O preço da diplomacia da “solidariedade religiosa”: Índia entra em crise com Turquia e Malásia por declarações sobre a Caxemira
Volume 6 | Número 65 | Out. 2019
João Miguel Villas-Bôas
Após declarações pró-Paquistão – na questão da Caxemira – feitas pelo presidente da Turquia, Tayyp Erdogan e pelo primeiro ministro da Malásia, Mahathir Mohamad, durante discurso na 74ª Assembleia Geral das Nações Unidas abriu uma crise com a Índia. Esta deve cancelar um acordo bilionário (US$2.3 bi) com o estaleiro turco Anadolu e restringir a importação de alguns produtos malaios, como óleo de palma.
Eis as palavras do premier turco:
Para que o povo da Caxemira busque um futuro seguro junto com seus vizinhos paquistaneses e indianos, é imperativo resolver o problema através do diálogo e com base na justiça e na equidade, mas não através de colisões (ERDOGAN apud GUNERIGOK, 2019, online, tradução nossa)
O primeiro ministro paquistanês, Imran Khan expressou em seu Twitter total apoio a Erdogan e declarou que “a Índia vai provocar um banho de sangue na região” (KLUG; RIECHMANN, 2019). Todavia, a declaração mais ácida veio do primeiro ministro malaio, que acusou a Índia de ter “invadido” e “ocupado” a Caxemira. É importante recordar que no dia 05 de agosto deste ano o governo indiano revogou o artigo 370 – que garante certa autonomia à região – da Constituição do país elevando os ânimos e as críticas por parte de uma série de países.
Com efeito, a Índia não tomou nenhuma medida concreta contra a Malásia, porém, com a Turquia sim. O acordo cancelado faz parte do projeto FSS (Fleet Suport Ships) que selecionou a empresa turca para cooperar com o estaleiro indiano Hindustan Shipyard Limited (HSL) na construção de cinco navios auxiliares. A contribuição da empresa turca seria no desenvolvimento do modelo da embarcação, bem como na assistência técnica (RAGHUVANSHI, 2019). Porém, o rompimento do acordo pode significar uma crise ampla que contamine qualquer tipo de cooperação ou negócio bilateral no campo da defesa.
Outro fator que contribuiu para o cancelamento da parceria foi a participação da empresa turca no fornecimento de quatro convertas antissubmarino ao Paquistão. Para o governo indiano isto se configura como um problema de segurança nacional, haja vista a presença da mesma empresa que forneceu tecnologia e suporte ao país rival se estabelecer por tempo indeterminado em solo indiano.
De todo modo, a reação indiana foi além do cancelamento do contrato naval. O primeiro ministro Narendra Modi aproveitou o ocorrido para declarar apoio à integridade e unidade territorial de Chipre em um claro aviso à Turquia, que ocupa a região norte do país mediterrâneo. Há, inclusive, a possibilidade de uma restrição à importação de bens turcos, segundo fontes do governo indiano. Porém, é necessário aguardar os desdobramentos dos fatos para saber se reação do governo chegará a este ponto.
No caso da retaliação indiana à Malásia, o governo Modi pretende substituir as importações de óleo de palma do país muçulmano pelo de outros países, tais como Argentina e Indonésia. Vale lembrar que a Índia é o maior importador de óleos comestíveis e, até então, o maior comprador de óleo de palma malaio em 2019 (AHMED; JADHAV, 2019).
O imbróglio diplomático e geopolítico ilustra bem a sensibilidade da questão. Os Estados devem ter, e no caso das potências médias como a Turquia, provavelmente têm, um corpo diplomático profissional e bem preparado para evitar que discursos e declarações presidenciais causem danos aos interesses nacionais. Não obstante, a diplomacia presidencial ocupa um lugar de destaque na estratégia internacional de alguns países. Ao declarar apoio ao Paquistão em plena Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU), Erdogan e Mahathir expuseram uma insensibilidade acerca do caso em função de uma solidariedade político-religiosa pouco pragmática. Tal atitude pode custar caro e comprometer as relações bilaterais entre a Índia e os países muçulmanos.
Talvez, a atitude de Erdogan e Mahathir abra uma fissura no potencial de cooperação bilateral entre os países e comprometa inclusive a atuação em causas comuns em fóruns multilaterais como a ONU ou mesmo Organização Mundial do Comércio (OMC). Não se pode esquecer que a Caxemira é um tema fundamental para os interesses nacionais indianos e que o país trata a região como zona ocupada por estrangeiros (no caso Paquistão e China).
Os desdobramentos diplomáticos devem se sobrepor às pressões político-econômicas, pois os riscos de um aprofundamento da crise são consideráveis. Caso Turquia e Malásia, países muçulmanos, resolvam adotar este tipo de retórica religiosa podem comprometer os ganhos em um mundo, cuja estrutura comercial é cada vez mais globalizada e pragmática. A Índia adota uma postura bastante crítica quanto ao Paquistão, declarando-o Estado terrorista e agindo com firmeza contra a negligência da comunidade internacional em reconhecer tal status. A solidariedade político-religiosa pode custar o acesso a um dos maiores mercados mundiais e a perda das relações com a terceira maior economia do mundo, no caso, a Índia.
Referências
AHMED, Aftab; JADHAV, Rajendra. Exclusive: India may restrict imports of palm oil, other goods from Malasya – sources. Reuters, 11, Out. 2019. Disponível em: < https://www.reuters.com/article/us-india-malaysia-trade-exclusive/exclusive-india-may-restrict-imports-of-palm-oil-other-goods-from-malaysia-sources-idUSKBN1WQ17Z >. Acesso em: 14/10/2019.
GUNERIGOK, Servet. Erdogan calls for dialogue for solution on Kashmir. Anadolu Agency, 24, Set. 2019. Disponível em: < https://www.aa.com.tr/en/74th-un-general-assembly-2019/erdogan-calls-for-dialogue-for-solution-on-kashmir/1593106 >. Acesso em: 03/10/2019.
KLUNG, Foster; RIECHMANN, Deb. Pakistani Prime Minister Imran Khan Warns of a Possible War With India Over Kashmir. TIME, 25, Set. 2019. Disponível em: < https://time.com/5685613/pakistan-imran-khan-india-war-kashmir/ >. Acesso em: 08/10/2019.
PAUL, Sudeep. Narendra Modi: The Global Campaigner. 04/10/2019. Disponível em: < https://openthemagazine.com/cover-story/narendra-modi-the-global-campaigner/ >. Acesso em: 06/10/2019.
RAGHUVANSHI, Vivek. India targets Turkish shipyard over ties with Pakistan. DefenseNews, 03/10/2019. Disponível em: < https://www.defensenews.com/industry/2019/10/03/india-targets-turkish-shipyard-over-ties-with-pakistan/ > . Acesso em: 06/10/2019.