A implicação do uso de conceitos criados desde fora para analisar situações específicas em matérias próprias de outras realidades políticas, sociais e econômicas pode encontrar muita resistência no meio acadêmico. É próprio das teorias, entretanto, o papel de sintetizadoras de ideias e ideologias de seus formuladores, mas uma vez misturadas podem confundir ou, raras vezes, podem jogar novas luzes em velhas análises.
Este texto foi publicado no livro “Diálogos Internacionais: reflexões críticas do mundo contemporâneo”. Para baixar, ler e citar este e outros textos, acesse gratuitamente :
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Uma recente leitura do livro “Checkerboards and Shatterbelts: the geopolitics of South America”, escrito por Philip Kelly em 1997, me conduziu a duas indagações. A primeira está sinteticamente indicada no parágrafo acima, ou seja, como é atrativo separar e qualificar fatos e números, agrupando-os por afinidade, encontrar uma lógica estatística e colocar no mesmo balaio, assim, alhos e bugalhos. Depois disso, usa-se para testar qualquer coisa e concluir que foge do padrão. Se isso faz parte do “ser ciência” e funciona para os estudos da natureza, o mesmo é complicado de ser feito com as ciências sociais (apesar de largamente realizado e aprovado pelos círculos mais avançados do pensamento humano). Como agrupar ações e expectativas esperar encontrar uma fórmula mágica de comportamento? Assim é nossa vida. Deixarei essa discussão para outro momento.
A segunda indagação é da “reutilização de teorias” em outros contextos. Apesar de não deixar claro, Kelly usa a Teoria da Mandala para explicar seu checkerboard. Então, me perguntei o que seria? Comecemos com os conceitos de Kelly.
Para Kelly, na América do Sul foi importante a atuação do conceito de balança de poder, onde se tem que no momento em que um Estado decida se expandir, os outros Estados vão se rearrumar para manter o equilíbrio da balança. Isso teria sido o maior motivo para que neste subcontinente não tenha ocorrido uma guerra hegemônica regional. Assim, na história, o que marcou a América do Sul teriam sido conflitos pequenos, de curta duração, baseados em fronteira e em recursos naturais, em geral com ingerência de potência externa para sua finalização. Esse quadro foi conceituado de Checkerboard, que se revela como uma estrutura de balança de poder multipolar, na qual alianças estratégicas são formadas seguindo um padrão no qual prevalece o ditado “Meu vizinho é meu inimigo, mas o vizinho do meu vizinho é meu amigo”. É um modelo de equilíbrio no qual nenhuma força preponderante individualmente, de dentro da região, ou nenhum alinhamento teria a capacidade de controlar os outros países. O mapa do checkerboard acompanha o post.
Com relação ao termo shatterbelts, são regiões onde as rivalidades militares entre potências estrangeiras se vinculam às disputas locais e trazem a possibilidade de uma escalada de conflitos. Kelly aplica o conceito na região e explica seu uso quando visualiza momentos específicos da história da região, como o shatterbelt dos estuários do Amazonas e da Prata durante o período colonial e após a independência, que ajudou a prevenir que Brasil e Argentina estendessem seus territórios para o Pacífico, e que gerou um desenho de checkerboard, ou seja, impediu a expansão de ambos.
Ao que tudo indica, Kelly reuniu e aplicou diversos conceitos geopolíticos na América do Sul. Até aí, ok. Mas e a Mandala que ele não fala, mas coloca no mapa? Bandyopadhyaya (1993) explicando modelos de controle e conflito no sistema interestatal, nomeia cinco deles: a balança de poder e os modelos de “detenção”, que para o autor foram amplamente discutidos em todos os livros de teoria das Relações Internacionais; um modelo de corrida armamentista, de Lewis Richardson, que não é amplamente conhecido; o que chama de modelo gandhiano, não conhecido fora da Índia; e, o modelo da Mandala, conhecido apenas por especialistas. Kelly certamente conhece.
Kautilya, indiano, pode ter escrito muitas outras coisas, mas é dada a ele a autoria do Arthashastra (link para o livro) feito, provavelmente, entre 321 e 296 a.c., teve como objetivo o aconselhamento ao seu rei, Chandragupta Máuria, para a construção do Império Máuria, traçando um modelo no qual um rei conquistador teria que operar, utilizando todos os seus recursos ao seu favor. Pois é, o “ditado” grifado acima está no Arthashastra. Weber (2002, p.118) escreveu que “em comparação com esse documento (Arthashastra), O Príncipe, de Maquiavel, é um livro inofensivo”.
Seu pressuposto básico é que dois reis com territórios contíguos são inimigos naturais. Seguindo a lógica, o próximo rei, inimigo do anterior, é amigo do primeiro. Outros desígnios, inclusive geopolíticos e de condução de política externa, são retirados de seus ensinamentos, mas o ponto principal é que todo reinado é um poder expansivo por natureza e por isso é importante a preparação constante para a guerra (constata-se que isso foi amplamente revitalizado por outros pensadores ocidentais, com muito mais difusão).
Segundo Boesche (2003), “Kautilya assumed that he lived in a world of foreign relations in which one either conquered or suffered conquest. He did not say to himself, ‘prepare for war, but hope for peace’, but instead, ‘prepare for war, and plan to conquer’.” Ele continua explicando que o indiano:
[…] was not offering a modern balance of power argument. In the twentieth century, international relations theorists have defended the doctrine of the balance of power, because equally armed nations will supposedly deter each other, and therefore no war will result. One does find this argument occasionally in Kautilya: “In case the gains [of two allies of equal strength] are equal, there should be peace; if unequal, fight” or “the conqueror should march if superior in strength, otherwise stay quiet”. Whereas these balance of power theorists suggest that a nation arm itself so that it can ensure peace, Kautilya wanted his king to arm the nation in order to find or create a weakness in the enemy and conquer, even to conquer the world, or at least the subcontinent of India.
Assim, é possível criticar não somente o uso da Mandala incorporada à conceituação de Kelly, como também, a aplicação da teoria da Mandala para o caso da América do Sul, ou inserida em uma conceituação do tipo balança de poder, é que aquela teoria não se baseia no equilíbrio multipolar que leva à paz. Se na nossa região a manutenção da paz é dada pela constante da contenção de poderes, então, o espectro do tabuleiro conforme a Mandala não explica a ausência de conflitos contínuos de conquista, uma vez que nossos países não têm igual poderio.
Igualmente, a ausência de shatterbelts atualmente tende a demonstrar que o ímpeto da aproximação entre Brasil e Argentina, associado aos constrangimentos internos e externos e, com base no cenário internacional, dos regimes internacionais, tende à gestação de uma zona de subcontinental que se bem guarda aproximação com os desejos regionais de manutenção de status quo, revela duas características principais: a primeira é a impossibilidade concreta de um conflito apenas entre membros da região, tanto por suas características militares, quanto pelas suas capacidades industriais e produtivas; a segunda é o interesse das políticas da potência continental em não existir zonas de alta tensão na sua periferia imediata, lidando com essas tensões em outros lados do planeta.
Kelly ainda vai dizer outras coisas, próprias de seu tempo, como a inevitabilidade da Alca, dada a incontestável atração norte-americana, e a constatação do caminho de fortalecimento que surgiu da aproximação de Brasil e Argentina, que, para ele, cambiaria a feição do checkerboard pelo regionalismo. Ou seja, ele faz e desfaz sua própria teoria… Para corroborar com tudo ele ainda explica vários autores geopolíticos da região e fala de todos os países e conflitos que já surgiram por aqui.
Se a configuração de checkerboard for, de fato, aplicada à região, e a Mandala for pendurada na parede de enfeite, há que se considerar que o cenário das idas e vindas das políticas sul-americanas foi marcado mais pelos debates sobre desenvolvimento, autonomia e vulnerabilidade econômica, integração, desarmamento, direitos humanos, meio-ambiente e tantos outros, do que pelos problemas militares diretos.
Embora seja certo analisar que foi essa conjuntura renovada do momento político que fez predominar entre os diversos governos da América do Sul a perspectiva de que em grupo as reivindicações e ações ficam mais fortes e com mais efetividade, é também preciso notar nela a vulnerabilidade de projetos de governos com mandatos estipulados.
A prática política de aproximação da região na última década não perdeu, contudo, o cerne da diversidade, ao manter relações estratégicas com diversos centros econômicos, além do engajamento efetivo nas questões Sul-Sul. Portanto, quando se pensa em direção à projeção e ao fortalecimento das posições negociadoras sul-americanas no cenário regional e internacional, se está traduzindo, ao mesmo tempo, o desejo de revisão da estrutura de poder imposta desde cima, denunciando a formação injusta e antidemocrática do velho sistema tal como concebido pelas grandes potências.
Quanto ao livro do Kelly (esse post não é uma resenha), é bom e vale a leitura de qualquer forma, mas uma leitura sem muitos questionamentos. Algo do tipo “aceita que dói menos”… tal como os países desenvolvidos gostariam de falar para os atrasados… ou será que esta frase está mudando de boca?
REFERÊNCIAS
BANDYOPADHYAYA, Jayantanuja. A General Theory of International Relations. New Delhi: Allied Publishers Limited, 1993.
KELLY, Philip. Checkerboards and Shatterbelts: The Geopolitics of South America. Austin: University of Texas Press, 1997.
WEBER, Max. Ciência e Política. Duas vocações. Tradução: Jean Melville. São Paulo: Martin Claret, 2002.
De fato o livro não é muito pretensioso, funciona mais como um inventário das teorias geopolíticas existentes na América do Sul do que como uma teoria inovadora baseada na idéia de checkerboards e shatterbelts. O mais interessante é perceber o sucesso que a geopolítica angariou nos círculos militares sul-americanos e o próprio recorte de América do Sul que o autor adota, se diferenciando de um recorte latino-americano geralmente utilizado pelos norte-americanos. Não conhecia a origem da teoria da mandala bem apresentada no seu artigo e concordo plenamente com a inadequação de sua aplicação para a América do Sul. Entendi que o tabuleiro de xadrez não é mandala. Gostei do artigo, situa bem a falha do argumento principal do livro. (Licio Monteiro)
Glauber, seu texto demonstra que geopolítica serve para muito mais coisas do que simplesmente fazer guerras, apesar de uma insistência de autores da área em partir da premissa da violência para pensar as relações regionais e/ou interestatais. Aqueles que interesse, seu texto é uma ótima introdução aos estudos de Kelly e um instigante chamado aos estudos de Kautilya. Com relação a América do Sul, o Barão do Rio Branco, quando assumiu o Ministério das Relações Exteriores, colocou como objetivo pessoal resolver todos os problemas de fronteira do Brasil, pois para ele esse era um dos focos centrais dos conflitos entre os Estados no sistema interestatal. Pouco antes de falecer, ele havia esquematizado um projeto de integração econômica entre Brasil, Argentina e Chile (o Pacto ABC), como fundamental para a paz e para o desenvolvimento da região. Talvez este Diplomata (com D maiúsculo) ainda tenha muitas coisas a nos ensinar sobre paz, desenvolvimento e América do Sul.
Licio, agradeço seu comentário. Não sei se viu, mas atualizei o texto com um link para o pdf do Arthashastra. Os dois temas principais que vc aborda – geopolítica/militares e América do Sul/América Latina – darão, certamente, novos posts, pois são temas muito interessantes! Volte sempre!
Larissa… pois é… essa aproximação geopolítica/militares que o Licio também apontou acima é algo a ser mais discutido. Aliás, deve ser sempre discutida. Não só para desmistificar essa "premissa da violência" como vc aponta, mas para aproximar os estudos estratégicos da sociedade civil (que de alguma forma, creio, o curso de Defesa, da UFRJ, tem feito. Tem?) Quanto ao Barão… fica a dica para o seu post… sei de sua "queda" por ele…