Por Beatriz Guimarães de Araujo
O resultado da consulta popular realizada na Grã-Bretanha¹ suscitou uma enorme gritaria tanto pela direita quanto pela esquerda europeia, especialmente devido à forte repercussão mundial. Com implicações imediatas práticas ainda incertas, o valor simbólico do crivo popular pela saída do projeto europeu causou muito mais incomodo na comunidade internacional, afetada em diversos setores. A aparência de prevalência da democracia e do retorno de uma postura nacionalista esconde, em verdade, a essência do acirramento da ideologia capitalista em seu formato neoliberal em meio aos desdobramentos da crise internacional. A compreensão do assunto requer uma retomada da perspectiva histórica.
Na trajetória da integração via União Europeia, o Reino Unido nunca teve uma participação de liderança, pelo contrário, só aderiu à Comunidade Econômica Europeia em 1973, junto com Irlanda e Dinamarca. Desde o início o viés franco-germânico do projeto integracionista era claro. Somente no momento de crise e incertezas em relação ao padrão monetário-financeiro internacional é que os britânicos procuraram guarida no continente. Nesse período, já estavam em vigor mecanismos de cooperação monetária que viriam a desdobrar-se na área monetária comum. Ainda assim, a entrada não significou a adesão a todas as iniciativas envolvidas no âmbito comunitário. Em uma confortável posição de observador privilegiado, aguardou o compasso das mudanças sem maiores enlaces formais. Mesmo na euforia que contaminou o cenário europeu e mundial com o Tratado de Maastricht (1992), o Reino Unido manteve-se cético e não adotou a moeda única, conservando a libra.
Esse detalhe faz muita diferença na análise do caso, uma vez que o impacto da saída será bem menor do que se o mesmo ocorresse com um país adotante do Euro², como fora cogitado pela Grécia. Mesmo assim, a estreita maioria favorável à denúncia dos tratados comunitários gerou cataclismos no mundo, com a renúncia do primeiro-ministro David Cameron, a queda das bolsas econômicas, desvalorização histórica da Libra, convocação de emergência do Conselho Europeu e incertezas em todo o mundo sobre os rumos do elogiado e copiado projeto europeu de integração.
Mas o que significa a saída do Reino Unido? Essa saída significa que os tratados europeus deixam de ser aplicados no Reino Unido em até dois anos após a notificação de retirada. Contudo, pode haver uma extensão deste prazo caso haja um acordo entre a UE e o Reino Unido. É possível que esse processo leve um longo tempo, pois precisa ser negociada a saída, em segundo, ser negociado acordos com o bloco e, por fim, acordos comerciais com países de fora da UE. Será um tempo de incertezas financeiras e de como a moeda libra reagirá com essa separação. Outro assunto pertinente que intriga a todos é a questão sobre a livre circulação de pessoas entre a União Europeia e o Reino Unido, tendo em vista que diversas pessoas estão atualmente circulando por essas fronteiras sem visto. Com essa saída, essa circulação chega ao fim. Voltará a ser necessário o pedido de visto para a entrada e permanência nos países que compõem o Reino Unido (Inglaterra, Irlanda do Norte, Escócia e País de Gales). A taxa de imigrantes, tantos os turistas quanto aqueles que trabalham, deve cair.
Entretanto, vale a pena ressaltar que a decisão final sobre deixar ou permanecer no bloco europeu tem que partir oficialmente do parlamento, no qual a maioria é contrária à sua saída. Uma decisão oficial oposta ao resultado do referendo pode ser tomada, porém levaria a uma crise política interna que deverá ser avaliada de acordo com o impacto que teria. Enquanto o artigo 50 do Tratado da União Europeia, que estabelece o procedimento da saída de um país do bloco, não for invocado, não é possível começar as negociações para efetivar essa saída. Ainda há um longo caminho até a saída formal e definitiva, sobretudo após a péssima repercussão interna³.
Após 40 anos de união, o Reino Unido é o primeiro a sair da UE. Mais do que um transtorno prático, há um efeito geopolítico importante. O esvaziamento de um aliado relevante que, ainda que omisso, contribuía para garantir legitimidade e coesão ao bloco. O projeto franco-germânico começa a expor ainda mais suas fraturas, ainda em meio aos desdobramentos da crise que assola o capitalismo central. A mais grave delas e que se relaciona diretamente com o caso britânico é a reverberação dos sentimentos xenófobos e isolacionistas dos europeus em relação aos migrantes. Por mais que parcelas da esquerda tenham razão em criticar a falácia da União Europeia, que aparenta ser um projeto moderno, quando, em verdade esconde uma agenda neoliberal que fomenta a desconstrução do modelo de bem-estar social (OSORIO, 2015); os motivos que fundamentaram o referendo no Reino Unido se pautam nas demandas da direita mais extremista. Esse setor instrumentaliza em nome de um nacionalismo feroz toda a deterioração social e democrática que está na essência da União Europeia, em sua consolidação no formato pós-fordista, após a década de 1990.
A história está sendo reescrita e somente o futuro poderá nos mostrar como o maior bloco econômico se comportará a partir de agora. Teme-se que haja um efeito dominó com outros países tendo referendos similares. Aos poucos saberemos se a UE é forte o suficiente para aguentar a saída do Reino Unido e se manter unida ou não. Uma coisa pode ser dita: é hora de se repensar o projeto europeu e os rumos do capitalismo na Europa.
Beatriz Guimarães de Araujo é graduada em Relações Internacionais pela UFRRJ e analista de comércio exterior na Saga Welco.
1 – Importante ressaltar a diferença terminológica existente entre Grã-Bretanha e Reino Unido. A Grã-Bretanha refere-se às unidades políticas que compõem a ilha, abarcando Inglaterra, País de Gales e Escócia, enquanto que o Reino Unido toca a Grã-Bretanha inteira e a Irlanda do Norte. A despeito da sutil, mas relevante diferença, tendo em vista o uso disseminado pelos meios de comunicação, as duas palavras serão utilizadas como se fossem sinônimos.
2 – Cabe ressaltar que atualmente a Zona do Euro é composta por 18 países enquanto que a União Europeia conta a aderência de 28 países.
3 – O resultado do referendo já está provocando mudanças internas no Reino Unido que poderiam ser consideradas esperadas. Irlanda do Norte já fala em uma possível aproximação com intenção de união com a Irlanda (não faz parte do Reino Unido) e a tentativa de voltar ao bloco europeu. A Escócia tentaria ter uma independência cada vez mais da Inglaterra e vê a possibilidade de ter um futuro no bloco europeu. Isto acontece porque entre os quatro países que compõem o Reino Unido, a Inglaterra é o que possui a moeda mais forte e uma economia mais estável, tendo mais chance de sucesso de “sobreviver” fora do bloco, enquanto os demais países não.
Referências bibliográficas
ALDECOA LUZÁRRAGA, Francisco e GUINEA LLORENTE, Mercedes. La Europa que viene: El Tratado de Lisboa. Versiones consolidadas del Tratado de la Unión Europea y del Tratado de funcionamento de la Unión Europea. Madri: Marcial Pons, 2008.
ARAUJO, Beatriz Guimarães. A formação da União Europeia e sua trajetória dentro do Sistema Monetário-Financeiro da Hegemonia Estadunidense. Monografia. Graduação em Relações Internacionais. Seropédica: UFRRJ, 2015.
BLOCK, Fred. Los Orígenes del Desorden Económico Internacional. La política monetaria internacional de los Estados Unidos, desde la Segunda Guerra Mundial hasta nuestros días. México D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1989.
HIRSCH, Joachim. Teoria Materialista do Estado: processo de transformação do sistema capitalista de Estados. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2010.
MASCARO, Alysson. Estado e Forma Política. São Paulo: Boitempo Editorial, 2013.
OSORIO, Luiz Felipe Brandão. Um estudo crítico da União Europeia: contradições de seu desenvolvimento institucional e normativo. Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Economia Política Internacional da UFRJ. Rio de Janeiro, UFRJ/IE: 2015.
Texto excelente!
Texto excelente!