Dos Gurus à intolerância religiosa: uma análise da construção da narrativa da sabedoria oriental nos governos Narendra Modi
Edição Especial: Ásia
Volume 11 | Número 113 | Nov. 2024
Por João Gabriel Campos Barrocas Mattos Zampini
INTRODUÇÃO
O presente artigo tem como objetivo analisar a construção da narrativa da sabedoria oriental na política externa indiana durante os governos de Narendra Modi, atual primeiro-ministro. Partindo das iniciativas culturais adotadas pelos governos anteriores à ascensão de Modi ao poder e da expansão do projeto político de seu partido, o Bharatiya Janata Party (BJP), a pesquisa se debruça sobre a ruptura paradigmática do conceito de secularismo. Desse modo, contrastar-se-á a manutenção de uma imagem internacional ligada à tradição indiana de respeito ao pluralismo cultural frente à expansão de um projeto de poder, que, apesar de exportado por meio noções filosóficas e religiosas de unidade, harmonia e tolerância, continuamente vem promovendo políticas separatistas e de noções estreitas de cidadania no país.
Nesse sentido, a compreensão do projeto político do BJP e das ações governamentais do período coloca-se como fundamental para o entendimento efetivo da dinâmica contemporânea do pluralismo cultural indiano, notadamente marcada pela predominância de elementos hindus e pela crescente intolerância religiosa no país. A análise é conduzida a partir da perspectiva do nacionalismo cultural e de seus transbordamentos na diplomacia cultural, com enfoque no ordenamento filosófico e religioso na projeção de uma imagem global de benevolência e tolerância.
- NACIONALISMO CULTURAL HINDUTVA E O SECULARISMO À MODA BJP
Desde a Independência da Índia, em 1947, e posterior promulgação de sua Constituição, em 1950, a construção da identidade cultural indiana e sua projeção internacional tem sido elaborada a partir de uma série de princípios, os quais, por sua vez, fundamentam o nacionalismo indiano. Dentre os principais conceitos que integram o rol das bases institucionais da democracia indiana, destaca-se o secularismo. Este se conecta com a ideia de que a Índia é uma democracia secular, marcada por um pluralismo cultural e uma diversidade religiosa e que, deste modo, reconhece a aceitação de todas as religiões perante à lei, em consonância com a proteção de minorias religiosas, culturais e políticas (SAHAI, 2019). Nesse sentido, o esforço de construção da unidade nacional indiana perpassou a necessidade de superação das relações comunitárias tradicionais do sistema pré-independência, tal qual o próprio sistema de castas, para a formalização de um nacionalismo cultural, notadamente secular, em uma busca, sobretudo, de fortalecer uma identidade nacional que dispersasse as diferenças religiosas presentes na sociedade. Dessa forma, a criação do nacionalismo cultural secular indiano teve como motor fundamental a necessidade de uma resposta política à modernidade associada à reconfortante promessa de moldar a sociedade futura com base nas tradições (GAUTAM; DROOGAN, 2017; KINNVALL, 2002; MICHAELS, 2004).
Tendo sido seus conceitos moldados a partir dos governos subsequentes à Constituição, as bases teóricas criadas a partir do pensamento do primeiro primeiro-ministro indiano, Jawaharlal Nehru, do Partido do Congresso, possuíam base em filosofias indianas e hindus, tal qual o princípio de Sav Sharma Samabhava, que define que a religião de todos deverá ser respeitada. Ainda que tivesse como base uma Constituição que compreendia a democracia indiana como secular e pluralista, com uma visão de cidadania ligada à territorialidade e à igualdade e respeito, o princípio tinha como objetivo fundamental a união dos diversos grupos hindus presentes no país. Nesse sentido, é basilar que se ressalte que, ainda que o hinduísmo seja compreendido dentro de uma identidade religiosa majoritária na Índia, é composto por uma série de nacionalismos culturais dentro e fora do país, que derivam desde o Hinduísmo Tamil ao Bramanismo (MURTHY, 2010)
Sendo assim, a compreensão da trajetória política do primeiro-ministro Narendra Modi e de seu partido dentro do espectro político indiano possuem fundamental importância no entendimento da construção ideológica que baseia a construção do nacionalismo e da diplomacia cultural no contexto de sua administração. O BJP tem sua fundação como braço político da organização militante hindu Rashtriya Swayamsevak Sangh (RSS), que possui como base ideacional a busca pela instauração de uma sociedade puramente hindu. O RSS se fundamenta em uma perspectiva ligada à extrema-direita indiana, que considera que o próprio projeto nacionalista criado a partir da Constituição de 1950 encontra-se incompleto, sendo necessário para tal fim a efetivação, por todos os meios, de uma nacionalidade hindu. Esse processo compreenderia a primazia de direito, notoriamente revisionista, atribuído aos hindus enquanto verdadeira nação indiana.
Além disso, o pensamento político do BJP insere-se dentro da ideologia Hindutva, que tem como objetivo fundamental a “defesa do hinduísmo bramânico na sociedade, política e cultura indiana” (LAKSHMI, 2020, p. 4, tradução nossa). Essas expressões serão profundamente percebidas nas ações promovidas por Modi desde sua entrada na política, na própria fundamentação do nacionalismo cultural, e na adequação dos conceitos tradicionais de diplomacia cultural indiana, que serão analisados posteriormente. Tal pensamento assumiu a forma de ação sobretudo ligada à narrativa anti-muçulmana. Apesar do hinduísmo ainda representar a grande maioria da população indiana, cerca de 77%, sua subsequente parcela é ocupada pela religião muçulmana, que representa cerca de 14.2% da população (REGISTAR GENERAL AND CENSUS COMISSIONER, 2011). Os principais casos de violência contra minorias religiosas observados, desde a década de 80, estão ligados à contraposição hindu-muçulmana, fator que corrobora a perseguição religiosa por parte dos seguidores da ideologia Hindutva, que não apenas busca compor maioria, mas ser considerada a única nacionalidade identitária e religiosa verdadeiramente indiana (LAKSHMI, 2020; ALTER, 2005).
Expressões da intolerância praticada pela ideologia Hindutva que baseia o pensamento do BJP e por Modi em sua trajetória política podem ser observados em dois principais eventos: a campanha pela construção do Templo Ram, em 1992, na cidade de Ayodhya, e o massacre de Gujarat, de 2002, período no qual o atual primeiro-ministro ocupava o cargo de ministro-chefe do estado. O primeiro episódio foi marcado pela massiva campanha pela construção de um templo dedicado ao deus Rama, uma das principais divindades cultuadas dentro do hinduísmo, no local da mesquita muçulmana Babri Masjid, dada a crença de seria a localidade exata do nascimento do deus hindu. A campanha contou com mais de 150 mil voluntários que tiveram como função a destruição do local de culto muçulmano em um embate fortemente instigado pelas figuras políticas associadas ao BJP. Essa destituição teve como consequência revoltas como os protestos de Bombaim, de 1992, e o próprio massacre de Gujarat, de 2002 (AYYUB, 2016).
Este iniciou-se devido à destruição de um trem carregando guerrilheiros voluntários hindus, também conhecidos como kar-sevaks, envolvidos nas manifestações violentas pela construção do Templo Ram. Tal ato foi associado aos muçulmanos e foi seguido por uma onda de protestos e de violência hindu contra a população muçulmana. Na ocasião, foram utilizadas técnicas de tortura e o assassinato de cerca de mil muçulmanos, em uma ação diretamente orquestrada e sancionada pelo Estado, que comandou que as forças policiais não tomassem ação, fossem estas de repressão à violência hindu ou de proteção da população muçulmana, tendo, inclusive, forças policiais participado diretamente na violência anti-muçulmana dos protestos. No caso de Gujarat, é fundamental ainda que se destaque o papel que Narendra Modi assumiu frente aos massacres, dado seu cargo à época, já que não apenas ordenou a inação policial, como também capitalizou politica e eleitoralmente dentro do próprio BJP (AYYUB, 2016; LAKSHMI, 2020).
Cabe, aqui, um reforço da mudança que a ideologia Hindutva promove em relação ao secularismo proposto por Nehru. Ainda que existam iniciativas dos governos subsequentes aos mandatos de Nehru, o nacionalismo cultural indiano permaneceu em bases estadocêntricas, a partir da leitura tradicionalista do conceito de secularismo e da construção internacional da identidade cultural indiana enquanto pluralista e ligada ao respeito à diversidade religiosa de sua população. Nesse sentido, a ascensão ao poder de Narendra Modi e a crescente influência do próprio BJP na política indiana ganham especial conotação, ao passo que promovem um movimento de ruptura com a tradicional estrutura de nacionalismo cultural tradicionalmente adotada pelos governos do Partido do Congresso. Essa diferenciação ocorre, sobretudo, devido à base ideológica Hindutva de onde deriva seu posicionamento no espectro político indiano. Como previamente mencionado, o projeto de poder do BJP deriva de uma interpretação fundamentalista da cultura e identidade hindu, reconstituída com base no exclusivismo e na supremacia do hinduísmo bramânico. Nessa perspectiva, a ideologia Hindutva, ao celebrar a exclusividade da nação hindu sobre a sociedade indiana, tem como base a rejeição completa do conceito de secularismo, considerando este enquanto uma discriminação da maioria nacional hindu e dos interesses nacionais indianos, e como parte fundamental do que tem tornado o projeto nacionalista hindu incompleto (GAUTAM; DROOGAN, 2017).
Ainda que a compreensão da visão Hindutva e de seu nacionalismo cultural contribua para o entendimento das bases políticas do governo de Narendra Modi e de suas ações governamentais, a ascensão de Modi ao poder configurou a promoção de um novo paradigma em termos de nacionalismo cultural. Com origens no pensamento político do BJP desde a década de 1980, o definido por Mitra (2013) como nacionalismo hindutva brando possui como características fundamentais a combinação de elementos do nacionalismo cultural estadocêntrico de inspiração nehruniana com o nacionalismo cultural hindutva, com uma visão mais expansiva do hinduísmo. Nesse sentido, a fim de compreender a combinação de ambos nacionalismos, é necessário que se observem as interações conceituais dentro do princípio do secularismo, uma vez que o arranjo tradicional de ambas correntes se posicionam diametralmente opostas frente à aceitação do pluralismo religioso no país.
A adaptação observada no governo Modi se insere na compreensão promovida frente ao conceito de secularismo, que passará a ser observado a partir do viés da tolerância às minorias religiosas, em contraponto à noção de aceitação observada nas leituras tradicionais dos governos indianos pós-independência. Nesse sentido, Modi é capaz de acomodar grande parte da carga conceitual de sua matriz filosófica hindutva recorrendo à própria filosofia hindú e sua abertura à tolerância de minorias religiosas, assim como, em um duplo movimento, recorre a um discurso nevrálgico à própria ordem internacional liberal e sua relação com práticas não-ocidentais.
Em seu trabalho seminal “Regulating Aversion: Tolerance in the Age of Identity and Empire”, de 2006, Wendy Brown traz em sua argumentação que o discurso liberal de tolerância é fundamental na construção do Oeste, que também pode ser entendido dentro do conceito de Ocidente e do seu Outro, ao passo em que segrega discursivamente as sociedades consideradas livres, civilizadas e tolerantes frente à sociedades entendidas como fundamentalistas, bárbaras e intolerantes. Trata-se de uma categorização hierárquica que tem como base a superioridade de caráter do tolerante sobre o tolerado, em uma dinâmica na qual é criada a outorga de ações não-liberais dentro do próprio modelo liberal. Deste modo, há a chancela de ações de cunho agressivo contra tudo que é colocado enquanto intolerante – que por sua vez, é entendido como uma ameaça à própria tolerância. Dentro dessa dinâmica, o nacionalismo cultural hindutva brando promovido durante os governos de Narendra Modi opera suas ações frente à população muçulmana, em um discurso enraizado na promoção de uma imagem tolerante e aberta do hinduísmo. Isto, por sua vez, é projetado como benevolente, tal como a figura do guru representada por Modi, enquanto líder espiritual e político da nação. Por outro lado, os próprios atos de resistência da população muçulmana são colocados enquanto ameaças à ordem liberal-hindu tolerante, em um secularismo que, à moda BJP, é utilizado para enfraquecer a força das reivindicações dos grupos religiosos minoritários, tais como sikhs e muçulmanos (LAKSHMI, 2020).
Dentro dessa dinâmica, Brown (2006) ainda avança suas proposições no sentido de compreender que este outro, notoriamente todo aquele que possui práticas diversas às do Ocidente, também se insere dentro de uma perspectiva do estrangeiro e do selvagem. Nesse contexto, o nacionalismo cultural hindutva brando reforça sua matriz Hindutva, ao passo que considera a população muçulmana como estrangeira, que deverá ser expurgada ou absorvida para que se complete o projeto de nação hindu. Trata-se, portanto, de uma postura branda quando considerada frente aos conceitos tradicionais hindutvas, cuja promoção do segregacionismo possui bases latentes da completa rejeição de qualquer noção de secularismo. Na perspectiva de Aavriti Gautam e Julia Drogaan (2017), a postura branda buscará associar uma abordagem moderada à uma visão expansiva do hinduísmo e de seu papel no cenário internacional. Trata-se, em outras palavras, de uma expansão da tolerância e flexibilidade hindutva ao seu limite, a partir de uma perspectiva de tolerância suficiente à ordem liberal internacional que, indexada à uma visão estreita de secularismo, busca por beneficiar-se dos ativos culturais e da imagem internacional projetada pelo conceito tradicional de secularismo, isto é, da aceitação e respeito à diversidade religiosa indiana.
O modelo hindutva brando de Modi pode ser exemplificado a partir de um caso concreto. Proposto pela Índia e aprovado no âmbito da Organização das Nações Unidas, o International Yoga Day teve como objetivo basilar a valorização da tradição cultural indiana da yoga, sendo considerado uma das primeiras conquistas internacionais da agenda política do BJP após sua ascensão ao governo. A celebração do primeiro Dia Internacional do Yoga, em 2015, teve como função formatar a politização do yoga como ferramenta política, em um grande evento televisionado e promovido a nível global. As transmissões tinham como figura central o próprio Primeiro-Ministro Narendra Modi, que, em suas vestes tradicionais hindus celebrava conceitos de unidade da nação, paz, benevolência, espiritualidade e flexibilidade, e colocava-se como não apenas líder político, mas também como guru espiritual da nação indiana. Esse poderoso e pacífico líder era acompanhado por milhares de participantes devidamente uniformizados, que seguiam sincronicamente os movimentos realizados por Modi. As filmagens incluem, ainda, um único muçulmano. Simbolicamente, ao mesmo tempo que este realiza suas preces islâmicas, há um contraste com os milhares de seguidores que realizavam os movimentos sincrônicos ao Primeiro-Ministro (DOORDASHAN NATIONAL, 2015)
Ainda que seja de fundamental importância que se ressalte que a yoga não é uma prática exclusivamente hindu, a própria formatação do Dia Internacional da Yoga em sua primeira celebração é capaz de evidenciar as narrativas subjacentes à promoção de uma prática que se promove em termos de saúde pública, paz e benevolência, símbolos dos quais o projeto de poder de Modi se beneficia em sua projeção internacional. Em contraste, também revela as profundas divisões internas latentes ao segregacionismo hindutva, ainda que a própria narrativa da yoga enquanto atividade física extra-religiosa, com benefícios ao bem-estar, tenha como objetivo fundamental o obscurecimento de sua complexidade política dentro do contexto indiano (LAKSHMI, 2020; SAMUEL, 2008).
A primazia de Modi reside, no entanto, em sua habilidade em combinar o nacionalismo cultural hindutva brando, em construção desde a década de 1980 dentro de seu partido, e congregar à este uma visão de secularismo, que é capaz de manter presente a visão internacional de uma Índia pluralista, a partir de uma dinâmica de tolerância comum às sociedades liberais do Ocidente.
É fundamental que se observe, no entanto, que, ainda que o concerto das nações tenha como tendência a aceitação generalizada da manutenção de uma perspectiva de Índia secularista, como se observa na aprovação do Dia Internacional da Yoga, tal processo não ocorre sem barreiras. Movimentos de resistência internacional ao projeto de poder nacionalista de Modi frente à crescente intolerância religiosa no país são progressivamente evidenciados, a exemplo do relatório da Comissão de Liberdade Religiosa Internacional dos Estados Unidos, de 2019, que retrata a crescente violência e abuso frente às minorias religiosas indianas e às castas hindús menos privilegiadas (UNITED STATES COMMISSION ON INTERNATIONAL RELIGIOUS FREEDOM, 2019) Como forma de resposta ao relatório, por sua vez, o BJP reforçou sua posição divulgando uma nota, na qual afirmava “as credenciais seculares, seu status de maior democracia e a sociedade pluralista com compromisso de longa data com a tolerância e inclusão” (MANIKANTA, 2020, p. 3, tradução nossa). Nesse sentido, seja pela herança da tradição do nacionalismo cultural estadocêntrico de inspiração nehruviana e pela manutenção ideológica da imagem de um país pluralista, seja pela aceitação da dinâmica de tolerância enquanto forma de secularismo proposta nos termos do BJP, a manutenção da projeção dos ativos culturais indianos e de sua imagem cercada de filosofia e religiosidade possui bases ideológicas no próprio projeto de poder de Modi e em sua busca pela construção de uma ideia de “Índia milenar como mestre-guru do mundo, possuidora de uma sabedoria única” (OLIVERA, 2022, p. 43).
Deste modo, a busca pela construção e projeção de uma imagem internacional centrada na imagem de benevolência, pacifismo e flexibilidade promovida por meios de ativos culturais como a yoga, dita como expressão “neutra” da sabedoria indiana, ganha especial destaque. Modi busca promover uma imagem de líder internacional pluralista, afastado da ideologia hindutva – responsável não apenas pela sua ascensão política, como também presente fortemente nas base ideológica de seu partido e governo. Torna-se, assim, basilar a compreensão do quadro teórico dentro do qual a construção das narrativas do governo de Narendra Modi se insere, notadamente marcada pelo nacionalismo cultural hindutva, cuja projeção de flexibilidade, benevolência e sabedoria evidenciam uma dicotomia frente à crescente intolerância religiosa no país e à sua própria filosofia segregacionista, conforme será analisado na próxima seção.
- A TRADIÇÃO DA DIPLOMACIA CULTURAL INDIANA E A INTOLERÂNCIA RELIGIOSA NOS GOVERNOS DE NARENDRA MODI
A diplomacia cultural, por sua vez, insere-se diretamente na dinâmica do nacionalismo cultural enquanto uma ferramenta que permite a incorporação da cultura[1] dentro da perspectiva dos intercâmbios internacionais, de modo a apoiar âmbitos mais tradicionais da diplomacia política e econômica. Nesse sentido, coloca-se diretamente ligada à ideia de entendimento entre os atores do sistema internacional, e opera como uma forma de aproximação cultural ao estangeiro sob a tutela, sobretudo, de seu governo a fim de representar e promover os interesses colocados pela conjuntura política vigente à cada Estado. Essa perspectiva, no entanto, pode ser percebida como um efeito da imagem projetada internacionalmente a partir da diplomacia cultural, e observado, sobretudo, a partir do setor cultural das economias dos países, dado que a internacionalização dos bens culturais, também entendidos como ativos culturais, também compõe fator fundamental em termos de trocas econômicas entre os países, sendo considerado um dos setores que mais crescem nas economias pós-industriais (OLIVERA, 2022; SAHAI, 2019).
Sendo assim, é fundamental que se analise a tradição da diplomacia cultural dentro do nacionalismo cultural estadocêntrico indiano promovido por múltiplos governos pré-Modi. A partir dessa análise, é necessário também que se compreenda o contexto dentro do qual está inserida a atuação dos governos de Narendra Modi, seu projeto político e seu nacionalismo cultural, bem como as motivações e benefícios regionais e internacionais que regem sua projeção e o crescente aumento da intolerância religiosa em âmbito nacional.
Nessa perspectiva, desde a formação pós-independente indiana, a tradição cultural teve como base as proposições de seu primeiro governante, Jawaharlal Nehru, que compreendia a diplomacia cultural como meio de entendimento entre os povos. Por meio de um enfoque global e filosófico, Nehru teve como objetivo a fundamentação do conceito de secularismo e de projeção de poder através de uma perspectiva não-religiosa. A tradição proposta por Nehru tinha como base o entendimento da cultura indiana como composta pela mistura e interação com outras culturas. Em termos filosóficos, Nehru valorizava o diálogo e a aceitação como mecanismos de enriquecimento da cultura a partir da escritura védica de origem hindu Vasudhaiva Kutumbakam, isto é, o mundo inteiro como uma família que pode alcançar sua melhor versão através das negociações (SAHAI, 2019).
Em um processo de continuidade, por sua vez, os governos de Indira Gandhi, assim como o de Rajiv Gandhi tiveram como base a promoção da arte e dança que buscavam divulgar a cultura indiana moderna e formalizar uma imagem da Índia no século XXI, com iniciativas como os Festivais da Índia. Ainda que pertencente ao partido de Modi, o BJP, o primeiro-ministro Ataal Bihari Vajpayee teve como característica a manutenção do compromisso com a cultura indiana de bases nehruviana, assim como as administrações de Narasimha Rao e Manmohan Singh.
Dentro desse longo período de construção da tradição da diplomacia cultural indiana e de sua imagem pluralista e secularista, iniciativas governamentais e fatores de projeção internacional foram fundamentais a este processo. Inserido nesse contexto, o Conselho Indiano para Relações Culturais (ICCR), criado em 1950 e atuante sob a tutela do Ministério de Relações Exteriores, com coordenação do Ministério da Cultura, tem como função a formulação e implementação da diplomacia cultural em duas principais frentes de trabalho, uma intelectual e acadêmica, centrada em bolsas de estudos e seminários, e outra ligada à arte e cultura, a partir de exibições e publicação de livros e revistas. Com Centros Culturais espalhados pelo globo, sua função é de aplicação e promoção de iniciativas culturais, tais como os Festivais da Índia e o próprio Dia Internacional do Yoga, e, ainda que seja questionado frente à sua dispendiosa inefetividade burocrática frente aos altos gastos administrativos para sua operação, tem sido utilizado como mecanismo de divulgação internacional dos projetos culturais indianos (ISAR, 2017; SAHAI, 2019).
Dentro do escopo de atuação do ICCR, a promoção de projeção internacional dos projetos de diplomacia cultural da Índia teve como base uma série de projetos, fato que se deve, inclusive à falta de um documento central em termos de diplomacia cultural, tendo sido esta considerada subjacente à esferas políticas e comerciais da política externa indiana. Dentro desse escopo comercial, a iniciativa dos Festivais da Índia teve função de estabelecimento, expansão e promoção da indústria cultural e de seus ativos. Nesse sentido, criado na década de 80, nos governos da primeira-ministra Indira Gandhi, os Festivais da Índia tinham como objetivo a exposição à nível mundial de uma Índia contemporânea com foco na arte e na mescla entre o tradicional e o moderno que buscava combater a imagem do país enquanto uma terra exótica marcada pela pobreza extrema. Promovida em países como o Reino Unido, em 1982, e os Estados Unidos, entre 1985 e 1986, a campanha ganhou força, sobretudo associando o país à sua produção científica, junto à arte e sua diversidade cultural. Tendo sido promovido por múltiplos governos até os dias atuais, tem contado, cada vez mais, com a promoção de uma imagem indiana centrada na dança, literatura, culinária e nas ricas produções bollywoodianas (OLIVERA, 2022).
Junto ao exponencial crescimento do mercado cultural indiano, o crescimento dos setores culturais ligados a práticas religiosas, tal qual a própria yoga, teve como consequência a formação de um mercado de iniciativas espirituais, considerado, em 2016, na casa de 1.8 bilhões de dólares. Junto à esse mercado, o mercado de turismo religioso na Índia também obteve grande expansão, bem como pela própria campanha Incredible India promovida pelo Ministério do Turismo pela divulgação em portal virtual de suas atrações turísticas, culinária e espiritualidade indiana O mesmo Ministério avaliou que houve a movimentação de cerca de 16.2 bilhões de dólares em 2022, com expectativa de crescimento nas próximas décadas. Junto à esses mercados, o próprio mercado global da yoga já compunha globalmente, em 2016, valores aproximados à 80 bilhões de dólares anuais (GAUTAM; DROOGAN, 2017; GOVERNMENT OF INDIA MINISTRY OF TOURISM, 2023; OLIVERA, 2022; SHARMA, 2016).
Somado à força cultural destas iniciativas, e considerada potente motor de difusão das práticas e cultura indiana à nível global, a diáspora teve papel primordial na promoção dos interesses econômicos, culturais e políticos. Estima-se que seja uma uma população de mais de 32 milhões de indianos espalhados pelo mundo que compõem, de acordo com relatório da Organização Internacional para as Migrações (2021), o principal receptor de remessas internacionais no mundo, sobrepondo a própria China. Nesta perspectiva, a manutenção e expansão da interação do governo indiano com sua diáspora esteve ligada, sobretudo, à atuação do ICCR, que através de celebrações como a Pravasi Baratiya Divas, criada em 2003 para comemorar o retorno de Mahatma Gandhi à Índia em 1915, teve como objetivo reunir a população diaspórica e reforçar os laços com sua comunidade natal. Dentre outros fatores de mobilização, a exportação de narrativas culturais integra fator fundamental da própria diplomacia cultural indiana, uma vez que tem como função a projeção do próprio idioma hindi, de filosofias indianas como o karma, de roupas características de cada grupo étnico presente na composição de sua população e a celebração de festividades como o Holi e o Diwali (OLIVERA, 2022).
Apesar de estar composta pela pluralidade cultural característica da Índia, a diáspora sob o governo de Narendra Modi ganhou especial destaque enquanto ferramenta eleitoral, sobretudo a partir da estrutura de influência intelectual de seu partido. A campanha, por sua vez, tinha como características fundamentais a ideologia nacionalista hindutva e a promoção da figura de liderança de Modi para a simbolizar uma Índia grandiosa e capaz de ocupar um papel de destaque nas relações internacionais, como um grande poder em termos econômicos, militares e filosóficos. Ainda que não componha fato isolado dentro da trajetória política indiana, a utilização da diáspora pode ser melhor explicitada em termos práticos a partir do apoio de setores econômicos transnacionais. Estes tiveram, por exemplo, fundamental função no pós Acordo Nuclear Civil entre Índia e Estados Unidos de 2005, contexto no qual o apoio e a formação de lobby da comunidade indo-estadunidense caminhou no sentido de obter não apenas direitos eleitorais, mas também status de dupla cidadania, a partir de sua influência no Parlamento (SAHAI, 2019; OLIVERA, 2022).
No caso de Modi, a transnacionalização de seu nacionalismo cultural hindutva brando teve como motor a relação com setores políticos anti-muçulmanos de outros países, como os Estados Unidos, como é possível observar na construção de narrativa de apoio, por parte da base-eleitoral de Modi, à candidatura de Donald Trump, em 2016, sob a alegação de que enfrentavam o mesmo flagelo do terrorismo e do fundamentalismo islâmico. Outro movimento político transnacional de base hindutva foi o envolvimento nas campanhas de apoio ao Brexit, no Reino Unido, enquanto parte da divisão hindu-muçulmana característica de sua base ideológica e coadunante com as narrativas separatistas britânicas frente às crises migratórias na União Europeia – centrada na figura do muçulmano como ameaça existencial aos interesses da classe política proponente da saída do país do bloco (LEIDIG, 2020; KINVALL, 2019).
Nessa perspectiva, ações culturais como a promoção da própria yoga com base em sua relativa flexibilidade e neutralidade foram fortemente influenciadas pelo que Isar (2017) define como “açafranização” da diplomacia cultural indiana nos mandatos do BJP, marcada por uma estratégia cultural marcadamente hinduísta. A dicotomia entre o nacionalismo hindutva brando e sua construção de narrativa pode ser observado pelo que Olivera (2022), ressalta frente ao conceito de açafranização:
“(…) el actual gobierno del Primer Ministro Modi se encuentra en la encrucijada entre promover políticas que muestren una India que representa solo los intereses de la mayoría hindú en una construcción discursiva del nacionalismo hindú (“hindutva”) y la imagen de de una India que represente no solo a los hindúes sino al total de la población (OLIVERA, 2022, p. 34)”.
Ademais, ações governamentais com fortes transbordamentos à diplomacia cultural e ao nacionalismo cultural hindutva brando podem ser observadas dentro do prisma internacional e regional. A projeção internacional da yoga centrou-se em um esforço de internacionalização que visava amenizar a posição da Índia enquanto “ator agressivo” regional, por meio da valorização da benevolência e do pacifismo das práticas da yoga. Nesse sentido, foram realizados esforços junto ao Japão, a exemplo da criação da Liga Parlamentar para Promoção da Yoga de 2017. Em relação à China, considerada uma rival à hegemonia indiana na região, a estratégia cultural de Modi contou com duas linhas de atuação. Por um lado, houve a promoção do intercâmbio cultural entre a yoga e o tai-chi, voltada para a construção de um compromisso mútuo de coexistência pacífica; e prosperidade por meio da diplomacia presidencial e da promoção por meio de redes sociais, sobretudo a rede Weibo, ligada ao governo chinês. Por outro lado, iniciativas centraram-se na contraposição à promoção da medicina milenar chinesa a partir da inauguração do Ministério AYUSH (Ayurveda, Yoga e Naturopatia, Unani, Siddha e Homeopatia), com o objetivo de produção de bens e serviços de múltiplas práticas em saúde derivadas de tradições não-ocidentais (GAUTAM; DROOGAN, 2017; OLIVERA, 2022).
Neste sentido, a análise material da intolerância praticada nos governos liderados pelo BJP perpassa a compreensão do dinamismo entre intolerância religiosa à nível nacional e projeção do pluralismo e secularismo à nível global, a fim de promover um balanço entre a construção da narrativa da sabedoria oriental sob o escopo de nacionalismo hindutva brando e a crescente intolerância religiosa de inspiração hindutva tradicional. Dentre os episódios de violência hindutva ocorridos durante o período analisado, a revogação do artigo 370 da Constituição Indiana e o Registro Nacional de Cidadãos (NRC) foram acontecimentos categorizados pelo envolvimento direto e explícito da administração BJP no estabelecimento de sua agenda nacionalista hindu. Com o objetivo de remover o status especial de autonomia do estado majoritariamente muçulmano de Jamu e da Caxemira, a revogação do artigo 370 da Constituição foi marcada pela presença massiva do Estado indiano na região por meio do uso do poderio militar. Somado a isso, o corte de linhas de comunicação como internet, telefone e televisão para prevenir e dissuadir movimentos contrários à ocupação indiana da região foram promovidos, em uma operação que permanece em curso até os dias atuais, o que se deve, também à importância estratégica da região.
Por sua vez, o Registro Nacional de Cidadãos (NRC) no estado indiano de Assam, localizado na região fronteiriça ao território de maioria muçulmana de Bangladesh, teve como objetivo o registro dos cidadãos genuínos a partir do requerimento de documentação legal que comprove a sua cidadania ou residência na região. Neste sentido, em uma ação promovida pelo governo liderado pelo BJP, indivíduos cuja entrada no estado de Assam fora realizada posterior à março de 1971, data de fundação de Bangladesh, foram considerados imigrantes ilegais e removidos de seus direitos de cidadania, bem como todos aqueles que não possuíssem completa documentação comprobatória de sua cadeia de hereditariedade. Como consequência deste processo, cerca de 2 milhões de residentes de Assam, sobretudo muçulmanos, tiveram sua cidadania revogada (GAUTAM; DROOGAN, 2017).
Tendo como base a própria ideologia hindutva e sua característica revisionista frente à formação cultural, étnica e religiosa indiana, os governos de Narendra Modi buscaram promover a efetivação de seu projeto supremacista hindu a partir da adoção de uma série de medidas de reforço simbólico da força cultural da religião hindu. Dentre essas medidas, a formalização do suporte político à interpretação de épicas religiosas como Ramayana e Mahabharata enquanto fatos históricos concretos da história indiana ocorreu a partir da nomeação por parte de Modi de Yellapragada Sudershan Rao ao cargo de diretor do renomado Conselho Indiano de Pesquisa Histórica. Somado à esse processo, o banimento de escolas islâmicas em seu mais populoso estado, Uttar Pradesh, promoveu desde sua promulgação, em março de 2024, até novembro do mesmo ano, data de sua revogação por parte da Suprema Corte da Índia, o fechamento de mais de 25 mil escolas e a desalocação de 2.7 milhões de estudantes que permaneceram sem acesso à educação, dada a própria incapacidade da rede de ensino tradicional de prover suporte ao contingente de alunos (GANGULY, 2005; MEHTA, 2024).
Somado à ações governamentais diretas, a utilização da terminologia secular na construção discursiva dos projetos nacionalistas do governo de Narendra Modi também compõe prisma de análise fundamental na compreensão do dinamismo ideológico adotado frente à interpretação ou rejeição do conceito de secularismo em seu projeto de poder. Por meio do viés da rejeição, a omissão proposital da palavra “secular” na leitura do Preâmbulo da Constituição no Dia da Constituição tem como efeito o fortalecimento da construção de uma narrativa de aproximação com os ideais tradicionais do nacionalismo hindutva e permite seu fortalecimento político dentro do próprio BJP e de alas mais radicais do próprio RSS, garantindo legitimação política interna à seu governo (TUDOR; SLATER, 2021). Por meio do viés da adaptação, a promoção de projetos como o Dia Internacional do Yoga permite a projeção de uma imagem ligada ao pluralismo cultural e à sua tradição em termos de diplomacia cultural. A lacuna interpretativa de sua construção de narrativa se dá, sobretudo, a partir do aproveitamento eficaz da vantagem herdada da narrativa da tradição nacionalista cultural e de sua promoção do conceito de secularismo aceito à nível global, e da promoção de versões brandas da ideologia hindutva internamente.
CONCLUSÃO
Por fim, é possível perceber que a construção da narrativa da sabedoria oriental nos governos de Narendra Modi encontra-se diretamente ligada às bases filosóficas hindus e aos princípios nacionalistas Hindutvas que baseiam seu projeto de poder – ainda que em uma perspectiva cultural que possa ser considerada branda, relativamente ao extremismo observado dentro de sua ala política. Dentro de suas estratégias discursivas, a administração Modi possui êxito em seu objetivo de projeção de uma imagem internacional centrada em um pluralismo secular de inspiração nehruniana, que difere de sua atuação a nível doméstico. Neste sentido, é basilar que se considere que ainda que seja possível estabelecer um conceito de secularismo em Modi ligado à noção hindu de tolerância, a crescente intolerância religiosa explícita e simbólica presente na Índia contemporânea urge a necessidade de revisão conceitual e de reinterpretação do conceito de secularismo. Além disso, é fundamental que sua utilidade esteja colocada frente à ações governamentais que comprovam, cada vez mais, sua posição como elemento discursivo esvaziado de significados, princípios ou proteções à pluralidade cultural e religiosa indiana, ainda que sua permanência estratégica no discurso político permaneça ligada aos benefícios políticos, econômicos, culturais e filosóficos de sua utilização enquanto ferramenta de poder.
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[1] Entendemos aqui por cultura a totalidade de conhecimentos, crenças e comportamentos de uma sociedade, bem como os bens e serviços provenientes destes.
João Gabriel Campos Barrocas Mattos Zampini é Graduando em Defesa e Gestão Estratégica Internacional no Instituto de Relações Internacionais e Defesa da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IRID-UFRJ), pesquisador bolsista PIBIC/CNPq do Laboratório de Estudos Asiáticos (LEA/IRID).