O óbito da política externa ativa e altiva

Por Bernardo Salgado Rodrigues
Desde a primeira eleição de Lula para a presidência, evidencia-se uma inflexão da política externa brasileira (PEB), representando “um verdadeiro protagonismo nas relações internacionais, com a intenção real de desenvolver uma diplomacia ativa e afirmativa, encerrando uma fase de estagnação e esvaziamento” (VISENTINI, 2013, p.112), cuja “nova geografia econômica” atualizou a “construção de uma nova ordem econômica internacional” (SANTOS, 2005, p.18) numa “clara visão de que era necessário reequilibrar o jogo político e econômico mundial.” (AMORIM, 2013, p.120) Em outros termos, como afirma o ex-chanceler, Celso Amorim, uma política externa ativa e altiva, buscando se associar com seu entorno estratégico e pólos emergentes no sistema internacional.
No lado oposto, visualiza-se as diretrizes da nova política externa brasileira, proposta pelo ministro interino, José Serra, em discurso de posse no Ministério de Relações Exteriores (MRE), no dia 18/05/2016[1]. As dez diretrizes propostas (e suas críticas) são: 1 – “desideologização” da política externa brasileira (negação de que todo discurso, ainda que se proponha anti-ideológico, é ideológico); 2 – defesa da “democracia” (de um governo ilegítimo) e princípio de não ingerência (seletiva); 3 – responsabilidade ambiental (a fim de “receber recursos caudalosos de entidades internacionais interessadas em nos ajudar a preservar as florestas e as reservas de água e biodiversidade do planeta”, no qual interesse de empresas internacionais e preservação ambiental são um paradoxo por si só); 4 – soluções pacíficas e negociadas para os conflitos internacionais em todos os foros globais e regionais (com exceção do seu entorno estratégico latinoamericano); 5 – iniciativa de negociação de acordos bilaterais de comércio (negando a tendência multilateral das relações internacionais); 6 – abertura de mercados e concessões na base da reciprocidade equilibrada (não visualizando as externalidades negativas para o setor produtivo nacional); 7 – renovar o Mercosul alinhando-o às diretrizes da Aliança do Pacífico (buscando alinhamento ideológico com as políticas externas de México e Argentina na conjuntura atual, e, contradizendo a diretriz número 1, uma vez que busca, na retórica, uma diplomacia “não mais das conveniências e preferências ideológicas”; 8 – ampliação do intercâmbio com Europa, Estados Unidos e Japão (alinhamento com antigas potências hegemônicas e revertendo a lógica Sul-Sul de aproximação com países emergentes); 9 – relação com países asiáticos e africanos a partir de uma “solidariedade estreita e pragmática” (e não a partir de uma visão geoestratégica de longo prazo); e 10 – políticas de comércio exterior visando a competitividade e a produtividade (utilizando-se de mecanismos contrários a prerrogativa e/ou reproduzindo o conceito de deterioração dos termos de troca, uma vez que não delineia quais setores da economia seriam incoporados na ampliação das exportações brasileiras, historicamente primário-dependentes). Ou seja, o Golpe de Estado Institucional instaurado reflete nas relações internacionais, buscando reverter a prática de um política externa ativa e altiva de maior protagonismo brasileiro no cenário internacional.
Analisando a realidade a partir de uma pespectiva continental latino-americana, houve experiências que utilizaram a mesma metodologia, ensaios de golpes de Estado que não necessitaram dos exércitos: foi o caso de Honduras (2009) e Paraguai (2012), assim como as tentativas de golpe no Equador (2010), Bolívia (2008) e Venezuela (2002). Tais ações fazem parte de um projeto de recolonização continental, uma vez que as grandes potências buscam, principalmente, nos recusos naturais estratégicos da região a fonte para a estruturação futura de suas economias. Ou seja, o golpe no Brasil representa um golpe contra o projeto de integração regional sul-americana, não somente contra o Governo em si.
A reação de governos estrangeiros, com um posicionamento contrário ao processo de impeachment tal qual fora realizado, além de ratificar a indignação internacional diante de um golpe institucional, revela também a preocupação de que essas práticas, travestidas de legalidade, possam se disseminar no mundo, principalmente na América Latina que, com a ascensão de projetos de direita (como apontado no artigo “O pêndulo latino-americano de Polanyi”) buscam promover a desestabilização de governos democraticamente eleitos, quando não conseguem chegar ao governo pelas vias legais (tendo como exceção a Argentina de Macri).
A nomeação de José Serra rompe com uma tradição diplomática brasileira cujos ministros correspondem a profissionais com histórico de carreira e competência na área internacional. Ainda, não possui preparo técnico, envergadura política e legitimidade institucional para liderar a chancelaria brasileira. Além dessa deformação técnica, a nomeação de Serra é um ato estratégico tanto para a conciliação da oposição pós-golpe como para o projeto eleitoral visando às eleições de 2018, seja pelo fortalecimento da ideologia do PSDB e/ou pela mudança de partido do ex-senador para o PMDB visando a corrida presidencial, uma vez que em seu atual partido existe a concorrência de Aécio Neves e Geraldo Alckmin.
Assim, algumas tendências desta nova política externa brasileira podem ser apontadas:
1- Reaproximação ideológica com os EUA: uma vez que sempre foi a orientação e matriz ideológica do PSDB, partido do atual ministro interino e que encontra muitos adeptos no Itamaraty;
2- Ruptura Sul-Sul: afastamento da PEB baseada na “Política Sul-Sul”, tanto em seu entorno estratégico sul e latino-americano (MERCOSUL, UNASUL, CELAC) como com os países emergentes (BRICS, IBAS);
3- Diminuir a influência chinesa: tanto no Brasil como na América Latina, com o aval dos EUA, cuja região sempre foi considerada como seu espaço geoestratégico por excelência, desde a Doutrina Monroe (1824);
4- Abertura comercial e financeira ortodoxa: com possibilidade de inserção no TTP (como apontado no artigo “TPP, TTIP, TISA e a geopolítica da “Segunda Guerra Fria”);
5- “Soberania às avessas”: a partir da submissão às grandes potências, de um lado, e a ingerência nos assuntos internos de outros países da região, por outro;
6- Pré-sal em cheque: retomada do projeto de Lei 131/2015, de autoria de Serra, que autoriza a não-obrigatoriedade da Petrobras nos campos do Pré-sal, num projeto inicial de desnacionalização e posterior de privatização da Petrobras.
Em termos gerais, como bem destaca Marcelo Zero, a nova política externa traria “a adesão acrítica a esses acordos ou mesmo a acordos bilaterais de livre comércio com os EUA, […] , implodiria o Mercosul e a integração regional, tornaria inútil a nossa participação no BRICS e inviabilizaria a vertente Sul-Sul da nossa política externa. Voltaríamos a ter uma política externa dependente, periférica, que orbitaria em torno dos interesses da única superpotência do planeta e de seus aliados tradicionais[2].” Ainda, essa mudança no MRE representa a dualidade da elite intelectual e política conservadora brasileira: comportam-se como vira-latas diante das potências ocidentais e com extrema prepotência perante seus vizinhos. Essa nova política diverge dos interesses brasileiros perante sua região e parceiros emergentes estratégicos, claramente entrando em choque e contradição com uma posição ativa e altiva.
Para o campo progressista, nacionalista e/ou de esquerda, além da constante luta multifacetada, ainda mais importante é a construção de um novo paradigma, que conjugue a unidade, diante da fragmentação atual, com mudança radical. Na última década, se iniciou o resgate de um projeto nacional-desenvolvimentista, autônomo e multilateral da política externa brasileira. É essencial à esquerda torná-lo uma política de Estado do MRE, uma orientação que almeje o consenso, independente de orientações econômicas e partidárias.

Referências

AMORIM, Celso. Breves narrativas diplomáticas. São Paulo: Benvirá, 2013.

SANTOS, Luís Cláudio Villafañe G.. A América do Sul no discurso diplomático brasileiro. Revista Brasileira de Política Internacional, Brasília, v. 48, n. 2, p.1-20, jul. 2005.

VISENTINI, Paulo Fagundes. A projeção internacional do Brasil: 1930-2012: diplomacia, segurança e inserção na economia mundial. Rio de Janeiro: Elsevier, 2013.



[1]http://www.itamaraty.gov.br/pt-BR/discursos-artigos-e-entrevistas/ministro-das-relacoes-exteriores-discursos/14038-discurso-do-ministro-jose-serra-por-ocasiao-da-cerimonia-de-transmissao-do-cargo-de-ministro-de-estado-das-relacoes-exteriores-brasilia-18-de-maio-de-2016
[2]http://brasilnomundo.org.br/analises-e-opiniao/o-papel-da-politica-externa-na-restauracao-do-neoliberalismo-tardio/#.Vz1FCvkrLIW

Diálogos Internacionais

Divulgação científica de Relações Internacionais, Defesa e Economia Política Internacional ISSN 2596 2353