Da Soberania – tentativa #01
Volume 1 | Número 2 | Jul. 2014
Por Julia Monteath de França
Estou entrando num processo interno de organização das ideias e resolvi aproveitar esse espaço para tentar começar a colocá-las no papel. Nesse texto vou tratar de algumas ideias muito básicas das discussões internacionais, mas que são até hoje controversas e carregam consigo um tanto de contradições. Por tudo isso, acho que o texto saiu com cara de esboço e talvez pareça um pouco sem sentido ou sem propósito, mas nas próximas publicações espero conseguir dar uma cara mais concreta a esses pensamentos. Por ora, fico no aguardo das críticas, comentários, correções e qualquer outro tipo de ajuda que possa vir a ser oferecida (aceitamos projetos, capítulos, teses prontos/as… rsrs).
A gerência agradece.
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A data precisa, pouco importa e, muito provavelmente, talvez nem exista, mas muitos identificam na transição da Idade Média para a Idade Moderna o surgimento daquilo que hoje chamamos de sistema internacional. Junto com essa nova forma de organização, também vão se consolidando práticas e instituições que posteriormente passarão a fazer parte dos conceitos básicos das Relações Internacionais, como os de Estado-nacional e soberania, sendo que esta é parte constitutiva daqueles, junto com o povo, o território e o poder.
Atualmente os conceitos de sociedade internacional e mesmo de comunidade internacional também são utilizados em decorrência do estreitamento dos laços e da dependência entre os Estados. Mesmo assim, em tese, um Estado possui soberania interna, sobre todas as unidades que o compõem, e externa, pois não há autoridade acima dele no sistema internacional. Vale ressaltar que a soberania externa não é ilimitada: ela vai encontrar limites nos outros Estados, pois estes também possuem soberania externa.
Apesar de não haver essa autoridade, no início do século XX e, principalmente, depois de 1945, ano de criação da Organização das Nações Unidas, é perceptível o esforço dessa comunidade internacional de se mobilizar para estabelecer regras claras de convivência e mesmo algum nível de coordenação entre as ações desses Estados dentro e fora dos limites de suas soberanias nacionais. É neste sentido que vão sendo escritas as regras e normas do Direito Internacional, vão aparecendo jurisprudências interestatais, vão se definindo códigos de condutas internacionais e vão se delineando objetivos comuns aos Estados. Essa organização entre os Estados vai abrir uma brecha para as intervenções de Estados ou de organizações dentro das soberanias de outros Estados, sem que, com isso, necessariamente se abra mão desta soberania por completo.
O conceito de soberania, por sua vez, implica no fim do regime das jurisdições sobrepostas, pois ele vai secularizar as disputas de autoridade, concentrando os vários tipos de poder nas mãos estatais. Esta vai ser a primeira vez que se coloca o Estado acima da religião e, a partir daí e neste sentido, o que passa a determinar as fronteiras não é mais a religião, mas sim a balança de poder entre os Estados. Esta ideia de balança de poder, aliás, é outro conceito empírico e, ao mesmo tempo, normativo, por ser uma instituição que impede – ou tenta impedir – o domínio mundial hegemônico de um grande poder, logo, defende os valores básicos da segurança e da paz internacional.
Pois bem, até aí estamos com tudo dentro das caixinhas. Acontece que, como não é lá segredo para ninguém, uns são mais soberanos do que outros.
Aqueles Estados que deram origem ao sistema internacional e que atualmente são considerados potências dentro desse mesmo sistema, se auto-incubiram, sem consultas externas, da importante tarefa de levar para todo o resto do mundo sua forma de pensar e de se organizar, numa grande estratégia de subordinação, exploração e, claro, crescimento (próprio) – convenhamos, isso também não é lá um grande mistério internacional e, inclusive, já foi uma discussão que apareceu aqui no Diálogos Internacionais.
Até hoje essa missão civilizadora continua, com outras formas e por outros meios, mas, em geral, levam pouco em consideração a soberania dos Estados menos soberanos. As missões humanitárias são um exemplo de intervenções realizadas por terceiros, muitas vezes sob a guarida das Nações Unidas, que se sobrepõem à soberania de um Estado, em nome de um “bem maior” deste Estado em apuros.
Com base na definição clássica de R. J. Vincent [1], a intervenção pode ser feita por um Estado, por um grupo dentro de um Estado, por um grupo de Estados ou mesmo por uma organização internacional e se trata de uma ação de interferência que se dá de forma coercitiva sobre as questões internas de outro Estado. Ela tem necessariamente um começo e um fim e seu alvo é a estrutura de autoridade do Estado visado, mexendo necessariamente com a estrutura convencional de relações entre os atores envolvidos e buscando impedir que um governo continue a atuar de forma ofensiva com sua própria população. Tradicionalmente, portanto, as intervenções são definidas como uma violação forçada do direito à soberania, indo contra inclusive a princípios encontrados na Carta das Nações Unidas [2].
Subentende-se, porém, que as intervenções humanitárias sejam ações necessariamente movidas por justificativas humanitárias. Sim, em tese, a intervenção humanitária deve ser sempre desinteressada, ou seja, sem motivações outras que não a ajuda humanitária em si. No entanto, nunca se chegou a definir critérios específicos e concretos que possam embasar a decisão da intervenção ou não. Foi exatamente por isso que, ao longo da curta história das intervenções, é possível identificar a utilização de dois pesos e duas medidas na hora de tomar tal decisão (que, é claro, em última instância é tomada – ou vetada – pelos soberanos com soberania). Legitimadas ou não, o fato é que, desde o fim da Guerra Fria, as intervenções humanitárias têm se tornado cada vez mais presentes quando o assunto é conflito interno em algum Estado, sendo consideradas como um caminho imparcial para se chegar a algum acordo e estabelecer mais uma vez o equilíbrio, seja ele o mesmo de antes ou não, no território em questão.
O problema percebido em algumas das intervenções do passado é que muitas vezes, por melhor que possa ser a intenção ao se intervir em algum conflito para solucioná-lo, o resultado obtido é, na realidade, o oposto do que se esperava, ou seja, o conflito apenas se intensifica. Como exemplos de missões de intervenções humanitárias lideradas pelas Nações Unidas, que não tiveram o resultado humanitário que era esperado, podemos citar aqui os casos do Timor Leste e mesmo a intervenção da OTAN no Kosovo, entre outros. Isso para não falar nos casos de omissão.
Indícios temos de que esse sistema de equilibrado tem muito pouco. Kenneth Waltz que dizia que um Estado é soberano quando decide sozinho como enfrentará seus problemas internos e externos [3]… levando essa afirmação ao extremo, quantos Estados soberanos existem nesse sistema de soberanias? E se a vida não está fácil para aqueles Estados mais novos, mas já reconhecidos por toda a comunidade, imagine na Palestina…
Referências:
[1] VINCENT, R. J. Nonintervention and International Order. Princeton: Princeton University Press, 1974.
[2] ONU. Carta das Nações Unidas. Artigo 2 (4) e (7), 1945.
[3] WALTZ, Kenneth. Theory of International Politics. Nova York: McGraw-Hill, 1979.
Julia, seus questionamentos são legítimos, válidos e merecem novas ponderações. Aguardaremos. Creio que seja mais fácil analisar esses conceitos se pensarmos neles como convenções que pertencem a um determinado tempo e contexto histórico/geográfico. Desta maneira, parafraseando Marx, a solidez da soberania se desmancha no ar da história, e o que sobra no final das contas são os interesses de determinados grupos (políticos e/ou econômicos) envolvidos (direta ou indiretamente) nas ações ditas como abnegadas. Agora, quais são esses interesses?