TPP, TTIP, TISA e a geopolítica da “Segunda Guerra Fria”
Por Bernardo Salgado Rodrigues
Desde a derrocada do bloco socialista e a desintegração da União Soviética, os Estados Unidos continuam a implementar uma estratégia de dominação contra a presença da Rússia e, mais recentemente, da China, na Eurásia e no Oriente Médio. Como afirma Luiz Alberto Moniz Bandeira em seu último livro, “A Segunda Guerra Fria”, a peleja não se alimenta da ideologia, mas de interesses estratégicos dos EUA, Rússia e China, onde a Guerra Fria continua em uma etapa histórica superior, como demonstram os acontecimentos na Ucrânia, na Síria e nos demais países do Oriente Médio. Apesar de, em termos geoestratégicos, os maiores focos de tensão da “Segunda Guerra Fria” se concentrarem na Eurásia, assim como na Guerra Fria de 1945-1991, essa rivalidade geopolítica transcende as barreiras geográficas e engloba todo o sistema internacional.
Para os Estados Unidos, seus principais objetivos estratégicos no século XXI são 1) manter sua hegemonia militar em todo o globo; 2) manter sua hegemonia sobre os sistemas de comunicações e de informação; 3) manter sua hegemonia nos organismos econômicos internacionais (como OMC e FMI); 4) manter sua hegemonia sobre o acesso e vias de acesso a recursos naturais no território de outros países; 5) manter sua hegemonia política (principalmente através do Conselho de Segurança da ONU); 6) manter a vanguarda americana no desenvolvimento científico e tecnológico; e 7) manter abertos os mercados de todos os países para seus capitais e para suas exportações de bens e serviços.[1]
Neste último aspecto, o Trans Pacific Partnership (TPP), acordo assinado em 2015 pelos Estados Unidos com outros países do mundo pertencentes à Bacia do Pacífico, é o exemplo mais elucidativo para a garantia através de negociações e normas multilaterais dessa abertura. Da mesma maneira, a tática estadunidense busca ampliar sua estratégia global através do Transatlantic Trade and Investment Partnership (TTIP) e do Trade in Service Agreement (TISA), acordos ainda em andamento.
O TPP[2] é o maior acordo regional na história, sob a liderança dos Estados Unidos, cujas economias combinadas são responsáveis por 40% do PIB mundial, 25% das importações mundiais, 30% das exportações mundiais e 11 % da população mundial, com 800 milhões de habitantes, abrangendo cinco países latino-americanos (Chile, Estados Unidos, México, Peru e Canadá), cinco países da Ásia (Japão, Brunei, Cingapura, Vietnã e Malásia) e dois da Oceania (Nova Zelândia e Austrália). Este acordo de livre comércio, negociado a portas fechadas e com cláusulas de confidencialidade, tem por objetivo reduzir as barreiras comerciais, maior acesso a mercados, estabelecer um quadro comum para a propriedade intelectual, regras de origem, defesa comercial, compras públicas, serviços, investimentos, comércio eletrônico, telecomunicações, regras do direito do trabalho e direito ambiental, coerência regulatória e estabelecer um mecanismo de resolução de litígios entre investidor-Estado.
O TTP é alvo de críticas tanto na sociedade civil norte-americana[3] como nos demais países signatários, uma vez que os acordos foram realizados de maneira confidencial e possuem diversas externalidades negativas, como a possível queda dos empregos dentro dos Estados Unidos e a massiva entrada de produtos estadunidenses nos demais países, por vezes destruindo a sua já incipiente indústria nacional de médio-alto valor agregado. Dentre as inúmeras controvérsias resultantes da assinatura deste acordo pelos países membros, três se destacam pela perda de soberania que acarretará aos países de menor poder político e econômico: no que se refere à propriedade intelectual, estabelece sistema de responsabilidade para os prestadores de serviços de Internet, permitindo que os provedores de serviço determinem unilateralmente quando se está infringindo a propriedade intelectual e limitando, assim, a privacidade na Internet; no tocante aos investimentos, consolida o sistema investidor-Estado, permitindo que empresas multinacionais demandem e obtenham dos governos indenização quando haja mudanças nas leis que prejudiquem seus lucros futuros; e quanto ao acesso a medicamentos, através da proteção de dados, as empresas farmacêuticas manterão direito de fórmula, bloqueando a entrada de medicamentos genéricos – e mais baratos – ao mercado.
O TTIP[4] é uma proposta de acordo de livre comércio entre a União Europeia e os Estados Unidos, agregando 28 países, com aproximadamente 60% do PIB mundial, 33% do comércio mundial e 42% do comércio mundial de serviços[5]. O tratado busca aumentar o volume de exportações e importações entre o bloco e os EUA, além de intensificar os investimentos e determinar mais facilmente a procedência dos produtos, reduzindo custos através da regulação/equalização de regras, buscando reduzir as barreiras comerciais como direitos aduaneiros, burocracia, restrições ao investimento e remoção de tarifas.
Entretanto, o acordo prevê um golpe às políticas sociais e ambientais[6][7]: os Estados deverão atuar em base às considerações comerciais; contempla a criação de um Investment Court System (ICS), tribunal privado que outorga às multinacionais o direito a demandar aos Estados quando consideram que as leis são obstáculos ao comércio; tentativa de ressuscitar a ACTA (Anti-Counterfeiting Trade Agreement), culminando numa violação da privacidade e liberdade de expressão; problemáticas referentes à segurança alimentar, como a autorização dos Organismos Geneticamente Modificados e utilização de hormônios de crescimento na carne; liberalização e desregulamentação dos serviços financeiros, com maior participação do setor financeiro no processo legislativo; aumento da duração das patentes dos medicamentos, impossibilitando a venda de genéricos a preços mais acessíveis, assim como serviços de emergência poderão ser privatizados e, assim, destruindo o NHS (National Health System) europeu; diminuição dos padrões de proteção ambiental, como a autorização da exploração de gás de xisto (fracking), proibido na Europa e permitido nos EUA, dentre outros.
O TISA[8] é um acordo comercial atualmente negociado por 23 membros da Organização Mundial do Comércio (OMC), incluindo a UE, correspondendo a aproximadamente 70% do PIB mundial e 70% do comércio mundial de serviços. O acordo é baseado no General Agreement on Trade in Services (GATS) da OMC, no qual as propostas são baseadas na abertura dos mercados e melhoria das regras de comércio internacional em áreas como licenciamento, serviços financeiros, telecomunicações, e-commerce, transporte marítimo, e empregos profissionais estrangeiros e temporários para prestação de serviços.
As críticas a este acordo talvez sejam as mais enfáticas, uma vez que abrange todo o globo terrestre, e não somente um espaço geopolítico específico. Uma vez que as rodadas de negociação da OMC se encontram estagnadas, acordos mais liberais têm sido estabelecidos em paralelo (como os tratados bilaterais e o próprio TISA), principalmente por conta da resistência de alguns países emergentes. Com o vazamento da confidencialidade do acordo pelo Wikileaks em 2014[9], as críticas ao projeto somente aumentaram[10]: proposição de listas negativas de cada país para exclusão do acordo; status quo, preservando-se o grau de liberalização vigente; cláusula “trinquete”, definindo que qualquer desregulação promovida em um país que seja parte do acordo se torna imediatamente permanente; cláusula para o futuro, no qual os termos do acordo valem para os serviços hoje e que venham a existir no futuro; proibição de normas nacionais e restrição a regulações locais; liberalização não diferenciada, o que valerá sempre aos países que façam parte do TISA o acordo mais liberalizante estabelecido pelos mesmos com qualquer outro país; bases jurídicas sólidas e painéis arbitrais independentes, onde o julgamento em caso de controvérsia se daria em tais painéis, sem qualquer subordinação às leis nacionais ou mesmo aos tratados internacionais; leis não necessárias, no qual o acordo contém uma cláusula que permitirá que qualquer empresa ou Estado membro do TISA possa arguir que uma lei nacional ou uma política de Estado prejudica a livre concorrência; e divulgação pública somente cinco anos depois de assinado o acordo.
Assim, nos termos geopolíticos de uma “Segunda Guerra Fria”, cinco pontos de análise são fundamentais: 1) na América Latina e especialmente na América do Sul, a assinatura do TPP visa conter a expansão do Brasil através do Mercosul e da Unasul, onde “as repercussões ideológicas e geopolíticas de tal acordo podem fraturar a região e suas possibilidades de inserção autônoma”[11]; 2) conter a influência da China no sudeste asiático, uma vez que o tratado abrange cinco países da Ásia, e inclusive na própria Eurásia, onde recentes acordos entre China e Rússia alertam para o histórico problema do controle geopolítico do coração continental eurasiano; 3) estabelecer uma maior presença na Bacia do Pacífico, devido ao aumento da sua importância global nos últimos anos, principalmente em termos comerciais; 4) minar os esforços dos países dos BRICS, que vem estabelecendo acordos multiníveis, como estabelecimento de um Banco de Desenvolvimento e de um Fundo de Contingências; e 5) caso se finalizem os acordos do TTIP e o TISA, ter-se-ia o estabelecimento das bases de uma nova hegemonia global unilateral dos Estados Unidos.
A crise de 2008 iniciou um processo em curso no sistema global que abre uma janela de oportunidade tanto para os países no topo da estrutura hierárquica internacional como para os países emergentes em termos sociais, políticos, econômicos e comerciais. A janela aberta pela “Segunda Guerra Fria” pode ser explorada de forma definitiva a fim de declarar a soberania dos países emergentes ou perpetuar sua dependência e posição secundária no sistema internacional. Os tempos de crise são uma ordem a se decifrar, uma oportunidade a se buscar, uma transformação a se desejar; são sempre momentos difíceis, mas também de mudanças, de novas oportunidades; é o tempo histórico para rever os erros do passado e construir novas estratégias de empoderamento democrático e igualitário no sistema internacional.
[1] BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. A Segunda Guerra Fria: geopolítica e dimensão estratégica dos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. p.20-22
[2] https://ustr.gov/tpp/
[3] http://www.citizen.org/TPP
[4] http://ec.europa.eu/trade/policy/in-focus/ttip/
[5] https://parceriatransatlantica.wordpress.com/
[6] http://www.independent.co.uk/voices/comment/what-is-ttip-and-six-reasons-why-the-answer-should-scare-you-9779688.html
[7] https://parceriatransatlantica.wordpress.com/
[8] http://ec.europa.eu/trade/policy/in-focus/tisa/
[9] https://wikileaks.org/tisa/
[10] http://www.cartacapital.com.br/blogs/blog-do-grri/tisa-a-pior-ameaca-aos-servicos-ja-vista-5750.html
[11] PADULA, Raphael. A projeção do Brasil para o Pacífico no século XXI: desafios e oportunidades na América do Sul. Caxambu: Anpocs, 2015.