Brasil, missões de paz e Congo
Por Suellen Lannes
A prorrogação do seu comando tem relação com a sua atuação no desmantelamento do Movimento 23 de Março (M23) [1], grupo esse que teria sido responsável pelo acirramento dos conflitos no Congo. A atuação do governo brasileiro nessa missão estaria em sintonia com a política prevista no Livro Branco de Defesa Nacional, tanto no aspecto da ampliação da atuação do Brasil no Atlântico Sul como o incentivo da participação crescente em operações de paz organizadas pela ONU. Conforme ilustra o capítulo 1 do Livro Branco e a Estratégia Nacional de Defesa:
A política externa brasileira considera o diálogo e a cooperação internacionais instrumentos essenciais para a superação de obstáculos e para a aproximação e o fortalecimento da confiança entre os Estados. Na relação com outros países, o Brasil dá ênfase a seu entorno geopolítico imediato, constituído pela América do Sul, o Atlântico Sul e a costa ocidental da África. [LIVRO BRANCO DE DEFESA NACIONAL, 2012, p. 12]
O Brasil deverá ampliar a participação em operações de paz, sob a égide da ONU ou de organismos multilaterais da região, de acordo com os interesses nacionais expressos em compromissos internacionais [ESTRATÉGIA NACIONAL DE DEFESA, 2008, p. 62]
Por outro lado, outra corrente vai dizer que as missões, como as que são adotadas atualmente, surgiram em 1956, em decorrência da Guerra de Suez. Diferente da UNTSO e da United Nations Military Group in India and Pakistan (UNMOGIP)[3], a Força de Emergência das Nações Unidas (UNEF), que foi enviada para Suez, tinha como característica a convocação de forças militares de diferentes países. Não se enviava somente observadores, mas sim uma tropa (batalhão) de cada país que teria como função principal manter a paz, ou seja, os seus objetivos não são somente de observação ou supervisão, mas também de atuação em prol de um objetivo mais amplo, a paz. Nesse contexto observa-se “missões de manutenção de paz”.
A adoção da missão de paz foi uma solução encontrada quando o Conselho de Segurança não conseguisse uma unanimidade entre os seus membros e falhasse em alcançar o seu objetivo principal, a manutenção da paz e da segurança internacional. Essa ação estava prevista na resolução 377 da Assembleia Geral da ONU, conhecida como “Unidos pela Paz”, de 1950. Ela previa que, nesse contexto, a Assembleia Geral deveria analisar, imediatamente, essa questão e fazer recomendações para os membros, visando a adoção de medidas coletivas, “incluindo no caso de uma violação da paz ou um ato de agressão, o uso de força armada quando necessário, para manter ou restaurar a paz e segurança internacional” [YEARBOOK OF UNITED NATIONS, 1950, p.10]
O conceito de missão de paz foi baseado nos capítulos VI e VII da Carta das Nações Unidas. Por meio da leitura dos dois artigos pode-se chegar a duas formas de atuação, ou seja, apesar de ambas objetivarem a solução das controvérsias, a forma como se obtém isso, varia.
O capítulo VI prevê a utilização de, somente, meios pacíficos para se solucionar os conflitos. Esse capítulo expõe que, em caso de ocorrência de um conflito, o Conselho de Segurança deve ser acionado e estabelecer providências, tais como: “solução por negociação, inquérito, conciliação, arbitragem, via judicial, recurso e organizações ou acordos regionais, ou qualquer meio pacífico à sua escolha” [CARTA DAS NAÇÕES UNIDAS, 1945, artigo 33]. Caso essas medidas não sejam suficientes, o Conselho “deverá tomar em consideração quaisquer procedimentos para a solução de uma controvérsia que já tenham sido adoptados pelas partes” [CARTA DAS NAÇÕES UNIDAS, 1945, artigo 36].
De forma complementar, o capítulo VII prevê que a possibilidade de emprego de forças armadas para adotar a ação :
[…] que julgar necessária para manter ou restabelecer a paz e a segurança internacionais. Tal ação poderá compreender demonstrações, bloqueios e outras operações, por parte das forças aéreas, navais ou terrestres dos membros das Nações Unidas.” [CARTA DAS NAÇÕES UNIDAS, 1945, artigo 42]
Todos os Membros das Nações Unidas, a fim de contribuir para a manutenção da paz e da segurança internacionais, se comprometem a proporcionar ao Conselho de Segurança, a seu pedido e de conformidade com o acordo ou acordos especiais, forças armadas, assistência e facilidades, inclusive direitos de passagem, necessários à manutenção da paz e da segurança internacionais. [CARTA DAS NAÇÕES UNIDAS, 1945, artigo 43]
Seguindo a sua tradição diplomática, o governo brasileiro sempre pautou pelo incentivo a ações que focassem no capítulo VI, ou seja, em ações pacíficas, por meio da mediação e negociação. Com isso, o Brasil sempre pautou a sua participação em missões que fossem de manutenção de paz [DINIZ, 2007, p.95].
Voltando ao Congo, pela primeira vez na história das missões de paz, a ONU dá o aval para se usar a imposição da força. Nesse quesito, as tropas podem se usar de meios belicosos para se instituir a paz, indo de encontro a tradição brasileira de focar em missões de manutenção de paz. Apesar do governo brasileiro não ter enviado tropas ao Congo, o comando é brasileiro, o que pode gerar um impasse para a política externa brasileira. O sucesso da atuação do general Santos Cruz tem relação com a sua capacidade geracional, mas também com esse novo caminho que a ONU decidiu assumir e evidencia uma nova tendência das operações de paz. Apesar do sucesso não consigo parar de pensar na velha frase Zizek, “essa nova normativa emergente para os ‘direitos humanos’ é, entretanto, a forma em que aparece o seu extremo oposto”.
Notas:
[1] O Movimento 23 de Março (do francês Mouvement du 23-Mars) também é conhecido como Exército Revolucionário Congolês. Pode ser considerado um grupo rebelde, que atua na parte leste do território do Congo, principalmente na província de Kivu do Norte.
[2] “Partilha da Palestina” é um dos nomes dado ao desmantelamento do território da Palestina em 1948 que deu origem ao território de Israel e a incertezas com relação a um futuro Estado Árabe.
Referências bibliográficas:
Estratégia Nacional de Defesa: http://www.defesa.gov.br/projetosweb/estrategia/arquivos/estrategia_defesa_nacional_portugues.pdf
DINIZ, Eugenio. “Peacekeeping and the evolution of foreign policy”. In: FISHEL, J.; SAENZ, A. (Ed.) Capacity-building for peacekeeping: the case of Haiti. Washington: Center for Hemispheric Defense Studies, National Defense University Press, 2007.
Livro Branco de Defesa Nacional: http://www.defesa.gov.br/arquivos/2012/mes07/lbdn.pdf
