Dossiê Malvinas: O imediato pós Guerra

Volume 4 | Número 42 | Nov. 2017

Por Bernardo Salgado Rodrigues
Latuff Cartoons

A Guerra das Malvinas teve início em 2 de abril − quando as forças argentinas desembarcaram nas ilhas − até 14 de junho de 1982 − quando se deu a rendição, cujo saldo da guerra para a Argentina foi de quase 700 mortos e 1.300 feridos (SADER; JINKINGS, 2006, p.738). A Guerra foi conduzida pelo então presidente da Argentina, Leopoldo Fortunato Galtieri, que, uma vez que a ditadura começava a demonstrar sinais de desgaste (crise econômica, pressão internacional, por causa da violação dos direitos humanos, e pressão nacional, com a criação das Mães da Praça de Maio), decidiu partir para uma ofensiva pela permanência no poder, sob o pretexto de criação de um inimigo externo e promoção da coesão nacional. Entretanto, a derrota nas Malvinas acabou engendrando a aceleração do processo de redemocratização no país.
No plano internacional, os países europeus apoiaram o Reino Unido em sua reivindicação e impuseram como sanção um embargo comercial à Argentina − inclusive, fortalecendo o governo Thatcher durante toda a década de 1980 após a vitória britânica, uma das grandes responsáveis pelas reformas liberais no mundo e da Comunidade Europeia. Os países da América Latina e do Terceiro Mundo em geral apoiavam a Argentina, ainda que esse apoio não redundasse em ajuda logística. Ou seja, tinha-se uma situação totalmente paradoxal: “as democracias ocidentais, aliadas ideológicas da ditadura, convertiam-se em inimigos, enquanto os países do Terceiro Mundo, que o governo militar repudiava como berço do socialismo e do comunismo, levantavam-se como seu único respaldo” (SADER; JINKINGS, 2006, p.738).

Voou pelos ares o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca, assinado no Rio de Janeiro em 1947, para uso privado dos Estados Unidos. É um simples papel molhado. A Doutrina Monroe foi soterrada pelos próprios norte-americanos com poucas honras. Ficou destruída também a “Doutrina da Segurança Nacional”, a teoria das “fronteiras ideológicas” e o mito dos “valores do Ocidente”. Agora, os militares argentinos sabem que os valores do Ocidente têm cotação na Bolsa de Londres. A integração argentina ao Terceiro Mundo ensinará às Forças Armadas que, se os europeus e norteamericanos gozam de um modo de vida ocidental, os latino-americanos padecem de um modo de vida acidental. Tais lições têm sido recolhidas nas águas ensanguentadas do Atlântico Sul e ninguém poderá esquecê-las. (RAMOS, 2012, p.558-559)
Os Estados Unidos, que haviam condenado a ação argentina e inclusive enviado apoio logístico e de inteligência auxiliar, “uma solidariedade material e política” (SADER; JINKINGS, 2006, p.1036), teve que realizar modificações profundas na sua estratégia na América Central, segundo um informe da CIA para o Conselho de Segurança da Casa Branca.
De fato, segundo o informe, o compromisso assumido pelo general Galtieri de enviar instrutores militares para hostilizar a Nicarágua e El Salvador se rompeu pela conduta dos Estados Unidos ao apoiarem a Inglaterra. Ditos instrutores, disse o informe da CIA, foram retirados e a heroica república de Sandino experimentou assim o primeiro benefício da luta nas Malvinas. Os Estados Unidos tiveram de assumir por si mesmos e abertamente a defesa da sua política agressiva para a América Central. O abraço de Costa Méndez e Fidel Castro em Havana, por outro lado, simbolizou a reorientação, não ideológica, porém política, que a Argentina da ditadura militar se via obrigada a adotar em razão da guerra. (RAMOS, 2012, p.559)
Para a Argentina, a Guerra das Malvinas foi a última tentativa do regime militar em manter-se no poder, promovendo a aliança do Reino Unido com os Estados Unidos contra o governo militar argentino. Desta forma, o imediato pós-Guerra teve como ponto principal o início da contagem regressiva para o governo militar, no qual o Exército retira Galtieri da presidência e designa o general Raynaldo Benito Bignone, com a finalidade de preparar as bases para a convocação das eleições, envolto no espectro das reformas neoliberais em voga na década de 1980.
Desde a restauração da democracia, em 1983, a alternância de governos girou em torno do radicalismo e do justicialismo. O governo de transição foi do radical Raúl Ricardo Alfonsín, mas a chegada de Carlos Menem à presidência, em 1989, trouxe um rearranjo no espectro político argentino. O tradicional bipartidarismo se mantinha, mas com novas alianças no seio da UCR e do PJ. A mais chamativa, e que marcaria o rumo econômico e político argentino, foi a aliança entre o justicialismo e a direita liberal (SADER; JINKINGS, 2006, p.106).
De fato, após a Guerra das Malvinas, os britânicos ficaram responsáveis pela ilha e, dada a sua atual condição, as Malvinas estão elencadas como território ultramarino da União Europeia. Para o Reino Unido, baseando-se no direito à autodeterminação, um dos princípios da Carta das Nações Unidas, não há uma contenda a ser solucionada, uma vez que não há vontade de alteração da gestão atual por parte dos ilhéus. Para a Argentina, mantém-se o seu não reconhecimento das “Falkland” como parceira em negociações, baseado em dois fatos: que a região fora adquirida da Espanha, em 1816, quando da proclamação da independência argentina, e, portanto, pertencente ao seu território, e que o governo britânico do arquipélago, mesmo desde 1833, está baseado em uma ocupação ilegal, que acarretou, com ameaça do uso de força militar, a expulsão da administração argentina, das autoridades e dos colonos, com a determinação de que não mais retornassem.
Em termos geopolíticos, quatro interpretações podem ser realizadas numa análise das consequências nos primeiros anos do pós Guerra das Malvinas: uma geopolítica do imperialismo, uma geopolítica dos recursos naturais, uma geopolítica do Atlântico Sul e uma geopolítica da integração.
No primeiro plano, o conflito apresentou todas as características de uma guerra de descolonização e anti imperialista. Situadas a 480 km da costa argentina e a 14 mil km do Reino Unido, as Ilhas são consideradas prolongamento do território da Argentina, que desde a conquista de sua independência reclama a soberania sobre elas, jamais aceitando a ocupação britânica. Assim como as bases militares na Colômbia e o território ultramarino da Guiana Francesa, as Ilhas Malvinas apontam como uma região de ponta de lança dos interesses internacionais britânicos e estadunidenses, que reforça a importância inglesa na Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), mediante o controle militar do Estreito de Drake e das suas aspirações em relação à Antártida. Tais assertivas são utilizadas como justificativa britânica para investimento em gastos militares na região, inclusive com a realização de manobras militares, no qual a Grã-Bretanha vai gastar £ 280 milhões nos próximos dez anos para reforçar a defesa das Ilhas[1].
No que se refere à geopolítica dos recursos naturais, os britânicos buscam a exploração do petróleo da área malvinense − no qual alguns estudiosos acreditam que a região pode ter aproximadamente 18 bilhões de barris de petróleo (KLARE, 2012, p.63) −, a industrialização do krill (pequeno crustáceo de alto poder proteico, que é uma das maiores reservas mundiais em matéria de alimentação) e o acesso direto a Antártida, cuja disputa territorial e a guerra de matérias-primas estratégicas tende a se acentuar nos próximos anos, uma vez que existem provadas e abundantes reservas de petróleo e de gás, assim como uma enorme riqueza mineral e silvícola.
Ainda, as Ilhas se configuram como uma base de acesso ultramarino europeu no Atlântico Sul, cuja localização a somente 300 milhas (cerca de 483 Km) do Estreito de Magalhães correspondem a uma zona estratégica em termos de circulação marítima dos ingleses, seja pelo Atlântico Sul, Pacífico Sul e Oceano Índico. Nesta discussão ainda está situado o problema da interposição, e consequente falta de entendimento, entre a fronteira marítima argentina e as águas territoriais “britânicas”, que levam em conta a Convenção do Direito do Mar, da ONU, com sua determinação de jurisdição na distancia de 370 Km das costas.
Para os países sul-americanos, a melhor perspectiva geopolítica é a da integração, cuja Guerra das Malvinas “colocava à prova, como num laboratório gigantesco, a solidariedade política, econômica e militar latino-americana com a Argentina” (RAMOS, 2012, p.557). O fato de a ditadura argentina ter sido derrotada concomitantemente à brasileira criou condições para que os dois países voltassem a considerar a necessidade de uma integração econômica. Entretanto, tais negociações vinham desde o Acordo Tripartite entre Argentina, Brasil e Paraguai, de 1979, por ocasião das divergências sobre a construção da represa de Itaipu, até chegarem ao acordo bilateral entre os presidentes Raúl Alfonsín (1983-1989) e José Sarney (1985-1990), ponto de partida da criação do MERCOSUL, em 1991, com a celebração do Tratado de Assunção. Desta forma, no tocante a América do Sul, a interação regional aparece como uma alternativa real e necessária num sistema internacional anárquico, competitivo e hierárquico, cuja força extra-regional com uma presença militar, como é o caso das Malvinas – que possui um soldado para cada 2,5 civis – apresenta-se como um ponto crítico para a estabilidade regional. O apoio dos países da região a demanda argentina é reiterado pelo constante amparo da Unasul em relação a reivindicação argentina e pela CELAC em sua II Cúpula, na Declaração de Havana, em 2014.
Como demonstra Ramos (2012, p.551-552), a partir da experiência da Guerra das Malvinas, a América Latina precisa da união para não se degradar:
Não é o progresso do capitalismo, como aconteceu na Europa ou nos Estados Unidos, o que exige, hoje, a unidade de nossos estados, mas sim a crise profunda e o esgotamento da condição semicolonial que padecemos. […] A guerra das Malvinas, com o fulgor de um relâmpago, ensinou aos latino-americanos que realmente têm uma pátria comum.
Referências
KLARE, Michael. The race for what’s left: The global scramble for the world’s last resources.New York: Picador, 2012.
RAMOS, Jorge Abelardo. História da nação latino-americana. 2. ed. Florianópolis: Insular, 2012.
SADER, Emir; JINKINGS, Ivana (Org.). Latinoamericana: enciclopédia contemporânea da América Latina e do Caribe. São Paulo: Boitempo Editorial; Rio de Janeiro: Laboratório de Políticas Públicas da UERJ, 2006.
[1] https://br.sputniknews.com/mundo/20150324544430/

Diálogos Internacionais

Divulgação científica de Relações Internacionais, Defesa e Economia Política Internacional ISSN 2596 2353