13 anos de Bolsa Família: a contemporaneidade da transferência de renda e dos “sistemas de abonos”.

Por Edilson Nunes dos Santos Junior

Em outubro completaram-se treze anos do Programa Bolsa Família (PBF). Lançado em 2003 pelo presidente Luís Inácio Lula da Silva, o programa tem sido responsável pela inclusão social de famílias que vivem em situação de pobreza e de extrema pobreza. Com forte inspiração na Speenhamland, ou “sistemas de abonos”, inglesa de 1795, o PBF é um programa de transferência de renda para famílias que vivem abaixo da linha da pobreza. Segundo dados do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Social, somente em outubro deste ano já foram pagos mais de 20 milhões dos chamados Benefícios Variáveis, ou seja, “concedido às famílias com renda mensal de até R$ 154,00 per capita, desde que tenham crianças, adolescentes de até 15 anos, gestantes e/ou nutrizes”[1].
A data é importante e merece ser comemorada. No entanto, as perspectivas futuras dos diversos programas sociais criados nos últimos anos e os avanços conquistados através deles merecem atenção. A recente aprovação em dois turnos da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 241/2016 na Câmara dos Deputados (e que tramita no Senado como PEC 55) prevê um limite de gastos para todos os poderes da União, incluindo aqueles com saúde, educação e programas de assistência social. Segundo defende Laura Carvalho, professora de economia da USP e colunista da Folha de São Paulo, o problema fiscal do país não reside nas despesas primárias federais, que se mantiveram estáveis entre 2011 e 2014 e recuaram em 2015. A proposta não ataca as reais causas do aumento da dívida pública, quais sejam, a falta de crescimento econômico, a queda da arrecadação tributária e o pagamento de juros. Para a economista “[…] Trata-se de um projeto de longo prazo de desmonte do Estado de bem-estar social brasileiro”.[2] 
Este assunto já está sendo profundamente debatido nas redes sociais e nas mídias de oposição ao atual governo. Portanto, não aprofundarei a análise das consequências futuras da proposta para o futuro do Estado de bem-estar social brasileiro. Interessa-me aqui a reflexão da expansão do discurso neoliberal de classe média que propiciou uma inflexão que pode ser pensada em dois eixos: o desvinculação entre a ascensão social e econômica e programas de transferência de renda por parte daqueles que se beneficiaram com as conquistas proporcionadas pelas últimas administrações progressistas e a percepção pela classe média de que a disponibilidade da mão de obra em diversas categorias ficou prejudicada por esses programas sociais – e aí estou falando, principalmente, do PBF, o representante mais famoso e mais importante dos programas sociais do período Lula-Dilma. Dessa forma, visitarei os efeitos do “sistema de abonos” inglês no início do século XIX a partir da análise de Karl Polanyi e daí tentar traçar um paralelo. Resguardando os devidos processos históricos, podemos (o autor e os leitores) acrescentar mais um elemento à análise da atual conjuntura política, social e econômica[3].
A Speenhamland vigorou de 1795 a 1834 e teria sido responsável por impedir um mercado de trabalho formal na Inglaterra desse período.[4] O sistema foi proposto por juízes do condado de Berkshire que decidiram conceder abonos salariais de acordo com o preço do pão, assegurando, assim, uma renda mínima aos trabalhadores, independentemente do que recebessem por pagamento. Segundo os magistrados ingleses, quando o preço do quilo do pão alcançasse “X” shillings, qualquer pessoa pobre teria direito a “3X” shillings por semana, fosse por trabalho, fosse pelo imposto dos pobres.[5] A ideia era que o indivíduo recebesse uma assistência, mesmo quando estivesse empregado, se sua renda familiar não alcançasse o que estava estabelecido na tabela oficial.[6] 
Para Polanyi, o sistema de abonos salariais derrubou os salários a níveis baixíssimos, fazendo com que os trabalhadores se vissem forçados a recorrer ao sistema. Ao mesmo tempo, a lógica se inverte, pois os indivíduos reduziam sua capacidade produtiva uma vez que os valores dos pagamentos caíram substancialmente e recorriam aos abonos. O biscoito vende mais porque é fresquinho ou é fresquinho porque vende mais? Criou-se um círculo vicioso que contribuiu somente para a pauperização do trabalhador rural e para a conclusão de que os abonos serviam para a dominação dos latifundiários e embaraçavam a formação de um mercado de trabalho estabilizado tanto no campo quanto na cidade.
A Speenhamland foi criada no mesmo ano em que o Act of Settlement era extinguido. Este decreto, de 1662, determinava que um “pobre” só podia buscar trabalho dentro da sua própria paróquia, assim impedindo a migração indiscriminada de trabalhadores de paróquias mais pobres para paróquias mais ricas. Isso imobilizou o mercado de trabalho durante muito tempo, impedindo que os capitalistas ascendentes encontrassem mão de obra mais barata em outras regiões. De acordo com Polanyi a contradição estava posta:

[…] o Act of Settlement estava sendo abolido porque a Revolução Industrial exigia um suprimento nacional de trabalhadores que poderiam trabalhar em troca de salários, enquanto a Speenhamland proclamava o princípio de que nenhum homem precisava temer a fome porque a paróquia o sustentaria e à sua família, por menos que ele ganhasse”.[7] 

Um dos principais objetivos da Speenhamland foi criar uma barreira na zona rural contra a onda ascendente dos salários na cidade. Era preciso impedir a desarticulação dos trabalhadores no campo, bem como reforçar o poder tradicional, não permitir o êxodo rural e aumentar os valores pagos sem sobrecarregar os fazendeiros.[8] No geral, Polanyi assevera que o sistema de abonos foi eficiente, pois beneficiou os empregados, subsidiando os empregadores através dos fundos públicos. O resultado final foi a redução dos salários a níveis inferiores à subsistência.[9] 
Em 1834 a Speenhamland foi extinta através Poor Law Reform, que extinguia o sistema de abonos e qualquer outro tipo de assistência pública aos trabalhadores. Fruto da nascente classe média inglesa, a revogação desse sistema tinha como objetivo a transformação definitiva da sociedade em uma economia de mercado.[10] A reforma foi posta em prática rapidamente, desde que começou a ser discutida em 1832 e esse processo teria se dado pela “profunda convicção de amplos estratos da população, inclusive os próprios trabalhadores, de que o sistema que pretendia auxiliá-los, na aparência, estava de fato espoliando-os, e que o “direito de viver” era uma enfermidade que os levaria à morte”.[11] 
Após um longo período de assistência aos mais pobres, os ingleses estavam convictos de que o laissez-faire era a última instância que poderia garantir a sobrevivência dos trabalhadores. Polanyi identificou na classe média urbana a responsável por um discurso que abrisse caminho para a liberação da exploração da mão de obra disponível. A importância do “mercado” também não passou despercebida por Edward P. Thompson quando refletiu sobre a teoria de autorregulação do mercado de cereais proposto por Adam Smith ao analisar os protestos populares contra o aumento do pão na Inglaterra setecentista. Segundo o autor, Smith acreditava que “a operação natural da oferta e demanda no mercado livre maximizaria a satisfação de todos os grupos e estabeleceria o bem comum. O mercado nunca era mais bem regulado de que quando deixavam que se regulasse por si mesmo.”[12] Entretanto, para Thompson, o discurso liberal smithiano era vazio de comprovação real, não havendo como estabelecer provas que preços altos são formas eficazes de regular a produção. Afirma, ainda, que a ausência de regulação do Estado na economia impressiona “menos como um ensaio de investigação empírica do que um excelente ensaio de lógica que se autovalida.”[13] 
Hoje, com a demonização das políticas públicas de transferência de renda, presenciamos a força da autorregulação, do livre mercado e da meritocracia na pauta do discurso da classe média brasileira, principalmente, em contraposição ao discurso anteriormente dominante de um Estado desenvolvimentista e promotor da inclusão social da população em situação precária.
Lá na Inglaterra do XIX, como cá no Brasil do XXI, após um determinado período de políticas assistenciais, disseminou-se a certeza de que ao Estado não cabe a proteção extensiva da população e que cada um é capaz de conquistar e defender seus direitos num mercado livre e meritocrático. O resultado das recentes eleições municipais atesta o poder desse senso comum, potencializado pela mídia doméstica dominante. Para os ingleses, o desfecho da ausência da proteção estatal para os trabalhadores foi a destruição das condições mínimas de sobrevivência, como esclareceu Friedrich Engels em 1844 sobre Londres, ao atestar tal deterioração afirmando saber “muito bem que por cada homem que vive esmagado sem piedade pela sociedade, 10 vivem melhor, mas afirmo que milhares de corajosas e laboriosas famílias — muito mais corajosas e honradas que todos os ricos de Londres — se encontram nesta situação indigna de um homem e que todo o proletário, sem qualquer exceção, sem que a culpa seja sua e apesar de todos os esforços, pode vir a ter a mesma sorte”.[14] 
Felizmente, cerca de 170 anos nos separam dessa Inglaterra precária e pré-sindicalista. Os trabalhadores e a população mais carente têm, hoje, diferentes canais que possibilitam o resguardo das suas condições mínimas de sobrevivência. No entanto, o discurso dominante de criminalização da pobreza e das políticas públicas de transferência de renda e a aversão à ascensão social e econômica dessa população já mostra indícios de estar bem pavimentado o caminho em sentido de “flexibilizar” as conquistas recentes em prol de interesses privados, “flexibilizando” a qualidade de vida dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros.
A gente sabe que a História se repete primeiro como tragédia e depois como farsa. Oxalá escapemos de uma forma ou da outra.
Referências

BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Agrário e Social. Matriz de Informação Social. Disponível em: http://aplicacoes.mds.gov.br/sagi-data/misocial/tabelas/mi_ social.php. Acessado em: 29/10/2016.

CARVALHO, Laura. PEC 241 pode prolongar a crise. Folha de S. Paulo. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/laura-carvalho/2016/10/1822278-pec-241-pode-prolongar-a-crise.shtml. Acessado em: 29/10/2016.
ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora em Inglaterra. Tradução: Analia C. Torres. Porto: Editora Afrontamento, 1975.
POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens de nossa época. Tradução de Fanny Wrabel. 2ª ed. Rio de Janeiro: Campus, 2000.
RIBEIRO, V. C. M.; TEIXEIRA, Daniela. Política Pública de Transferência de Renda: Uma análise sobre a Speenhmland e o Programa Bolsa Família. In: V CONGRESSO EM DESENVOLVIMENTO SOCIAL: Estado, Meio Ambiente e Desenvolvimento, 2016, Montes Claros. Anais do V Congresso em Desenvolvimento Social: Estado, Meio Ambiente e Desenvolvimento, 2016. Disponível em: http://bit.ly/2ftDiyc. Acessado em: 06/11/2016.
THOMPSON, E. P. Costumes em Comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. Revisão técnica: Antonio Negro, Cristina Meneguello, Paulo Fontes. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 1998.

[1]BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Agrário e Social. Matriz de Informação Social. Disponível em: http://aplicacoes.mds.gov.br/sagi-data/misocial/tabelas/mi_social.php. Acessado em: 29/10/2016.
[2]CARVALHO, Laura. PEC 241 pode prolongar a crise. Folha de S. Paulo. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/laura-carvalho/2016/10/1822278-pec-241-pode-prolongar-a-crise.shtml. Acessado em: 29/10/2016.
[3] Essa proposta pode ser lida em uma perspectiva econômica na análise proposta em: RIBEIRO, V. C. M.; TEIXEIRA, Daniela. Política Pública de Transferência de Renda: Uma análise sobre a Speenhmland e o Programa Bolsa Família. In: V CONGRESSO EM DESENVOLVIMENTO SOCIAL: Estado, Meio Ambiente e Desenvolvimento, 2016, Montes Claros. Anais do V Congresso em Desenvolvimento Social: Estado, Meio Ambiente e Desenvolvimento, 2016. Disponível em: http://bit.ly/2ftDiyc. Acessado em: 06/11/2016.
[4] Polanyi, Karl. A grande transformação: as origens de nossa época. Tradução de Fanny Wrabel. 2ª ed. Rio de Janeiro: Campus, 2000. p. 99.
[5] Idem. p. 100.
[6] Idem. p. 101.
[7] Idem. p. 111-112.
[8] Idem. p. 118.
[9] Idem. p. 121.
[10] Idem. p. 125.
[11] Idem. p. 126.
[12] THOMPSON, E. P. Costumes em Comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. Revisão técnica: Antonio Negro, Cristina Meneguello, Paulo Fontes. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 1998. p. 161.
[13] Idem. p. 162.
[14] ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora em Inglaterra. Tradução: Analia C. Torres. Porto: Editora Afrontamento, 1975. p. 64.

Edilson Nunes dos Santos Junior é Doutorando em História Social pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense. Mestre em História Social e Especialista em História do Rio de Janeiro pelo mesmo programa. Possui licenciatura em História pela Universidade Estácio de Sá. Desenvolve pesquisa sobre navegação e os trabalhadores remadores, barqueiros e marinheiros  do litoral do Rio de Janeiro, suas relações de trabalho, bem como o entrelaçamento de negros, pardos e brancos; escravizados, libertos e livres. Tem experiência na área de História, com ênfase em História do Rio de Janeiro e História do Brasil Império no longo Oitocentos. É associado da Sociedade Brasileira de Estudos dos Oitocentos (SEO) e pesquisador do Núcleo de Estudos de Migrações, Identidades e Cidadania (NEMIC) e do Centro de Estudos do Oitocentos, ambos da Universidade Federal Fluminense.

Diálogos Internacionais

Divulgação científica de Relações Internacionais, Defesa e Economia Política Internacional ISSN 2596 2353