Volume 6 | Número 65 | Out. 2019
Por Bruno Gonçalves e
Haryel Alves Azevedo de Carvalho
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Carlos Latuff |
Uma das questões que circundam de forma veemente as Relações Internacionais modernas é o nacionalismo e seus prismas. Com o advento do Estado-Nação, o debate sobre a unidade territorial é de extrema importância, pois é o fator essencial que permite a construção do Estado como poder legítimo sobre um povo ou povos. Na América Latina, essa discussão ganha ainda outro ângulo pelo qual esse trabalho será desenvolvido.
Os Estados-Nação latino-americanos se formaram de maneira muito distinta da europeia. Enquanto os Estados europeus foram forjados a partir de disputas regionais, hegemonias locais, como a França, na América o processo se deu de forma oposta. Especialmente na América Latina, onde primeiramente, monarquias do continente europeu invadiram as terras, que designaram inexploradas e subjugaram, dizimaram e colonizaram as populações locais. (QUIJANO, 2005, p. 118)
O Estado, por definição, já é uma invenção europeia, importada para o resto do globo em forma de violência colonial disfarçada de progresso civilizador. Consequentemente, o nacionalismo também se configura como uma invenção importada, que fortifica a forma de se pensar a organização da sociedade a partir da experiência colonizadora.
Nesse sentido, é inevitável que a formação cultural da América Latina tenha herdado traços da cultura ibérica, assim como tenha incorporado a forma de enxergar o mundo. Na construção dos Estados soberanos do sul do continente, ao mesmo tempo em que tentou-se acabar com o domínio das metrópoles, o modelo intelectual e cultural que se seguiu foi o do colonizador.
Não obstante, a história venezuelana segue o curso da colônia espanhola, desintegrada em Estados-Nação. Nesse contexto, o movimento nacionalista de Chávez buscou na figura de Simon Bolívar o grande representante da causa independentista na América do Sul. A formação da identidade nacional na Venezuela remonta à Carta de Jamaica, na qual Bolívar defende a saída da metrópole espanhola do continente.
No entanto, para os fins deste trabalho, é importante ressaltar que o movimento pela independência da América Latina foi baseado nos preceitos europeus de liberdade, república liberal e igualdade entre os homens. Ou seja, o movimento intelectual de libertação das colônias sul-americanas foi inspirado pelo colonizador. Dessa forma, não foi um movimento inspirado pela formação cultural da região, pela pluralidade e representação do que havia nela, mas sim, por ideais pensados em uma sociedade distinta.
A reflexão sobre o que foi o nacionalismo no chavismo retoma o debate do que foi o bolivarianismo nesse processo, também será abordada a questão da colonialidade do intelecto abordada por Aníbal Quijano, que oferece uma premissa esquecida ao se pensar sobre América Latina: a mesma foi construída à imagem da Europa, sem sê-lo. Não somos a Europa, não somos um espelho da Europa, porém não somos o outro. O presente trabalho busca entender em que lugar se encaixa a reflexão da identidade latino-americana em um sistema de Estados importado, o qual na maioria das vezes não representa a sua população.
A criação dos conceitos de América Latina e raça
Para ilustrar a questão da influência intelectual europeia, a obra de João Feres inicia satisfatoriamente a discussão sobre a conceituação da região em si. América Latina ou “Latin America” inicialmente, foi uma construção francesa para designar o Hemisfério Sul do continente. Por sua vez, tido por Napoleão III como área de influência francesa, já que a França era a potência europeia que tinha a aptidão para governar e tinha o latim como língua originária, assim como o espanhol (FERES, 2005, p. 52)
A definição de Latin America defendida pela França, já no século XIX, era antes de qualquer coisa, um projeto de dominação da região, por meio da invocação de elementos culturais comuns que justificassem a identificação entre os povos e a corroboração da tese de que tal Estado era o mais indicado para subjugar os povos aqui existentes.
“Essa unidade não se traduzia, contudo, em igualdade, pois, para os ideólogos do panlatinismo, a França estaria na vanguarda da raça latina e, portanto, deveria liderar as nações irmãs menos favorecidas à reconquista de um papel de proeminência na história da civilização humana – papel esse perdido para os povos germânicos e anglo-saxões.” (FERES, 2005, p.52)
Ao empreendimento de Feres pode-se somar a discussão de Quijano sobre a formação da ideia de raças. A ideia de que existem raças distintas, baseadas no fenótipo de cada sociedade/povo/civilização fomenta de forma científica a separação, categorização e consequentemente, a dicotomia brancos-não brancos forjada a partir do início da expansão do projeto dominador europeu.
Para Quijano, foi do período colonial em diante que houve a solidificação da Europa como uma raça, como um único povo, como civilização branca. (QUIJANO, 2005, p.127) A diferenciação permitiu então a construção das estruturas de poder, que baseiam as relações interestatais até hoje. Concomitantemente, o projeto de dominação europeu se dava, apropriando-se de recursos alheios, de terras, de mão de obra explorada, desenvolvendo as atividades capitalistas.
Nesse sentido, ao mesmo tempo em que se fomentava a ideia de que a raça branca é superior às outras, também se expandia a espoliação dos recursos de diversos lugares do globo em prol dos movimentos econômicos que consolidavam na Europa. Esse duplo movimento se dá de forma complementar. Desenvolvia-se um novo modelo de exploração do trabalho na Europa, ao mesmo tempo que se desenvolvia a ideia de que a Europa era superior ao resto do mundo. (QUIJANO,2005, p. 128)
Na América do Sul, em específico, a colonização retirava não apenas os recursos naturais das terras exploradas, mas também a vida de seus ocupantes nativos. Se não a vida, a cultura, o intelecto, etc. As formas de saber das populações locais e mais tarde, das várias civilizações africanas que se fizeram representar em solo americano, tornaram-se misticismo, conhecimento primitivo, atrasado. Como explicita Quijano, à essas civilizações foi relegado o papel de atraso, de passado, no período em que as metrópoles europeias invocam o novo, o progresso, a modernidade.
Seja pela dominação colonial feita majoritariamente por espanhóis e portugueses e sonhada pelos franceses, seja pelo ideal de Estado-Nação, a América Latina sempre esteve envolta das designações, dos padrões europeus de formação do pensamento. A questão central para o presente trabalho é que a formação dos Estados latino-americanos comporta uma diversidade de povos e de interesses que não tem precedentes similares na Europa.
Por mais que houvesse a questão da unificação territorial e de povos com costumes diferentes no continente europeu, na América Latina o Estado foi formado por povos que foram enquadrados em diferentes raças. Ou seja, havia e ainda há a suposição de que determinada parcela da população por sua cor de pele já possui uma predestinação guardada em seu código genético.
O duplo movimento de Quijano desenvolveu ainda hoje a divisão da sociedade que não permite que haja a formação do que na Europa foi possível: o nacionalismo. A divisão da sociedade em diferentes raças, a marginalização de povos secularmente oprimidos intelectual, cultural e economicamente, traz à tona o reforço da ideia de que os povos subjugados estão nessa posição por sua raça inferior. Enquanto que o dominador que explorou, subjugou e espoliou esses povos, consegue legitimar a premissa de que brancos europeus são superiores.
A identidade nacional na Venezuela
Nesse cenário, a Venezuela em sua história já invocava e incorporava os padrões civilizacionais europeus. Sua independência se dá pelo ideal de uma República liberal, assim como ocorria na Europa e na América Latina. Cabe ressaltar que havia a valorização do indígena como componente benéfico da composição do Estado, no entanto, assim que a independência é conquistada, imediatamente essa população é esquecida.
Para Quijano, a formação de uma nação, modelo europeu, para consolidar o Estado-Nação deveria ser acobertada pelo senso de cidadania, dada pela democracia política e social, que geraria a identidade com o povo e a terra. A dificuldade encontrada na América Latina é justamente seu passado colonial. Mesmo com o advento da independência, os novos Estados latinos não conquistaram a democracia social, o quebrar das correntes do sistema social colonial que segmentava a sociedade em “castas”. Estado formado não pela “democratização fundamental das relações sociais e políticas, mas pela exclusão de parte da população”.
Os Estados Unidos da América, diferentemente, teve de certa forma, uma maior efetividade na democratização, até porque não foi constituído na mesma forma colonial que os Estados latino-americanos. O avanço para o oeste proporcionou uma divisão maior de terras por medidas estatais de incentivo à migração para aquela região. Apesar da manutenção de grandes latifúndios, havia quantidades consideráveis de pequenas e médias propriedades. Nesse mesmo aspecto, o ingresso nas discussões e tomadas políticas do país colocavam esses novos cidadãos dentro do debate político. Possibilita-se, portanto, o acesso de parte da população na sociedade política estadunidense, o que democratizou, de maneira mais abrangente em relação à América Latina, o controle dos recursos de produção e do Estado.
O que une as pessoas é a conveniência. E a partir do momento em que uma sociedade não tem um interesse em comum, é impossível a formação de uma unidade identitária. No pensamento europeu tradicional, o capitalismo traria mais rapidamente o nacionalismo por exercer sobre as pessoas o sentimento união para bonificação em algo, no acúmulo de capital (QUIJANO, 2005, p. 132). A dificuldade de um objetivo comum na Venezuela e outros países latinos, por terem aspectos sociais de estilo colonial ainda no século XIX, intensificaram a necessidade da construção de imagens nacionais, símbolos que aproximariam seus cidadãos à Nação, tendo em vista o déficit político-social.
Segundo Franciele dos Santos Rodrigues
[1], A “Pequena Veneza” utilizou, principalmente, do Heroísmo como ferramenta romântica de fomentação de espírito nacional, tendo em vista a falta de conjuntura para nacionalizar o povo. Os narradores desse discurso optaram por se debruçar em cima de personalidades que representavam a libertação do país do colonialismo espanhol, e depois colombiano, já que a Venezuela fazia parte da Grande Colômbia. Esta é uma estratégia muito utilizada. O indivíduo externo como inimigo une a população em um interesse, no de se salvar da ameaça.
Simon Bolívar é a grande personagem escolhida para ser a figura do pensamento nacional venezuelano, e muito utilizado pelo governo chavista. A própria mudança de nome oficial do Estado para República Bolivariana da Venezuela expressa a estratégia política de uso de um símbolo criado para representar a nação venezuelana. Coloca-se características das mais diversas para fomentar a emoção. Segundo Roland Bleiker, teórico estético, é a partir de imagens bem construídas que se manipula o pensamento, a vontade e o sentimento de agentes sociais para atribuí-los a interesses de certos atores políticos. Nesse sentido, a arte das figuras elaboradas têm papel fundamental em qualquer construção nacional, por dispor no discurso artefatos que levam a catarse de seus consumidores.
Com a subida ao poder do governo de esquerda de Hugo Chávez em 1999, a ameaça externa se tornou uma boa tática. Por deter as maiores reservas de petróleo do mundo, a Venezuela é uma região do globo de grande tensão geopolítica e de vários interesses internacionais pautados nela. Desde o final de o século XIX com a política da Doutrina Monroe, a região do caribe já se tornara extensão dos interesses estadunidenses, e em 1999, os Estados Unidos estavam passivos a se verem constrangidos na região.
A partir daí, a Venezuela usou cada vez mais a ameaça externa como manobra de coesão interna. A imagem demonizada do imperialismo estadunidense no continente sul-americano e no país cria o sentimento de unificação da sociedade venezuelana. Isto contribui positivamente para articulação político-social.
A relação estabelecida entre os independentistas e a população não branca na América Latina, portanto, na Venezuela é conflitante desde o início. Logo se percebe que não há convergência de interesses entre esses estratos sociais, sendo a elite branca muito mais próxima culturalmente e intelectualmente das metrópoles do Velho Continente. (QUIJANO, 2005, p. 121)
Não coincidentemente, a história venezuelana é marcada por uma série de golpes na primeira metade do século XX, mas sofre uma grande mudança a partir de 1958, com a eleição de Betancourt para a presidência. Essa mudança foi o Acordo de Punto Fijo, no qual a elite branca decide empreender uma política de apaziguamento e conciliação (VALENTE, 2012, p. 48). Punto Fijo é o fenômeno que demonstra com mais nitidez a divisão entre elite branca e população indígena, negra e mestiça; no qual a conciliação se dá entre a elite branca e pela elite branca. O que acarreta falta de coesão entre as partes da sociedade do país para formação de identidade.
Um dos triunfos do jogo político de Chávez foi a formação acadêmica militar, a qual deu aos seus soldados uma visão crítica sobre as relações de poder dentro da Venezuela (VALENTE, 2012, p.161). O uso do termo nacionalismo por parte da elite branca já não poderia ter o mesmo sentido que o utilizado pelos soldados de baixa patente e pela população marginalizada. Aqui o nacionalismo que aflorou não permitia um governo de concessões, mas de reconstrução intelectual, cultural e econômica, a partir da descolonização da mente.
Considerações finais
O passado da América Latina não conjecturou um bom tabuleiro para a criação de uma identidade sólida na Venezuela. O sistema colonial deixou cicatrizes dentro da sociedade venezuelana, como a falta de democracia política, de facto, e democracia social, devido à desigualdade de acesso aos meios de produção – a terra, o principal no século XIX, período mais representativo na tentativa de construção de ideal nacional – e manutenção do sistema colonial social, o que não integrava a população daquele território à sociedade política venezuelana.
“Desse modo, impôs-se uma sistemática divisão racial do trabalho. Na área hispânica, a Coroa de Castela logo decidiu pelo fim da escravidão dos índios, para impedir seu total extermínio. Assim, foram confinados na estrutura da servidão. Aos que viviam em suas comunidades, foi-lhes permitida a prática de sua antiga reciprocidade – isto é, o intercâmbio de força de trabalho e de trabalho sem mercado – como uma forma de reproduzir sua força de trabalho como servos. Em alguns casos, a nobreza indígena, uma reduzida minoria, foi eximida da servidão e recebeu um tratamento especial, devido a seus papéis como intermediária com a raça dominante, e lhe foi também permitido participar de alguns dos ofícios nos quais eram empregados os espanhóis que não pertenciam à nobreza. Por outro lado, os negros foram reduzidos à escravidão.” (QUIJANO,2005, p.118)
Dessa forma, a tentativa de evocar um nacionalismo na Venezuela não conseguiu lograr de forma duradoura suas pretensões, pois suas premissas esbarram nuclearmente com a colonialidade ainda presente da América Latina como um todo. A unidade nacional na Venezuela não é possível porque além de conflitantes com os interesses da população, os da elite branca converge de forma cultural, intelectual e econômica com os interesses dos Estados centrais hoje, metrópoles coloniais do passado.
Chávez não previu que mesmo mobilizando setores estratégicos do Estado, como os militares, não conseguiria quebrar o laço fortificado durante séculos da elite com a sua noção de superioridade frente aos povos que compõem a pluralidade da América Latina. Um projeto nacionalista significa o rompimento com todo o ideal de Estado-Nação previsto pela intelectualidade europeia, não só pela peculiaridade histórica do Hemisfério Sul, mas por que não há a unidade racial que motivou a unificação dos reinos europeus em Estados. Importante ressaltar que não cabe solucionar a questão através da inferiorização de um povo perante outro, mas pela junção dos povos.
“Consequentemente, é tempo de aprendermos a nos libertar do espelho eurocêntrico onde nossa imagem é sempre, necessariamente, distorcida. É tempo, enfim, de deixar de ser o que não somos.” QUIJANO, Aníbal. “Colonialidade do poder, Eurocentrismo e América Latina”, Buenos Aires, 2005.
Referências bibliográficas
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BATISTA, Paulo Nogueira. O Consenso de Washington: a visão neoliberal dos problemas latino-americanos. Programa Educativo Dívida Externa – PEDEX, Caderno Dívida Externa, n. 6, 2. ed., nov. 1994
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QUIJANO, Aníbal. A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. In: QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, Eurocentrismo e América Latina. Buenos Aires: CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, 2005. p. 117-142. Disponível em: <http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/clacso/sur-sur/20100624103322/12_Quijano.pdf>. Acesso em: 20 ago. 2018.
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RODRIGUES, Francilene dos Santos. A Construção da Nação e da Identidade Nacional no Pensamento Social Brasileiro e Venezuelano. In: XIV CONGRESSO BRASILEIRO DE SOCIOLOGIA, 14., 2009, Rio de Janeiro. Anais… . Rio de Janeiro: Xiv Congresso Brasileiro de Sociologia, 2009. p. 2 – 18.
[1] Pesquisadora da UFRR e autora do artigo A Construção da Nação e da Identidade Nacional no Pensamento Social Brasileiro e Venezuelano, apresentado no XVI Congresso Brasileiro de Sociologia de 2009, no Rio de Janeiro.
Bruno Gonçalves é graduando em Relações Internacionais na Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Haryel Alves Azevedo de Carvalho é graduanda em Relações Internacionais na Universidade Federal do Rio de Janeiro, pesquisadora do Laboratório Oricellari do Instituto de Relações Internacionais e Defesa da UFRJ, sobre Política Internacional na América.