Volume 4 | Número 40 | Set. 2017
por Vinícius Junger dos Santos
Com bancos comerciais e bancos centrais sendo impactados pelas criptomoedas, é claro que o Estado não poderia deixar de ser afetado. A diminuição da capacidade de realizar políticas financeiras e monetárias para a população como um todo pode ser considerada um dos pilares sobre os quais o Estado se estrutura (KAVANAGH; MISCIONE, 2015). Porém, como veremos, os efeitos dessas novas moedas sobre o Estado não se limitam à capacidade de alterar as políticas financeiras, mas também afetam seus outros pilares.
As criptomoedas crescem em seu uso, com caixas de bitcoins e até de litecoins espalhando-se pela Ucrânia1, Malta2, Kosovo3, Canadá, Estados Unidos e Reino Unido4, com o Bitcoin sendo reconhecido por 28% dos russos5 e por 97% dos indianos envolvidos com a indústria6. Na China, o papel-moeda está se tornando obsoleto7; mais de 260 mil lojas começam a aceitar bitcoins no Japão8; e as trocas em bitcoin vêm experimentando crescimento rápido na África9. Quando esses mercados começarem a se integrar com pagamento via bitcoins, pode ocorrer o primeiro abalo em outro pilar do Estado: dificuldades crescentes em realizar análises estatísticas para guiar as políticas internas e externas. O discurso de Gareth Murphy, diretor do banco central irlandês na conferência BitFin em 2014 é exemplar:
“O ponto de partida para toda a gestão econômica é a mensuração de sua atividade. A maioria dos países possui pelo menos uma agência estatística oficial encarregada por essa responsabilidade. O uso mais generalizado de uma moeda virtual significaria que as agências estatísticas teriam que coletar dados sobre a atividade em moedas virtuais. Caso contrário, medidas de atividade econômica não seriam completas. Não devemos subestimar a gama de fins para os quais as medidas contábeis nacionais são usadas na administração das economias. A esse respeito, a completude e a integridade dessas estatísticas são vitais.” (MURPHY, 2014).
O Bitcoin, cujas criptomoedas em sua maioria são baseadas, não foi pensado de forma a facilitar a integração técnica com os bancos de dados do Estado. Mesmo que se conseguisse alcançar uma quebra suficientemente representativa de pseudônimos para identificar as pessoas envolvidas nas transações, ainda há a barreira técnica de ser capaz de trabalhar com os dados guardados no Blockchain (MURPHY, 2014). Os impactos de uma economia mista de criptomoedas com moedas fiat se daria não só no cálculo de taxas de juro e câmbio, mas também em medidas básicas sobre riqueza e distribuição de renda dentro do país. E o impacto seria ainda maior à medida que mais usuários utilizarem criptomoedas para efetuar compras internacionais.
Um dos maiores impactos sobre a estrutura estatal se daria na evasão de impostos possibilitada pela troca em criptomoedas, especialmente em sociedades com enorme desigualdade social, nas quais uma grande parte da população precisaria ser fiscalizada e teria consideráveis incentivos financeiros para não aderir à taxação, as criptomoedas facilitam em demasia processos de evasão de impostos (MURPHY, 2014). Criptomoedas com algoritmos especializados em garantir anonimato aparecem aos montes, são atualizadas e ganham cada vez mais valor no mercado: moedas como ZCash, Monero, Dash, PIVX e XSPEC têm se mantido valorizadas as três primeiras configuram-se entre as 13 criptomoedas com maior preço em dólares no momento desta pesquisa10.
Sem um fluxo regular de impostos, o Estado pode encontrar dificuldades em manter pagamentos para o seu corpo burocrático e forças armadas, abalando assim os pilares da burocracia e monopólio da violência. Visto que qualquer servidor público, político, funcionário ou professor, corpo de segurança, militar ou policial, vive de rendimentos derivados de impostos, e as criptomoedas podem diminuir significativamente essefornecimento, o Estado poderia precisar escolher entre diminuir o corpo burocrático ou militar proporcionalmente ao corte na entrada de impostos, ou mantê-los com emissões crescentes de moedas fiat pelo Banco Central. Enquanto a primeira opção em si representa um baque direto na capacidade de ação do Estado, a segunda opção poderia ocasionar em maiores quantidades de moeda fiat circulando, sua crescente desvalorização e servidores públicos e corpos militares ganhando em moedas com cada vez menor poder de compra. Fica clara a possibilidade de os efeitos sobre tais pilares do Estado serem os mesmos nas duas opções, só que na segunda, tal efeito seria em longo prazo, contribuindo para maior abandono das moedas fiat, mas tornando maior a janela de tempo necessária para qualquer tentativa de intervenção pesada do Estado nas criptomoedas. Para a burocracia estatal propriamente dita, a situação pode ser mais complicada, visto que contratos inteligentes associados à tecnologia blockchain conseguem padronizar relações sociais de forma completamente transparente, impossíveis de serem alteradas e a custos mínimos, prometendo serem capazes de realizar diversas funções monopolizadas pela burocracia estatal (KAVANAGH; MISCIONE, 2015).
O penúltimo impacto é a diminuição na capacidade de operacionalizar a legislação. O Bitcoin se mostrou um desafio ao sistema legal muito rapidamente, visto que sua explosão aconteceu em 2011, dois anos após seu surgimento, quando nasceu o primeiro grande mercado desregulado da internet: a Rota da Seda, ou Silk Road, hospedada em um servidor escondido pela rede TOR, a qual somente pessoas razoavelmente safas da Internet conseguiam acessar (FILIPPI; LOVELUCK, 2016). A Rota da Seda transacionava diversos tipos de produtos comuns, além de uma impressionante variedade de drogas, tendo movimentado apenas 1,2 milhões de dólares em bitcoins (YEE, 2014), até ser desmantelada e seu operador preso, que foi identificado por não ter preservado seu pseudônimo. Apesar do valor moderado das transações, a Silk Road foi prova suficiente para as autoridades de que criptomoedas são capazes de manter mercados paralelos em escala global. O ponto é que, naquela época, a os mercados paralelos ainda eram somente estruturados em arquitetura cliente-servidor, o que possibilitava ações de busca e apreensão, como foi o caso da Rota da Seda. O que acontece agora que estão surgindo mercados descentralizados, anônimos e com arquitetura P2P, ou seja, inviáveis de serem retirados do ar?11 De fato, não foi nem necessário começar a operacionalizar sobre arquitetura P2P para os mercados desregulados pelo Estado começassem a surgir em peso12, muito embora as autoridades não tenham efetuado eficiente trabalho em encontrar e prender operadores e clientes.
Outro impacto que não vai ser abordado em profundidade aqui, visto que se torna de simples compreensão após toda esta discussão, é a maior facilidade de lavagem de dinheiro. Com criptomoedas variando em questão de anonimato, torna-se relativamente fácil realizar operações de lavagem de dinheiro com compra e venda de moedas digitais, bastando que o usuário não relacione seu pseudônimo a si mesmo ou que utilize criptomoedas voltadas para o anonimato (YEE, 2014). Os esforços para se manter anônimo são proporcionais aos ganhos que se teria com qualquer atividade ilegal com criptomoedas, no entanto, os esforços das forças de seguranças também crescem proporcionalmente. Sendo o caso de um crescente uso das criptomoedas, e também crescente uso para atividades ilegais, mesmo que não houvesse qualquer impacto sobre a estrutura estatal, seria necessário um contingente ou eficiência também crescente para realizar tantas investigações.
“Se a moeda é um instrumento do Leviatã que reduz a violência de todos contra todos, então uma pergunta interessante é o que acontece se esse argumento Hobbesiano for contornado por moedas como Bitcoin que não dependem do Estado de forma alguma?” (KAVANAGH; MISCIONE, 2015).
O último grande impacto das criptomoedas sobre o Estado é o provável questionamento sobre a necessidade do sistema estatal atual, a ser feito pelos cidadãos não satisfeitos com a atuação dos mesmos. As criptomoedas, junto com outras aplicações de suas tecnologias, proporcionam um cenário onde seria possível viver com cada vez mais liberdade econômica (criptomoedas), serviços de padronização (contratos inteligentes)13, serviços com segurança acessível (Blockchain)14 e maior participação política direta, por organização em arquitetura ponto-a-ponto (P2P), sem ter de lidar com os percalços de conviver com corrupção sistêmica, impostos abusivos e mal aproveitados, além de não ver suas vontades políticas acontecerem por causa de sistemas de representatividade voltados para manutenção de elites no poder. Não é difícil prever uma redução significativa na legitimidade de alguns processos no sistema estatal, não havendo mais necessidade de tais processos serem monopolizados pelo mesmo.
Todos esses cenários partem do pressuposto de as criptomoedas continuarem a ser adotadas em larga escala por pessoas em todo o mundo e os Estados escolherem o embate, frente à adoção e à adaptação. As estratégias de regulamentação, sua operacionalização e, principalmente, a reação das pessoas a elas, serão fatores primordiais para definir se a relação tenderá para uma harmonização entre os atores envolvidos ou para uma série de disputas tecnológicas, econômicas e sociais.
Referências
FILIPPI, Primavera de; LOVELUCK, Benjamim. The Invisible Politics of Bitcoin: Governance Crisis of a Descentralized Structure. Internet Policy Review, 2016, v. 5.
KAVANAGH, Donncha; MISCIONE, Gianluca. Bitcoin and Blockchain: a coup d’Etat in Digital heterotopia? Dublin: University College Dublin Library, 2015. Disponível em < http://researchrepository.ucd.ie/bitstream/handle/10197/6841/Heterotopia_CMS.pdf?sequence=1>. Acesso em <11/08/2017>.
MURPHY, Gareth. ‘Address by Director of Markets Supervision Gareth Murphy at the Bitfin 2014: Digital Money and the Future of Finance Conference’. Dublin: BitFin, 2014. Disponível em < http://bitcoinsinireland.com/irish-central-banks-gareth-murphy-transcript-from-the-bitfin-conference-in-the-rds-on-3rd-july-2014/>. Acesso em <15/08/2017>.
YEE, Andi. Internet Architecture and The Layer Principle: a conceptual framework for Regulating Bitcoin.
Internet Policy Review: Journal on Internet Regulation, 2014. Disponível em <https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2483964>. Acesso em <11/08/2017>.
1 150 terminais para serem instalados ainda em 2017: https://news.bitcoin.com/150-bitcoin-atms-ukraine/ 2 O primeiro terminal causou alerta de autoridades financeiras: https://news.bitcoin.com/maltas-first-bitcoin-atm-triggers-warning-from-financial-services-authority/ .
3Com os caixas sendo instalados a despeito dos protestos do Banco Central: https://news.bitcoin.com/kosovo-first-bitcoin-atm-central-banks-warning/
4 Inovando com os primeiros terminais de Litecoin: https://news.bitcoin.com/litecoin-atms-proliferate-globally/
5 De acordo com a pesquisa da National Agency for Financial Studies disponível em: https://nafi.ru/analytics/kriptovalyuty-eshchye-ne-dengi-budushchego-no-uzhe-modnoe-yavlenie/ com análise em https://news.bitcoin.com/survey-russians-bitcoin/.
6 De acordo com a pesquisa do PHD Chamber of Commerce and Industry com análise em https://news.bitcoin.com/indian-multi-industry-survey-bitcoin/.
7 Com os pagantes utilizando moedas digitais, créditos de WeChat e Criptomoedas: https://www.nytimes.com/2017/07/16/business/china-cash-smartphone-payments.html
8 Todas usuárias de um aplicativo que permite pagamentos e conversão chamado CoinCheck: https://news.bitcoin.com/rollout-of-260000-bitcoin-accepting-stores-in-japan-begins/
9 Em especial na África do Sul e Nigéria: https://news.bitcoin.com/bitcoin-experiences-rapid-growth-africa/.
10 Cotação das criptomoedas pode ser vista em diversos domínios como: https://coinmarketcap.com/.
11 Embora ainda podem seguir as leis ou ética estatal, como discutido, o avanço das criptomoedas na economia diminui cada vez mais os incentivos para isso: https://particl.io/.
12 Com pouca pesquisa pode-se acessar domínios e descobrir quais foram retirados do ar, quais estão com suspeita de estarem sendo utilizados como isca por policiais e qual a taxa de aprovação dos sites: https://www.deepdotweb.com/dark-net-market-comparison-chart/.
13 Algumas criptomoedas possuem carteiras programáveis e podem realizar transações automaticamente, de acordo com a programação do usuário. São capazes não só de gerir seus fundos e realizar aplicações, como um banco, mas também podem interagir de forma programada com outros serviços automatizados que utilizem a mesma moeda e tecnologia blockchain.
14 Sistema de registros descentralizado, criptografado, totalmente transparente e até hoje não hackeado.