A Espada e a Rede: Criptomoedas, Bancos Comerciais e Bancos Centrais

Volume 4 | Número 40 | Set. 2017

Por Vinícius Junger dos Santos

Em primeira instância, o maior e mais visível impacto das criptomoedas foi resumido por estudiosos como a “perda do monopólio das autoridades monetárias de cada país de gerenciar a parte monetária de sua economia como bem entender” (GAVRONSKI; FOPPA, 2015) ou “a substituição de um conjunto de intermediários poderosos como bancos comerciais, bancos centrais e o Estado por uma rede difusa controlada por pessoa alguma” (SCOTT, 2014). Embora não haja muitas dúvidas sobre a profundidade de tais impactos, acredito que ainda seja possível ressaltar outro aspecto tão abrangentes e profundo quanto estes: um impacto no modo de pensar das pessoas. O Bitcoin questiona uma das prerrogativas fundamentais do Estado, a emissão e regulamentação da moeda, causando dúvidas sobre a necessidade e, consequentemente, sobre a legitimidade das instituições financeiras existentes (FILIPPI; LOVELUCK, 2016). Dividiremos então a análise entre os três atores mais afetados: bancos comerciais, bancos centrais e Estados.


Bancos comerciais

Bancos comerciais podem ser severamente impactados e sabem muito bem disso: o Bitcoin sozinho é suficiente para “retirar alguns bancos do jogo”[1]. Embora acredite que as criptomoedas serão altamente disruptivas no sistema bancário comercial, é difícil dizer que, pelo menos a curto ou médio prazo, o Bitcoin sozinho seria capaz de ruir a estrutura bancária. Pelo menos, não sozinho.

A grande variedade de criptomoedas disponíveis já é capaz de oferecer uma parte significativa dos serviços bancários a custos muito menores. O controle das criptomoedas ser feito por um algoritmo que não necessita de manutenção de uma estrutura física e social complexa como a de um banco faz com que haja grande discrepância de valor nas taxas. Os últimos séculos terem sido quase que exclusivamente dominados por moedas fiat e bancos comerciais, também não foi um grande impulso a uma variedade de preços e serviços entre bancos, de forma que só muito atualmente novos modelos de bancos começaram a vingar (DELUCA, 2016).

Pode-se ter certeza que em pouco tempo bancos acabarão tendo que enfrentar grande concorrência com criptomoedas, com relação a transferências, investimentos de curto prazo, comércio cotidiano e investimentos em longo prazo. Para competir com os baixíssimos preços de transações, bancos que dependem em grande parcela deste tipo de entrada precisarão se reorganizar e oferecer tarifas cada vez menores se quiserem manter clientes orientados pelo preço. A conversão monetária que já é feita por serviços bancários também sofre um golpe forte, uma vez que criptomoedas permitem que pessoas físicas façam seu papel muito mais facilmente, quase sem nenhuma regulação e com preços muito baixos, seja em páginas pessoais[2], plataformas centralizadas de lances de pessoas físicas[3] ou aplicativos P2P[4] de trocas de criptomoedas[5]. Criptomoedas partilham muitas características com outras moedas e ouro, também se configurando como forma de investimento de segurança que vem a competir com investimentos bancários: nos últimos meses, o Bitcoin ficou três vezes mais caro que o ouro[6]. Criptomoedas como a 42Coin, voltada para armazenagem de valor, investimento de segurança a longo prazo, estão cotadas atualmente em 25.400 reais cada, mais do que seis vezes o valor do ouro[7].

De qualquer forma, os serviços oferecidos pelos bancos continuam sendo úteis e com algumas características capazes de continuar atraindo pessoas para o sistema bancário. O papel de intermediário capaz de garantir segurança e retornar o dinheiro do comprador em caso de golpe, embora possa ser feito com criptomoedas, configura-se como um serviço em que bancos têm especialidade em desenvolver. Os algoritmos de criptomoedas não são orientados para reembolsos, de forma que se precisa organizar um intermediário à parte, em caso de segurança. Compras grandes e entre atores desconhecidos poderão continuar sendo intermediadas por bancos, mesmo que eles próprios façam as transações em criptomoedas.

Não se pode esquecer que, embora as criptomoedas tenham surgido como alternativa ao sistema bancário e financeiro, isso não impediu as pessoas de tomarem algumas delas como capital financeiro e especulativo (FILIPPI; LOVELUCK, 2016). Bancos continuam sendo instituições especialistas em prestar consultoria para investimentos, sejam estas em quaisquer tipos de moedas, mesmo que esse serviço esteja cada vez mais sendo descentralizado, em função de usos de algoritmos e Inteligências Artificiais, sob aluguel, para manutenção de ativos[8].

Os bancos comerciais já começaram a adotar estratégias para se adaptar às criptomoedas, como utilizar as tecnologias envolvidas nestas para manter e melhorar seus serviços, em especial a tecnologia blockchain[9]. De fato, estima-se que 15% dos grandes bancos já estarão utilizando a tecnologia até o final de 2017[10], tentando aprimorar-se tecnologicamente para manter a vantagem competitiva e oferecer serviços mais seguros, com menor custo.

“Se não pode vencê-los, junte-se a eles”. A segunda estratégia mais comum é o investimento pesado em entender as criptomoedas e comprá-las em moedas fiat, enquanto são baratas . Bancos gigantes – como J.P Morgan e Santander, junto com a Microsoft, outros 30 bancos e algumas empresas menores – estão por trás de massivos investimentos na plataforma Ethereum[11], ao mesmo tempo em que o FMI insiste que bancos invistam rapidamente em criptomoedas[12]. Conforme o lastro tende a mudar de moedas fiat para criptomoedas, bancos comerciais poderão escolher entre oferecer benefícios cada vez mais extraordinários em moedas fiat para ou adaptar-se para oferecer serviços utilizando-se da mesma tecnologia.

Uma última derivação estratégica parece ser a adotada por todos os atores: lançar a própria moeda digital. Caso as criptomoedas sejam adotadas em larga escala e os Bancos Centrais comecem a emitir as próprias criptomoedas, os bancos tradicionais terão o grande problema de ter de lidar com moedas impossíveis de se trabalhar com crédito. Criptomoedas não podem ser duplicadas em bancos via digitalização e a perspectiva de moedas nacionais se tornarem digitais torna iminente uma possível mudança na legislação sobre reservas fracionárias[13]. Ter moedas digitais próprias seria uma possível alternativa ao crédito, uma alternativa controlada pelo próprio banco, no qual poderia oferecer descontos e taxas altamente competitivas. Cabe ressaltar que não temos como garantir que serão utilizadas criptomoedas em si, por causa do processo de emissão dessas moedas, mas o lançamento de diversas moedas digitais, cuja operacionalização seja idêntica às criptomoedas, pode ser uma boa aposta para garantir continuidade de seus clientes e captar usuários leigos pela ignorância[14].

Bancos centrais

Não é possível dissociar completamente os impactos das criptomoedas sobre os Bancos Centrais dos impactos sobre o Estado. Aqui há de se tentar restringir aos impactos sobre aspectos de gerenciamento macroeconômico do Estado via Banco Central, enquanto no próximo subtítulo nos atentaremos à regulamentação e às políticas voltadas às criptomoedas.

Os Bancos Centrais parecem ser os mais afetados pelas criptomoedas, pelo simples fato de que o avanço no seu uso impede a realização de suas funções mais básicas para o Estado: regular taxas de juros, implementar políticas monetárias, gerir o suprimento de moeda, regular bancos e o câmbio (FILIPPI; LOVELUCK, 2016). Nada disso pode ser plenamente realizado com a disseminação do uso de criptomoedas pela população visto que sua emissão é realizada pelos seus algoritmos, que não são desenvolvidas para permitirem cópias possíveis de virar crédito por bancos e não facilitarem sua fiscalização, por serem descentralizadas, pseudônimas ou anônimas e de código aberto.

“De fato, se perguntados, muitos vão dizer que um dos benefícios chave do Bitcoin é que ele opera além do escopo de governos, política e bancos centrais” (FILIPPI; LOVELUCK, 2016).

Não só as funções dos Bancos Centrais ficam impedidas pelas criptomoedas, como os algoritmos dessas moedas já são suficientes para realizar tais funções, levantando a questão sobre a necessidade da instituição (FILIPPI; LOVELUCK, 2016). Como muito bem resumido por Jon Matonis, “você não pode acreditar que bancos centrais desenvolvem um papel importante em nossa sociedade e também acreditar que Bitcoins servem como solução monetária” (MATONIS, 2014). É seguro apontar que os Bancos Centrais, se não se adaptarem às criptomoedas, são as instituições que correm o maior risco de se tornarem cada vez menos atuantes nas sociedades.

É fato consumado que o embaraço existente entre Estado e as elites se reflete frequentemente nas políticas operacionalizadas pelo Banco Central, com ênfase na taxa de juros e no câmbio (NUNES, 2015). A primeira estratégia que tem sido tomada pelos governos, em parceria com bancos centrais, é fazer o possível para impedir que novas criptomoedas sejam criadas espontaneamente. Enquanto o mercado das criptomoedas ainda for incipiente, as empresas que surgem continuam precisando se submeter voluntariamente à regulação governamental, visto que precisam lidar com moedas fiat e que quase toda a logística atual é passível de fácil fiscalização estatal. A regulação de Ofertas Iniciais de Moedas, Initial Coin Offers ou ICO’s, é uma das estratégias adotadas por bancos centrais até agora[15]. Ao garantir que as novas empresas do país precisem de permissão do Banco Central para lançar suas criptomoedas, os Bancos Centrais fazem valer suas preferências sobre as moedas da empresa: isso significa poder alterar o funcionamento do código das criptomoedas, de modo a tornar fácil a identificação de usuários, e/ou a forma de emissão da criptomoeda; pedir paridade na moeda fiat local ou simplesmente inviabilizar a criação da criptomoeda, ao impedir o funcionamento da empresa. Tal estratégia parece se tornar cada vez menos eficaz com o tempo, visto que quanto maior for a disseminação das criptomoedas e quanto mais elas estiverem integradas a produtos e serviços, menores serão os incentivos para empresas se submeterem à regulação voluntariamente, pois precisarão cada vez menos de moedas fiat para trocas.

A outra maior estratégia percebida até agora é, novamente, baseada em juntar-se ao time vencedor e criar sua própria criptomoeda[16]. Muito provavelmente não serão criptomoedas como abordadas anteriormente, com todas as tecnologias que as fazem pseudônimas ou anônimas e com emissão de moedas controladas por algoritmo, mas caracterizando-se mais pelo uso do blockchain e pelo controle da instituição sobre a moeda. Sendo esse o caso, bancos centrais, como, por exemplo, o da China[17] e os dos Estados Unidos[18], lançariam suas respectivas moedas digitais, usando o termo mais apropriado, para implementar políticas e fiscalização para o uso de tais moedas, atraindo usuários que apoiam um maior controle do estado, a burocracia, as elites e aqueles que ignoram as diferenças entre criptomoedas e moedas digitais[19].

Moedas digitais emitidas por bancos centrais e com tecnologia blockchain poderiam ser um excelente recurso para garantir a transparência de contas públicas e recursos por todos os países. No entanto, um controle impecável concebido pela tecnologia blockchain, associado ao uso da força para proibir o uso de criptomoedas, seria a combinação perfeita para Estados totalitários. “Fazer que um banco central utilize blockchain requer um certo nível de confiança entre os cidadãos do país e sua autoridade monetária, o que significa que é um modelo mais adaptado para sociedades transparentes e desenvolvidas”[20] diz Lasse Olesen, criador da Coinify.

Por fim, acredita-se que os Bancos Centrais podem atrair diversos adeptos para suas moedas digitais, por conseguir prover exatamente o que parece ser o que mais falta nas criptomoedas: estabilidade de preços. Essa estratégia será mais bem sucedida para os Bancos Centrais quanto mais rapidamente o fizerem, visto que não só já estão sendo desenvolvidas tecnologias para diminuir a volatilidade das criptomoedas, como maior será o entendimento das pessoas sobre criptomoedas com o passar do tempo, diminuindo a margem de usuários que confundem as moedas digitais com as criptomoedas.

Referências

[1]Como anunciado por banqueiros que se reuniam no Texas paa discutir impactos do Bitcoin e BlockChain: https://news.bitcoin.com/banker-i-am-scared-for-the-banking-industry-bitcoin-could-knock-banks-out-of-the-game/.

[2] Nas quais você pode realizar trocas diretamente com os donos do site ou pelo chat de mídias sociais como o FaceBook: http://bitcoinp2p.com.br/quem-somos.html.

[3] Nas quais qualquer um pode fazer seu lance e trocar moedas diretamente: https://poloniex.com/exchange#btc_eth.

[4] Formato de rede de computadores onde o computador de cada usuário conectado acaba por realizar funções de servidor e de cliente ao mesmo tempo. Enquanto houver apenas um computador ativo na rede, o programa pode ser copiado, redistribuído e manter-se aquém de regulação, visto que não há um servidor central a ser interceptado.

[5]Aplicativos que brincam com o fato de pessoas perderem noites de sono tentando fazer dinheiro trocando criptomoedas: http://www.coinffeine.com/.

[6]Como pode ser visto em: http://www.xe.com/currencycharts/?from=XBT&to=XAU.

[7] Valor do 42Coin: https://coinmarketcap.com/currencies/42-coin/.

[8] Uso cada vez mais comum inclusive entre pessoas físicas: https://www.pwc.com/us/en/financial-services/research-institute/artificial-intelligence.html

[9] Uma tecnologia de registro de dados assegurada por criptografia que tem se mostrado a forma mais segura, e até então inviolável, de realizar registro de transações. Diversas criptomoedas utilizam a tecnologia para gerar um livro-razão contendo todas as transações realizadas com a moeda, se tornando um instrumento de transparência. Bancos também correm nessa direção: https://futurism.com/visa-microsoft-and-ibm-are-all-hiring-blockchain-developers/.

[10] Pesquisa da IBM reportada na Forbes: http://fortune.com/2016/09/28/blockchain-banks-2017/.

[11] O que explica em parte seu sucesso: http://fortune.com/2017/02/28/ethereum-jpmorgan-microsoft-alliance/.

[12]Como explicitado na nota de uma reunião em junho de 2017: http://www.imf.org/en/Publications/Staff-Discussion-Notes/Issues/2017/06/16/Fintech-and-Financial-Services-Initial-Considerations-44985.

[13] Foi necessário adiantar uma parte da discussão sobre bancos centrais: https://www.linkedin.com/pulse/why-banks-want-own-cryptocurrencies-lucas-cervigni-lucce-.

[14] Criptomoedas em sua maioria têm uma quantidade ou inflação fixa estabelecida por algoritmos, são feitas em código-aberto e permitem que o usuário decida se vai querer acompanhar ou não as mudanças propostas pelos desenvolvedores, diferentemente de qualquer serviço centralizado. Bancos já começam a adotar esta última estratégia no Japão: http://www.thejavacoin.com/javacoin-news/item/427-japan-s-largest-bank-to-issue-its-own-digital-coin.html.

[15] Singapura, Rússia e Estados Unidos já estão envolvidos em cruzadas jurídicas para a regulamentação de ICO’s: https://news.bitcoin.com/singapore-central-bank-clarifies-ico-regulations/; https://news.bitcoin.com/russia-legalize-icos/; https://news.bitcoin.com/the-end-of-the-ico-wild-west-blockchain-advocates-weigh-in-on-sec-report/.

[16] Canada, China, estados Unidos, Singapura, Alemanha entre outros países já examinam a possibilidade de criar suas próprias moedas digitais: https://www.bloomberg.com/news/articles/2017-06-28/rise-of-digital-coins-has-central-banks-considering-e-versions.

[17] Os primeiros testes da criptomoeda do banco central chinês já foram realizados: https://www.bloomberg.com/news/articles/2017-02-23/pboc-is-going-digital-as-mobile-payments-boom-transforms-economy.

[18]Interpretado como o último recurso dos bancos centrais, o lançamento da moeda digital do banco central estadunidense – Federal Reserve – é aguardado no mundo inteiro: http://www.nasdaq.com/article/fedcoin-could-replace-the-dollar-as-we-know-it-cm774260.

[19] Como a emissão da moeda ser fixa por algoritmo, ser anônima ou pseudônima, descentralizada em arquitetura P2P e de código aberto.

[20] Análise pode ser lida na íntegra em: https://www.bloomberg.com/news/articles/2016-12-11/blockchain-lures-central-banks-as-danes-consider-minting-e-krone.

Diálogos Internacionais

Divulgação científica de Relações Internacionais, Defesa e Economia Política Internacional ISSN 2596 2353