O fantasma de Bolívar

Volume 6 | Número 57 | Fev. 2019

Por Bernardo Salgado Rodrigues
Parafraseando Karl Marx no contexto europeu do século XIX, em seu clássico livro do Manifesto[1]: “um espectro ronda a América Latina – o espectro de Bolívar.” Tal como a “maldição” que o termo comunismo possui em algumas frações políticas latino-americanas, o termo bolivarianismo possui equidade no caráter pejorativo: toda e qualquer forma de buscar desqualificar alguma ação política que não atenda aos anseios de ditos grupos é taxado de comunismo ou bolivarianismo. 
Neste pequeno excerto, busca-se desmistificar o caráter pejorativo do termo bolivarianismo, devido ao próprio desconhecimento da figura histórica em alguns países, principalmente no Brasil. Simón Bolívar sempre foi uma figura polêmica, contraditória e mal-compreendida. Até mesmo Karl Marx, ao escrever o verbete sobre Bolívar na New American Cyclopaedia, de 1857, o retrata em termos preconceituosos ao repudiá-lo, comparando-o com Napoleão Bonaparte e o taxando de manipulador e ditador, afirmando que “o que Bolívar realmente almejava era erigir toda a América do Sul como uma única república federativa, tendo nele próprio seu ditador.” (MARX, 2008, p.53)[2]
No início do século XIX, as repúblicas latino-americanas ganharam sua independência como parte de um processo político internacional bastante complexo, que teve influência da independência das treze colônias norte-americanas, da Revolução Francesa, da revolta dos escravos no Haiti e, principalmente, das Guerras napoleônicas e das invasões na Península Ibérica. Destarte, é consenso na historiografia latino-americana que os movimentos emancipatórios do início do século XIX possuem relação direta com os acontecimentos europeus. Com a crise da monarquia espanhola em 1808 − “que deixou a nação sem nenhum governo cuja legitimidade fosse aceita unanimemente” (BETHELL, 2009, p.119) −, aluta pela independência tem início e dura cerca de dezesseis anos, até a Batalha de Ayacucho, em 1824. 
É neste contexto que surge a figura de Simón Bolívar. Com uma educação liberal e “uma devoção à razão, à liberdade e à ordem, que o acompanhou por toda a vida” (BETHELL, 2009, p.65), visualizava que nenhuma vitória parcial das nascentes repúblicas sul-americanas estava garantida enquanto as tropas espanholas continuassem atuando no continente. Deste fato advém a necessidade de uma gestão libertadora continental, um dos pilares de seu pensamento. 
A união dos governos dos povos da América se apresenta como uma consequência da guerra pela independência e como garantia de consolidação da vitória sobre a Espanha, mas, concomitantemente, como necessidade da vontade política dos novos governantes das repúblicas recém-libertadas. “Direi ao senhor o que pode nos tornar capaz de expulsar os espanhóis e de fundar um governo livre: é a união, sem dúvida; mas essa união não nos chegará por milagres divinos, e sim por efeitos sensíveis e esforços bem dirigidos.” (BOLÍVAR, 1992, p.74)
A Cartada Jamaica, escrita por Bolívar em 1815, reitera as críticas às instituições adotadas pelos regimes anteriores, analisando o passado da América Latina e suas impressões sobre os acontecimentos da época. Neste texto, surge o conceito de “Pátria Grande”, “la más grande nación del mundo, menos por su extensión y riqueza que por su libertad y gloria.” (BOLIVAR, 2013, p.68), que se refere ao sentido de comunidade, de pertencimento comum das nações da América Latina, do imaginário coletivo de uma possível unidade política, de uma consciência de solidariedade continental[3].
Em 1824, há uma convocação ao Congresso do Panamá, a Primeira Assembléia Internacional de Estados Americanos, assinado pelo Libertador em 7 de dezembro de 1824, dois dias antes da batalha de Ayacucho. Marco mais perceptível do pensamento integracionista de Bolívar, a chamada para o Congresso do Panamá ilustra o imperativo visualizado por ele na consecução de um projeto político de união dos interesses e das relações entre as repúblicas americanas.

Entablar aquel sistema y consolidar el poder de este gran cuerpo político, pertenece al ejercicio de una autoridad sublime que dirija la política de nuestros gobiernos, cuyo influjo mantenga la uniformidad de sus principios, y cuyo nombre sólo calme nuestras tempestades. Tan respetable autoridad no puede existir sino en una asamblea de plenipotenciarios, nombrados por cada una de nuestras repúblicas y reunidos bajo los auspicios de la victoria obtenida por nuestras armas contra el poder español. (BOLIVAR, 2013, p.147-148)

Devido às dificuldades de transporte da época e à guerra, o projeto da realização do Congresso levou de “1821 até 1826, data em que se conseguiu, finalmente, realizar a reunião.” (RAMOS, 2012, p.287) O Congresso constituiu um antecedente da futura cooperação interamericana e foi assinado, no final do mesmo ano, um Tratado de União, Liga e Confederação perpétuo entre os quatro estados latino-americanos presentes (México, a Federação Centro-Americana, a Gran Colombia e o Peru). Entretanto, o congresso se mostrou uma ilusão para as condições materiais da América recém-independente, um indicativo da falta de condições para uma cooperação desse gênero na época. Apesar da importância simbólica do Congresso do Panamá para o pensamento bolivariano e integracionista, o desfecho da reunião foi aquém das expectativas. O congresso se dissolveu, fazendo com que, nos anos vindouros, “os climas benignos para a unidade latino-americana ficaram desaparecidos por muito tempo.” (RAMOS, 2012, p.304)
Assim, como um dos pais fundadores das nações independentes da América Latina, para Bolívar (1992, p.31):

uma única deve ser a pátria de todos os americanos (…) nos apressaremos, com o mais vivo interesse, para estabelecer, de nossa parte, o pacto americano que, formado de todas as nossas repúblicas um corpo político, apresente a América ao mundo com um aspecto de majestade e grandeza sem paralelo nas nações antigas. 

Bolívar encarou a necessidade de alcançar um desenvolvimento e integração para a América Latina em seu tempo histórico, através do estabelecimento da ordem interna e da estabilidade política. Ele influenciou, posteriormente e até a atualidade, os intérpretes e pensadores latino-americanos, compreendendo a necessidade de ruptura com a dependência histórico-estrutural e a dominação dos centros de poder ao longo da história. Assim, seu pensamento vem pautando as discussões acerca dos projetos de integração regional de forma autônoma e soberana fundada na aliança das nações-irmãs para defesa e destino comuns. 
Para os defensores da liberdade, igualdade e da Taça Libertadores da América (aos amantes de futebol), é um contrassenso intitular-se “anti-bolivariano”: ou se desconhece o papel político de Bolívar, ou a defesa de tais princípios é mera retórica e visa um projeto político antagônico. O paralelismo temporal entre os séculos XIX e XXI é significante, uma vez que seguir os preceitos de Bolívar é buscar a segunda independência que falta aos países da América Latina: a independência da soberania econômica (e política) diante de intervenções externas. 
Referências bibliográficas
BETHELL, Leslie (Org.). História da América Latina: da independência a 1870, volume III. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Brasília, DF: Fundação Alexandre de Gusmão, 2009.
BOLÍVAR, Símon. Escritos Políticos. Campinas: Unicamp, 1992.
BOLÍVAR, Simón. Nuestra patria es América: discursos y documentos de Simón Bolívar. Buenos Aires: Punto de Encuentro, 2013.
MARX, Karl. Manifesto Comunista. São Paulo: Boitempo Editorial, 1998.
MARX, Karl. Simón Bolívar por Karl Marx. São Paulo: Martins, 2008.
RAMOS, Jorge Abelardo. História da nação latino-americana. 2. ed. Florianópolis: Insular, 2012.
[1]MARX, Karl. Manifesto Comunista. São Paulo: Boitempo Editorial, 1998. 
[2]Há, neste ponto, quem seja contrário e favorável à opinião de Karl Marx: Aricó (MARX, 2008, p.7-31) afirma que as explicações erráticas de Marx tenham se fundamentado nas insuficiências e na parcialidade das fontes utilizadas, num eurocentrismo e numa avaliação política que o induziu a interpretar Bolívar como autoritário e bonapartista, uma incompreensão do movimento em seu conjunto: “Marx deixou de levar em conta o que seu próprio método o impelia a buscar em outros fenômenos sociais que ele analisou: a dinâmica real das lutas de classes ou das forças atuantes.” (MARX, 2008, p.23) Em contrapartida, Rosenmann e Cuadrado (MARX, 2008, p.59-76) criticam o próprio misticismo de Bolivar na Venezuela atualmente, uma visão idealizada que o próprio Marx busca destruir. Para eles, Bolívar pertencia à elite crioula, não democrática, monárquica e aristocrática: “Bolívar foi um aristocrata que, por trás das palavras ‘Constituição’, ‘Federalismo’ e ‘Democracia Internacional’, queria apenas conquistar a ditadura ‘mesclando a força e a intriga’. Separatista, sim; democrata, não.” (MARX, 2008, p.74) A nosso ver, uma visão elitista e pós-moderna dos autores, que remete ao “lugar de fala” tão em voga na atualidade. 
[3]“Es una idea grandiosa pretender formar de todo el Mundo Nuevo una sola nación con un solo vínculo que ligue sus partes entre sí y con el todo. Ya que tiene un origen, una lengua, unas costumbres y una religión, debería, por consiguiente, tener un solo Gobierno que confederase los diferentes estados que hayan de formarse; mas no es posible, porque climas remotos, situaciones diversas, intereses opuestos, caracteres desemejantes, dividen a la América. ¡Qué bello sería que el istmo de Panamá fuese para nosotros lo que el de Corinto para los griegos! Ojalá que algún día tengamos la fortuna de instalar allí un augusto congreso de los representantes de las repúblicas, reinos e imperios a tratar y discutir sobre los altos intereses de la paz y de la guerra, con las naciones de las otras partes del mundo.” (BOLIVAR, 2013, p.74-75)

Diálogos Internacionais

Divulgação científica de Relações Internacionais, Defesa e Economia Política Internacional ISSN 2596 2353