have no need of being reminded that the world has changed since the days of Genghis Khan and that limiting the Belt and Road to territories along the ancient land and sea Silk Road would be to overlook vital economic regions such as North and South America and most of the African continent. (MAÇÃES, 2018, p.25)
A NRS é global por natureza. A inclusão da América Latina e Caribe, portanto, é ratificada com mais assertividade a partir de 2017, quando um número crescente de países da região assinou memorandos de entendimento relacionados à NRS e anunciaram negócios, sinalizando a extensão, de fato, à região. Em maio do mesmo ano, o presidente chinês Xi Jinping afirmou ao presidente da Argentina, Mauricio Macri, no
Belt and Road Forum, em Pequim, que a região latino-americana era uma “extensão natural” da Rota Marítima da Seda e um “participante indispensável”
[3], tornando, assim, a possibilidade de sua inclusão mais evidente. No nível multilateral, um ponto de inflexão ocorreu no Fórum Ministerial China-CELAC em Santiago, Chile, em janeiro de 2018. Nele, os participantes assinaram uma Declaração Especial sobre a NRS, no qual a região foi convidada pelo Embaixador Li Jinzhang a participar formalmente, como uma nova plataforma para cooperação mutuamente benéfica entre a China e a América Latina
[4].
A China gostaria de aproveitar essa oportunidade para promover o acomplamento da iniciativa “Um Cinturão e Uma Roda” com as estratégias de desenvolvimento dos países latinoamericanos e caribenhos. Proposto pelo presidente chinês Xi Jinping, em 2013, “Um Cinturão e Uma Rota” é uma iniciativa que objetiva a criação de uma plataforma de cooperação internacional. Durante a Cúpula “Um Cinturão e Uma Rota” da Cooperação Internacional no ano passado, o presidente Xi anunciou que a China aumentará seu apoio à construção “Um Cinturão e Uma Rota” e adicionará 100 bilhões de yuan ao Fundo da Rota da Seda, e encorajará as instituições financeiras a realizar operações em yuan no exterior, que poderão movimentar 300 bilhões de yuan. Além disso, as instituições financeiras da China fornecerão quase 400 bilhões de yuan de empréstimos especiais para apoiar a construção “Um Cinturão e Uma Rota”. “Um Cinturão e Uma Roda” tornou-se um produto público internacional bem recebido, cujo segredo é ser “visível, tangível e eficiente” em vez de ter conversas vazias. 400 anos atrás, a China e a América Latina abriram “Roda da Seda Marítima no Oceano Pacífico”. A China está disposta a promover a cooperação substancial em todas as áreas com os países da região sob os conceitos e métodos de construção de “Um Cinturão e Uma Roda”, aprofundando a comunicação das políticas, a conectividade de infraestruturas, o livre fluxo de comércio, a circulação de capitais e o entendimento entre os povos, criando as novas oportunidades e expandindo novos espaços para desenvolvimento. (FORUM CHINA-CELAC, 2018, s/p)
Neste contexto, o Panamá foi o primeiro país a assinar esse acordo com a China, em novembro de 2017, depois de trocar o reconhecimento diplomático de Taiwan para a Pequim no início daquele ano. Posteriormente, um total de 15 países da América Latina e Caribe assinaram memorandos de entendimento referentes à NRS com a China, sendo o Equador o exemplo mais recente, em 13 de dezembro de 2018. Notavelmente, a maioria dos que assinaram são países menores na América Central e Caribe, ou ainda membros sul-americanos convergentes com as políticas chinesas, como Venezuela, Equador e Bolívia. Os países maiores como Brasil, México, Colômbia, Argentina e Peru ainda não se inscreveram
[5]. Como afirmam Abdenur e Levaggi,
Somente uma parcela de países latino-americanos reconheceram a importância estratégica da BRI e realizaram esforços para participar de seus primeiros passos. Na maior parte da região, a BRI é mencionada ocasionalmente na mídia, mas está fora dos debates políticos e mesmo acadêmicos. Existe a necessidade de construção de conhecimento sobre esta iniciativa e suas implicações para a região, especialmente a partir do engajamento de centros de pesquisa, think tanks e instituições acadêmicas e maior cobertura pela mídia latino-americana. Maior conhecimento na pesquisa ou jornalístico irá trazer mais luzes tanto sobre oportunidades e desafios, relativizando as visões românticas sobre a BRI em algumas partes da América Latina. (ABDENUR; LEVAGGI, 2018, p. 15)
No âmbito mais geral, a construção da NRS faz parte de um conjunto da política externa da China, que se relaciona com sua agenda de desenvolvimento, a sustentação da sua expansão econômica e a influência política regional e global. Especificamente para a América Latina, consiste na incorporação da região em sua geometria de poder a partir de uma estratégia geoeconômica (BLACKWILL; HARRIS, 2016, p.20), que estimula a oferta de financiamento e o aumento de investimentos chineses, tanto em infraestrutura quanto em diferentes setores econômicos, visando alavancar a capacidade produtiva e de escoamento da região, ampliando seu escopo regional na Eurásia.
A China vem promovendo o Belt and Road Initiative como uma oportunidade para as nações desenvolverem infraestrutura e criarem novas oportunidades comerciais com empresas chinesas, assim como ampliar sua projeção de poder no sistema internacional. Considerado o maior projeto geoeconômico da história, a entrada da América Latina enseja estudos complexos e sistematizados sobre o tema, imprescindível para a compreensão dos efeitos da NRS no desenvolvimento dos países latino-americanos no século XXI.
Referências bibliográficas
ABDENUR, Adriana Erthal; LEVAGGI, Ariel Gonzalez. “Trans-Regional Cooperation in a Multipolar World: How is the Belt and Road Initiative Relevant to Latin America?” Working Paper, LSE Global South Unit, 2018.
BLACKWILL, Robert D.; HARRIS, Jennifer M.. War by other means: geoeconomics and statecraft. Cambridge, Massachusetts: The Belknap Press Of Harvard University Press, 2016.
FÓRUM CHINA-CELAC. Fórum China-Celac- novas oportunidades de desenvolvimento- discurso do Embaixador Li Jinzhang em 21 de Janeiro de 2018. Disponível em: http://www.chinacelacforum.org/esp/ltdt_2/t1527418.htm.
KISSINGER, Henry. Sobre a China. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011.
MAÇÃES, Bruno. Belt and Road: a Chinese world order. New York: Oxford University Press, 2019.
SHAMBAUGH, David. China goes global: the partial power. New York: Oxford University Press, 2013.
[1] “Com o título de ‘Persistindo em tomar o caminho do desenvolvimento pacífico’, o artigo de Dai pode ser visto como uma resposta tanto a observadores estrangeiros preocupados com a possibilidade de que a China nutrisse intenções agressivas quanto àqueles dentro da China — incluindo, postula-se, alguns dentro da própria estrutura de liderança — que argumentavam que a China devia adotar uma postura mais insistente. O desenvolvimento pacífico, argumenta Dai, não é um artifício pelo qual a China ‘esconde seu brilho e ganha tempo’ (como desconfiam alguns não chineses), nem tampouco uma ilusão ingênua que abdica as vantagens chinesas (como alguns dentro da China acusam). É a política genuína e duradoura da China porque serve melhor aos interesses do país e convém à situação estratégica internacional.” (KISSINGER, 2011, p.487)
[2] “In addition to these, in recent years China has sought to project two key slogans/concepts abroad: its “Peaceful Development” and “Harmonious World.” The concept or kouhaoof “peaceful development” (和平发展) is an out growth of Deng Xiaoping’s concept of peace and development. First put forward in
1985, Deng offered his concept as an alternative to Mao’s notion of superpower
competition and the inevitability of world war, arguing instead that the world had entered a new era of peace and development and that China needed peace externally in order to pursue development internally. Enshrined in an important 2011 government White Paper, Deng’s concept demonstrated remarkable staying power in China’s official lexicon and guiding ideology, even long after his death in 1997.” (SHAMBAUGH, 2013, p.218)