:: Quarta do Especialista :: Política Externa como Política Pública: primeiras aproximações a partir do caso brasileiro

Autor convidado: Victor Tibau

Ao longo do século XX, as Relações Internacionais se firmaram como disciplina e campo de estudos e análises sobre os eventos internacionais. Contribuiu muito para isto a tradição do Realismo político, que teve grande influência sobre o desenvolvimento do campo de estudos e logo conseguiu firmar-se como mainstream. Grosso modo, o Realismo entende o sistema internacional como um ambiente anárquico, no qual os atores eram os Estados que agiam racionalmente para garantir sua sobrevivência e maximizar seus benefícios. Os Estados, para o Realismo, eram tal qual uma bola de bilhar, hermética e sólida, portanto, sem que importasse sua política doméstica. Estabeleceu-se, então, logo de início, uma clara separação entre política externa (também considerada “alta política”) – a ação dos Estados no sistema internacional – e política pública (“baixa política”), que, segundo Jobert e Muller [1987], pode ser entendida como “o Estado em ação” no plano doméstico.  Embora esta dicotomia tenha sobrevivido por muito tempo – está presente, inclusive, em estudos atuais –, recentes análises têm adotado uma perspectiva diferente.


Encontrado na justificativa da maioria dos estudos contemporâneos a este respeito está o fato de que a globalização teve grande impacto sobre a condução da política externa, trazendo novos temas e atores para o debate e borrando a linha divisória entre o doméstico e o internacional. Em 1988, Robert Putnam produziu um artigo que se tornou seminal, no qual defendia que todo negociador internacional operava simultaneamente nos níveis doméstico e internacional, levando sempre em consideração as pressões, limites e interesses de cada um e como acomodá-los. No mesmo ano, Ingram e Fiederlein [1988] defenderam explicitamente “cruzar a fronteira” e abordar política externa como política pública. A proposta das autoras incluía utilizar o modelo clássico de análise de política pública (o ciclo das políticas) para estudar a política externa, além de ver como cada uma das duas apresentava uma dimensão mais próxima da outra.

É interessante notar como este tema tem sido tratado no Brasil. Celso Lafer [2001], por exemplo, em estudo que não tem esta colocação como objetivo último, defende que política externa é “uma importante política pública” ao apresentar Estados e governos como “indispensáveis instâncias públicas de intermediação” interna e externa [pp. 18-19]. Segundo este raciocínio, a política externa tem por objetivo “traduzir necessidades internas em possibilidades externas para ampliar o poder de controle de uma sociedade sobre o seu destino” [p. 16].

Já o trabalho de Michelle Sanchez et. al [2006] tem como objetivo primordial defender a posição de que política externa é política pública. Para isto, as autoras, defendendo haver um “continuum do processo decisório” (doméstico-externo-internacional), apresentam uma perspectiva constitucional, segundo a qual “as Constituições de 1967 e 1988 não designam literalmente o poder competente para a formulação da política externa brasileira, embora possuam mecanismos que distribuem a competência para sua condução entre os três poderes” [p. 129]. Embora demonstrem que a política externa é atribuída a diversos atores, as autoras relembram o Decreto n. 5.032/2004, segundo o qual “cabe ao Ministério [das Relações Exteriores] auxiliar o presidente da República na formulação da política exterior do Brasil, assegurar sua execução e manter relações com estados estrangeiros, organismos e organizações internacionais”.

O papel do Itamaraty é fundamental quando se discute política externa brasileira e, neste sentido, o trabalho de Cheibub [1990] é referência inescapável. O argumento principal é o de que tanto o Ministério das Relações Exteriores (MRE) quanto os diplomatas obtiveram um fortalecimento crescente ao longo da formação do Estado nacional brasileiro, o que aumentou sua capacidade de controle na condução e formulação da política externa. Cheibub denomina este processo de “autonomia crescente” e “lenta e gradual racionalização e burocratização do Itamaraty e da carreira diplomática no Brasil” [p. 114]. É interessante notarmos que, embora este trabalho seja amplamente citado para justificar o insulamento e a relativa autonomia do MRE, em sua conclusão, o autor, escrevendo no fim da década de 1980, aponta um fato então novo, e importante para nossa visão sobre a política externa: um processo de “expansão do Itamaraty, isto é, a existência de um amplo movimento externo de diplomatas para outras agências governamentais” [p. 130].

Este “êxodo” de diplomatas, por sua vez, é mencionado por Milani e Pinheiro [2013] como um dos elementos que os fazem entender política externa como política pública. Ao se espalharem pela administração pública, diplomatas brasileiros impulsionaram a internacionalização das agendas de outras pastas. Somado a estes dois processos há também o aumento da participação da sociedade civil, como, por exemplo, durante as conferências da ONU na década de 1990 e com relação ao Mercosul, e o surgimento de novos temas e novos atores. Milani e Pinheiro, portanto, defendem que se considere política externa como política pública, mas afirmam que ainda falta “construir um arranjo político e jurídico que reflita essa realidade empírica e que assegure o caminho institucional mais democrático (sujeito, inclusive, a controles pela própria sociedade)” [p. 22]. Uma observação semelhante é feita por Lafer [2001, p. 17] que, ao apresentar esta visão, defende que ela “pressupõe processos de consulta e mecanismos de representação”.

É justamente neste sentido que o Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais (GR-RI) vem propondo a criação de um “Conselho permanente de consulta, participação e diálogo da sociedade com o poder Executivo sobre a política externa” (CONPEB). Esta deve ser uma preocupação constante de todos aqueles que se interessam pelos rumos do Brasil, de forma a aperfeiçoar a política externa como um instrumento para o desenvolvimento nacional.
Referências:
 
CHEIBUB, Z. Diplomacia e Construção Institucional: O Itamaraty em uma perspectiva histórica. DADOS – Revista de Ciências Sociais, 28(1), 1990, pp. 113-131.
INGRAM, H., FIEDERLEIN, S. A Public Policy Approach to the Analysis of Foreign Policy. The Western Political Quarterly, 41(4), 1988, pp. 725-745.
JOBERT, B., MULLER, P. L’Etat em Action: Politiques publiques e corporatismes. Paris, PUF : 1987.
LAFER, C. A Identidade Internacional do Brasil e a Política Externa Brasileira: Passado, presente e futuro. São Paulo: Perspectiva, 2001.
MILANI, C., PINHEIRO, L. Política Externa Brasileira : Os desafios de sua caracterização como política pública. Contexto Internacional, 35(1), 2013, pp. 11-41.
PUTNAM, R.  Diplomacy and Domestic Politics: The logic of two-level games. International Organization, 42, 1988, pp. 427-460.
SANCHEZ, M., et. al. Política Externa como Política Pública: Uma análise pela regulamentação constitucional brasileira (1967-1988). Revista de Sociologia e Política, 27, 2006, pp. 125-143.
Victor Tibau é mestrando (IRI-USP) e graduado (PUC-SP) em Relações Internacionais.

Diálogos Internacionais

Divulgação científica de Relações Internacionais, Defesa e Economia Política Internacional ISSN 2596 2353