A cultura de massa como recurso de soft power nas relações internacionais

Volume 11 | Número 107 | Abr. 2024

Rubia Karla Oliota de Lima

Cristina Carvalho Pacheco

INTRODUÇÃO

A velocidade das transformações tecnológicas, as trocas de informações, o vasto intercâmbio entre povos e culturas, isto é, toda a cadeia de ações denominada de globalização da informação, dos costumes e da tecnologia tem proporcionado um maior fluxo de trocas culturais. O que levou o homem à necessidade de lidar e se relacionar com idiomas, costumes e hábitos distintos.

É nesse encurtar de distâncias entre países geograficamente afastados, que o componente cultural tem assumido maior relevância na política, levando as relações entre os atores do sistema internacional a pautar-se pela necessidade de compreender e, de certa forma, assimilar a cultura do outro.

Durante o século XX, os Estados valeram-se do fator cultural para criar uma tradição de aproximação, cooperação e intercâmbio como pilar de suas políticas externas. Em maior ou menor medida, nações utilizaram a cultura para propagar uma imagem positiva no estrangeiro, favorecer os negócios e investimentos, e alcançar prestígio no cenário mundial. Países como Estados Unidos, França, Inglaterra, Espanha, Alemanha, Japão, entre outros, já reconheceram e trabalham no valor do uso da cultura como facilitador de sua inserção no sistema internacional. (BIJOS e ARRUDA, 2010, p.36)

Nos últimos anos, a Coreia do Sul é um exemplo de Estado que também tem investido e se destacado na expansão cultural, mais especificamente na propagação do que Theodor Adorno e Max Horkheimer conceituaram como cultura de massa[1]. A difusão cultural sul-coreana, que alcançou não só a Asia, mas também o Ocidente, é apontada como um dos principais fatores responsáveis pelo crescimento do turismo no país, pelo aumento de buscas no aprendizado do idioma coreano e no número de estudantes estrangeiros nas universidades nacionais, além de gerar anualmente bilhões de dólares ao governo. (ORTEGA, 2019a; PICKLES, 2018; MARTINROLL, 2020).

O sucesso da promoção e exportação dos produtos culturais sul-coreanos é resultado de investimentos de empresas privadas, mas também de uma aposta de 20 anos do Estado em cultura (ORTEGA, 2019a). Atuação que visou fomentar a economia, redefinir a imagem, a reputação nacional e conquistar maior visibilidade internacionalmente, (LEAL, 2018) ampliando a influência da Coreia do Sul sobre o que acontece no mundo, caracterizando-se dessa forma como uma estratégia de soft power[2].

No Brasil, o valor simbólico e econômico da cultura, se for considerado os investimentos públicos no setor ao longo dos últimos anos, parece não ter sido devidamente reconhecido. As verbas do Fundo Nacional da Cultura (FNC), principal mecanismo governamental de apoio direto a projeto artísticos do país, foram sendo reduzidas, passando de R$ 344 milhões em 2010 para 17 milhões em 2018, tendo uma queda ainda maior para menos de um milhão[3] em 2019, ano em que a pasta da Cultura foi rebaixada ao status de secretaria. (MORAIS, 2020)

Em 2019, o então presidente Jair Bolsonaro também estabeleceu cortes na Agência Nacional do Cinema (Ancine), reduzindo 43% do orçamento do Fundo Setorial do Audiovisual, principal fonte de fomento de produções audiovisuais no Brasil. (BRANT e URIBE, 2019). Com a reeleição do atual presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2023, o cenário parece dar sinais de mudanças, tendo em vista a reabertura do Ministério da Cultura (MinC) e os investimentos, ainda nos três primeiros meses de mandato, de mais de 2 bilhões de reais no setor cultural. (BRASIL, 2023a) 

A partir dos aspectos observados, o presente trabalho tem por objetivo discorrer sobre a importância da cultura, mais especificamente a cultura de massa, como recurso de soft power (poder brando) de um Estado, capaz de gerar, diretamente ou indiretamente, efeitos políticos relevantes.

Para tanto, a pesquisa, caracterizada como bibliográfica, e de abordagem qualitativa, divide-se em 3 seções. A primeira seção confere o conceito de soft power, na visão do criador do termo Joseph Nye (2004) e trabalha a cultura enquanto recurso de soft power trazendo os exemplos do caso do cinema estadunidense e sua importância na disputa ideológica dos EUA com a União Soviética e do British Invasion ao suavizar a imagem da Inglaterra no período de Guerra Fria.

A segunda seção trata da relação da cultura com a economia, política e projeção internacional da Coreia do Sul, com a expansão cultural dos K-drama (telenovelas) e K-pop (música pop sul-coreana). E a terceira e última seção relaciona a cultura de massa brasileira enquanto recurso de soft power considerando produtos culturais como o carnaval, telenovelas, bossa nova e, atualmente o funk, apontando a potencialidade deste último gênero musical para a visibilidade nacional e diplomacia cultural.

A RELAÇÃO DA CULTURA DE MASSA E O SOFT POWER DO ESTADO

Ao longo do século XX, a cultura passa a ter um poder simbólico mais expressivo. Em um contexto pós duas grandes guerras mundiais, marcado pela Guerra Fria, globalização intensificada e avanços tecnológicos que encurtaram distâncias e promoveram maior integração entre os Estados, o uso do fator cultural na política passou a contribuir de certa forma para o equilíbrio das tensões geradas pelo uso da força, desempenhando “um importante papel na superação de barreiras entre países, na promoção da cooperação e redução de desconfianças mútuas”. (BIJOS e ARRUDA, 2010, p.36)

É nesse cenário, considerando a interdependência complexa[4] no sistema internacional, que Nye (2004, p.05-07) atenta para a construção do conceito de soft power (poder brando).Enquanto as ideias de hard power (poder duro) dominavam as tradicionais teorias das Relações Internacionais, com foco nos recursos coercitivos militares e sanções econômicas, o conceito de soft power surge para ressaltar nesse campo de estudo novos fatores para a compreensão das relações de poder entre os países.

Por poder, Nye (2004, p.02) entende como a habilidade de influenciar o comportamento de outros para obter resultados que se pretende, podendo ser alcançados de três formas, coagindo com ameaças, induzindo com pagamentos ou por meio da atração. Ao passo que o hard power é pautado pela imposição da preferência particular de um dos lados, o soft power refere-se a “a capacidade de conseguir resultados preferidos pela utilização dos meios cooptativos” (NYE, 2012, p.38).

Nas relações exteriores, o soft power consiste na habilidade/capacidade de os Estados influenciarem indiretamente o comportamento e as decisões de outros, de obterem na política mundial resultados desejados mediante o uso da atração, persuasão e instituições. (NYE, 2004, p. 05-07)

Assim como o soft power, o hard power trabalha com o propósito de influência, a distinção entre ambos os tipos de poder estaria no grau, tanto na natureza do comportamento como na tangibilidade dos recursos. Por estar pautado na imposição de preferências de um dos lados, a fonte de hard power é baseada nos recursos tangíveis, militares e econômicos. Coagir, ameaçar, pagar, sancionar são comportamentos de hard power, e os recursos deste tipo de poder são todos aqueles que possibilitam agir de tal forma. (NYE, 2004, p.07-09, 31; 2012, p.68)

O soft power, no entanto, é sutil, é pautado na influência indireta, no uso da atração, persuasão e instituições como meio de alcançar os objetivos desejados. Sendo assim, esse tipo de poder baseia-se comumente em recursos intangíveis; na cultura, ideias, as instituições, valores, e a legitimidade percebida das políticas. (NYE, 2004, p.06; 2012, p.44)

O soft power é mais do que simplesmente persuasão ou a habilidade de convencer pessoas através de argumentos, embora seja uma parte importante da mesma. É também a capacidade de atrair, e atração frequentemente leva à aquiescência. Simplificando, e colocando em termos comportamentais, soft power é o poder de atração. Em termos de recursos, são recursos de soft power os ativos capazes de produzir tal atração.[5] (Nye, 2004, p.06, tradução e grifos da autora)

De acordo com autor, o soft power é uma importante realidade, e desconsiderar sua relevância é não reconhecer o poder da sedução, e entender que a atração é sempre mais eficiente que a coerção. Valores como democracia, direitos humanos e oportunidades individuais são profundamente sedutores, e aumentar a atração ideológica e cultural reduz os custos com punições e recompensas. (NYE, 2004, p.05-07)

Dentre os fatores citados por Nye (2004, p. 16 e 17) muito do soft power dos EUA é gerado por sua sociedade civil, quando a atuação de indivíduos e instituições, a exemplo da Microsoft, Harvard, Michael Jordan e Hollywood, é capaz de gerar atração cultural, de reforçar e exportar valores políticos ditos nacionais.

Não há como escapar à influência de Hollywood, da CNN e da internet. Os filmes e a televisão americana exprimem a liberdade, o individualismo e a mudança (tanto quanto o sexo e a violência). Geralmente, o alcance global da cultura dos Estados Unidos contribui para aumentar nosso soft power, ou seja, a atração ideológica e cultural que exercemos. (NYE, 2002, p. 14)

Em outras palavras, pode-se entender que ser capaz de propagar uma imagem positiva, despertar a admiração internacional, disseminar valores culturais e ideológicos em concordância com os valores políticos e objetivos oficiais da política externa são meios de fortalecer o soft power de um Estado.

Segundo Nye (2004, p.11), o soft power de um país se fundamenta em três recursos: sua cultura (em locais que são atraente para outros), seus valores políticos (quando ele depende deles no âmbito doméstico e internacional) e sua política externa (quando são vistos como legítimos e com autoridade moral). Para fins desse artigo, ao utilizar o termo, fica implícito a referência a elementos culturais como recurso de soft power, delimitando ainda o conceito de cultura[6] àquilo que é compreendido como cultura de massa.

Embora o termo não tenha uma definição clara e única, por cultura Nye (2004, p.11; 2012, p.119) entende como “um conjunto de valores e práticas que criam significado para uma sociedade”, ou como “padrão de comportamentos sociais pelo qual os grupos transmitem conhecimento e valores”. Pelas muitas formas de manifestações, o autor (2004, p. 09) refere-se a cultura com a divisão entre ‘alta cultura’ (literatura, artes e educação); e ‘cultura popular’, isto é, cultura de massa (cinema, televisão e música pop). Enquanto a alta cultura tem o aspecto de gerar um maior apelo entre as elites, a cultura popular (cultura de massa) se concentra no entretenimento do grande público.

 Ainda que considere ambas importantes, Nye (2004, p. 46) afirma que é mais fácil traçar os efeitos políticos de contatos da alta cultura do que correlacionar com a cultura popular. No primeiro caso, o autor exemplifica os intercâmbios acadêmicos e científicos, que normalmente envolvem elites, estudantes internacionais, que ao ocuparem posições de destaque em seus países de origem, podem exportar ideias e valores ideológicos capazes de desencadear em resultados políticos favoráveis ao país anfitrião. 

Em se tratando da cultura popular, ainda que muito criticada por intelectuais devido seu comercialismo bruto, que a enxerga como um anestésico, um narcótico apolítico para as massas, Nye (2004, p.46 e 47) defende que tal generalização é perigosa, pois no mundo atual de mídia de massa, a linha entre informação e entretenimento nunca foi tão acentuada. Desdenhar da cultura de massa é desconsiderar a capacidade do entretenimento de propagar imagens e mensagens subliminares que ressaltam valores do país de origem, o que pode gerar efeitos políticos relevantes.

Ainda durante o período de Guerra Fria, foi justamente a cultura de massa dos Estados Unidos, por meio da televisão, cinema e música pop, o responsável por seduzir parte do mundo com o american way of life, exercendo importante atração ideológica, conquistando mentes de populações em um contexto de bipolaridade.

Muito antes da queda do Muro de Berlim em 1989, este tinha sido perfurado pela televisão e pelo cinema. Os martelos e tratores não teriam funcionado sem os anos de transmissão de imagens da cultura popular do Oeste que atravessaram o Muro mesmo antes dele cair. (NYE, 2004, p.49, tradução da autora [7])

Em se tratando da indústria cinematográfica estadunidense, desde seu surgimento, é tida como uma ferramenta de Estado utilizada para fins político-ideológicos, com o objetivo de glorificar o caráter nacional e vilanizar a imagem de seus adversários ideológicos e inimigos de guerra. (GONÇALVES, 2016, p.17). Durante a Guerra Fria, até mesmo não intencionalmente, em filmes com temáticas aparentemente apolíticas, o cinema projetava o american way of life, um modelo que reforçava a ideia de um cotidiano desejado, associado a qualidade e superioridade, à essência de uma vida boa e plena. (CUNHA, 2017, p.18) Tais cenários e mensagens subliminares apresentados nas telas serviam para confrontar a visão negativa do Ocidente promovida pela mídia soviética e controlada pelo Estado. (NYE, 2004, p.49)

Nye (2004, p.47 e 74) acredita que por meio do amplo alcance dos discursos imagéticos e mensagens subliminares das produções Hollywoodianas, os Estados Unidos atribuíram sobre si valores sedutores como oportunidades individuais e liberdade. E diferentemente dos EUA, o sistema soviético, afirma, não soube fomentar nem exportar sua cultura de massa, pelo contrário, esforçou-se em excluir as influências culturais burguesas, sem competir com as produções de alcance global norte-americana no cinema, televisão e música pop.

Mesmo antes da Guerra Fria, ainda durante a Primeira Guerra Mundial, a cultura de massa estadunidense era difundida pelo mundo. Nessa época, o cinema de Hollywood já tinha começado a se tornar uma força política considerável, e o presidente dos EUA da época, Woodrow Wilson, acreditava na importância da indústria cinematográfica e nos filmes como o melhor e menos custoso método para veicular a propaganda nacional, capaz de difundir os valores que consideravam defender ao redor do mundo (GUEDERT, 2020, p. 57 e 58). De acordo com Guedert (2020, p.80), a indústria cinematográfica foi fundamental na atuação política dos EUA e agiu como um importante veículo de propaganda na consolidação do país como a principal potência no século XX.

Mesmo décadas após o fim da Guerra Fria, Hollywood continua a ser um dos principais protagonistas da identidade cultural estadunidense e um dos maiores recursos de soft power no campo das artes e do entretenimento. Em seus muitos anos de tradicionalismo, este tem uma contribuição importantíssima para a economia local, gerando bilhões de dólares ao país todos os anos. (BALLERINI, 2017)

Além da indústria cinematográfica, a difusão da cultura de massa estadunidense ocorreu por meio de múltiplas camadas de produção cultural, desde a distribuição de imagens, até a difusão da música, com “sua poderosa influência capaz de impactar nos padrões estéticos das sociedades” (GUEDERT 2020 p.74). A indústria fonográfica, analisa Rocha (2019), também teve um significativo papel para a popularização da língua inglesa, o que consequentemente trouxe e traz benefícios aos Estados Unidos e ao Reino Unido por contribuir para fortalecer a posição do idioma como padrão de comunicação global.

Segundo Ballerini (2017, p.192), a indústria fonográfica também já contribuiu notadamente para o soft power da Inglaterra no século passado. Se atualmente a família real britânica seduz o mundo, durante a Guerra Fria, com o processo de descolonização da África e conflitos econômicos, o hard power inglês era latente, e um dos fatores que contribuíram para suavizar a imagem do país deve-se à música.

A música, além de contribuir para a internacionalização do idioma inglês, também influenciou e influencia gerações. Um exemplo dessa influência se deu por bandas como os The Beatles, ícones da cultura pop inglesa. Conforme Fernández (2015, p.37) o grupo musical foi responsável por conquistar e influenciar jovens do mundo inteiro, sua forma de falar, vestir, atuar, e demonstraram “o poder transformador da música popular”. Essa onda da música britânica iniciada pelos The Beatles, conhecida como British Invasion, foi responsável, afirma Ballerini (2017, p.192), por suavizar consideravelmente a imagem do hard power da Inglaterra, com suas invasões e domínios coloniais pelo mundo.

Assim como a Inglaterra, diferentes países da Europa têm grande influência cultural com sua literatura, música, design, comida, pintura, moda, e poder-se-ia tentar citar outros exemplos de soft power por meio da cultura europeia. Todavia na segunda seção, buscou-se discorrer a respeito de um país do continente asiático que tem chamado a atenção do campo acadêmico e da mídia internacional por trabalhar deliberadamente para aumentar seu soft power por meio da expansão cultural, a Coreia do Sul.

SOFT POWER E A CULTURA DE MASSA- O CASO DA COREIA DO SUL  

A decisão do governo sul-coreano em investir em cultura e na expansão cultural teve início em meados da década de 1990, em um período de crise financeira.  Entre as iniciativas, foi criado, em 1994, o Escritório de Indústria Cultural, subordinado ao Ministério da Cultura, e em 1999, promulgada a lei de promoção da indústria cultural e criada a campanha “Dynamic Korea” para preparar a divulgação do país ainda antes da Copa do Mundo de futebol masculino, sediado pelo Estado em 2002 em parceria com o Japão. (LEAL, 2018, p.295)

Além do desenvolvimento da economia, com o fim da ditadura e redemocratização do país na década de 1980, a Coreia do Sul objetivava também com a difusão cultural redefinir a reputação nacional, tornando política de Estado a projeção de uma imagem nacional favorável no cenário mundial.

No início do século XXI, o grande desafio era promover a Coreia do Sul como unidade, apenas como Coreia ou em inglês Korea.Também era necessário tornar o país efetivamente líder na produção de bens culturais (…) promover grandes investimentos para melhorar a imagem do país e valorizar as marcas atreladas ao K (K-culture, K-drama, K-pop). (LEAL ,2018 p.299)

A promoção da indústria cultural demonstrou sinais de que a estratégia poderia ser eficiente logo nos primeiros anos. Em 2000, devido à popularidade conquistada pelos K-dramas (novelas sul-coreanas) na China, foi nomeada pelos meios de comunicação chinesa de Korean Wave (Onda Coreana). (REIS, 2018, p. 14).

 Ainda no início dos anos 2000, o fenômeno do Korean Wave ou Hallyu, como passou a ser chamada pela própria mídia nacional, também ganhou força no Japão, Indonésia, Tailândia e Vietnã, que passaram a agregar os produtos sul-coreanos, como as telenovelas, músicas, filmes, games, comidas, modas, produtos de tecnologia digital, à dinâmica de suas próprias culturas. (SOUZA, 2015, p.298)

Nesse cenário, ao passo que a Coreia do Sul trabalhava para crescer economicamente e projetar imagens favoráveis do país, também difundia sua cultura para diferentes povos asiáticos, como chineses e japoneses, auxiliando dessa forma na aproximação e modificação de concepções provindas de conflitos históricos, a exemplo da Guerra da Coreia (1950-1953), que resultou na divisão da península.

A crescente presença sul-coreana na televisão e no cinema tem estimulado os asiáticos a comprarem produtos sul-coreanos e a viajarem para a Coreia do Sul, tradicionalmente não sendo considerado um destino turístico popular. As imagens que os asiáticos tradicionalmente têm associado ao país – marchas estudantis violentas, zona desmilitarizada, divisão – têm dado lugar aos artistas da atualidade… (ONISHI, 2005, tradução da autora)[8]

 Após anos de investimento massivo do setor público e privado, a Coreia do Sul não só conseguiu se destacar na Ásia, mas ganhou espaço no cenário internacional. Produções cinematográficas, telenovelas, mas principalmente a sua música pop, denominada K-pop, tornaram-se um grande fenômeno no Ocidente e é responsável por levar anualmente bilhões de dólares ao país. Atualmente há 32 Centros Culturais Coreanos para promover o “Hallyu”, distribuídos em 28 países, incluindo a África, Ásia-Pacífico, Europa e América. (MARTINROLL, 2020)

Nos últimos 15 anos, o turismo triplicou, e segundo o Instituto Hyundai, um a cada treze turistas citou a banda pop sul-coreana BTS como motivo da visita. (ORTEGA, 2019a). Além disso, aumentou o número de estudantes nas universidades nacionais e o interesse por estudar o idioma do país, sendo aberto pelo governo 130 institutos para ensinar coreano em 50 países. (PICKLES, 2018).

O sucesso do K-pop sozinho rende mais de 4 bilhões de dólares ao ano, e fez sua indústria da música, que ocupava o 28º lugar no mundo em 2004, subir para a 6° posição em 2018, e em menos de 15 anos, ultrapassar o Brasil , que no mesmo período subiu duas posições, de 12° para 10° lugar.[9]  Muito mais do que um estilo musical lucrativo, o K-pop “busca firmar-se como mais um movimento gerador de conceitos, moda e forma de viver” (DOMINGOS e SOUZA, 2016, p.12), para isso, utiliza-se do poder visual, dos vídeos musicais altamente produzidos, em termos cinematográficos, para cativar o público, principalmente os não falantes do idioma. (FLOR, 2020, p.241). Assim, por meio dos seus vídeoclipes, popularizados pelas plataformas on-line de streaming, o K-pop e seus ídolos com os discursos, imagem, ritmos, coreografias, figurinos, maquiagens, tem gerado bilhões de dólares ao governo, influenciado e unido jovens em diferentes países.

Os Kpoppers, como são assim denominados, já chamaram a atenção da mídia internacional com ações ativistas na internet. De acordo com a BBC NEWS, estiveram engajados em causas sociais e políticas, como doações a uma instituição de caridade londrina, apelos a estradas mais seguras em Bangladesh, responsabilizados por influenciarem protestos domésticos no Chile. Foram também apontados como possíveis agentes que boicotaram o comício de Donald Trump, organizaram-se no Twitter para protestarem na campanha #Blacklivesmatter (Vidas Negras Importam) e agiram contra um aplicativo criado pela polícia da cidade de Dallas, com a intenção de evitar que protestos fossem denunciados. (REDDY, 2020).

Em abril de 2021, os fãs do grupo BTS, chamados de Armys (exércitos), uniram-se contra o racismo a asiático feitos por um programa de TV no Chile. O episódio gerou revolta, manifestações na internet e mais de mil denúncias ao Conselho Nacional de Televisão (CNTV) chileno. Em maio do mesmo ano, no Brasil, a fanbase do BTS, a Army Help The Planet, voltada para apoiar causas sociais e ambientais, promoveu em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) uma campanha para combater a fome, visando arrecadar recursos ao programa Unidos contra a Covid-19. (QUEIROGA, 2021; GOLDMAN, 2021)

Assim como os fãs espalhados por diferentes países, os ídolos do K-pop estão se destacando no cenário político. Em 2017, o grupo BTS foi convidado para se tornar parceiro do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e nos anos de 2018 e 2020, discursaram na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU). Em 2021, a banda foi escolhida pelo próprio presidente da Coreia do Sul, Moon Jae-in para representar a diplomacia pública do país em eventos oficiais internacionais. (THE KOREAN TIMES, 2020; 2021)

Como afirma Leal (2018, p.301) o K-pop é tratado como questão de identidade nacional, e seus ídolos são colocados à frente de diversas campanhas públicas e eventos diplomáticos. Em 2019, por exemplo, Moon Jae-in recepcionou o ex-presidente norte-americano Donald Trump em seu gabinete presidencial ao lado da banda EXO.

No ano anterior, em 2018, como gesto de aproximação entre as duas Coreias, após trocaram ameaças em 2017 por questões de testes com mísseis na Coreia do Norte, um show de cantores de K-pop foi promovido na capital norte-coreana, Pyongang, onde estava presente o Ministro da Cultura da Coreia do Sul , Do Jong-Hwan, ao lado do líder do país, Kim Jong-un, o primeiro líder norte-coreano a assistir uma apresentação musical na capital do país. (ANDREW e GRAY, 2019; SANG-HUN, 2018)

Embora esse evento tenha simbolizado uma tentativa de aproximação entre as duas coreias, segundo o jornal The New York, em dezembro de 2020, o líder Kim Jong-un aumentou a punição para quem fosse flagrado consumindo qualquer tipo de entretenimento relacionado ao K-pop. A intenção seria eliminar da sociedade norte-coreana qualquer influência da cultura pop sul-coreana, que chegou ao país por meio de pen-drives vindos da China. Kim Jong-un acusa o K-pop de corromper os trajes, estilos de cabelo, discursos e comportamentos da juventude de seu país, e teme o que essa influência poderia fazer. (SANG-HUN, 2021)

As canções de K-pop também já foram tocadas em altíssimos volumes através de alto-falantes instalados na fronteira com a Coreia do Norte, na região como DMZ, ou zona desmilitarizada. Especula-se que o governo sul-coreano seja guiado pelo raciocínio da sedução, com letras repletas de expressões em inglês, japonês e chinês, as músicas acabariam por sugerir a ideia de um ambiente cosmopolita e globalizado na Coreia do Sul, em oposição ao imaginário de um regime fechado e tradicionalista da Coreia do Norte. (PICCININI, 2019, p.7)

Embora não entrem em conflito direto, radicalmente diferentes, as duas coreias vivem em disputa ideológica, e ambos os lados buscam demonstrar a primazia de seus sistemas de governo. Segundo Nye (2004, p.12) não há como negar a influência da cultura popular como recurso de soft power, mas a efetividade de um recurso de poder depende sempre do contexto. O fato de Kim Jong-un comparecer a um evento de K-pop não afeta nos seus programas nucleares, nem seu posicionamento ideológico como governante, pois a influência e atração de um país sobre outro resulta do grau de respeito e admiração que sua cultura, valores e a política são capazes de inspirar.

Um filme norte-americano pode provocar atração na China ou América Latina, mas ter um efeito contrário e reduzir o soft power dos Estados Unidos na Arábia Saudita ou Paquistão. Entretanto, como defende Nye (2004), os valores sedutores da democracia, dos direitos humanos e das oportunidades individuais embora não sejam atraentes ou persuasivos para os líderes e governantes de um Estado, como o citado Kim Jong-un, pode influenciar nos interesses e percepções dos governados. Abrindo dessa forma, caminhos para mudanças, para possíveis movimentos sociais capazes de ditar novos rumos políticos e econômicos, alterando, com a chegada de perspectivas e gestões diferentes, o comportamento do governo do país no cenário internacional. 

Na atual sociedade interconectada, globalizada, integrada por princípios compartilhados, é necessário reconhecer a importância da difusão cultural e ideológica. Foram os discursos e mensagens subliminares de amplo alcance do cinema hollywoodiano, da música e da televisão que contribuíram para a disseminação de ideais capitalistas e democráticas, e influenciaram pensamentos e comportamentos de populações de todo o mundo em um período de bipolaridade, contribuindo assim para o fim da União Soviética.

Uma imagem tornada visível comunica-se com os espectadores e estimula representações de sentidos que trabalham no imaginário das pessoas. Assim como o cinema de Hollywood foi fundamental ferramenta estadunidense durante a Guerra Fria, os K-dramas e K-pop são percebidos também como instrumento de Estado capaz de dialogar com as mentes de jovens norte-coreanos. A partir da atração pela K-culture (cultura de massa sul-coreana), seus filmes, séries, telenovelas, músicas, vídeoclipes e ídolos, a juventude da Coreia do Norte podem passar a almejar e lutar por outro estilo de vida, por reproduzir discursos capitalistas e democráticos, seduzidos pelos valores defendidos e difundidos por seus irmãos do país vizinho.

Os investimentos e atuação da Coreia do Sul para expandir sua cultura de massa e os reflexos na política, economia e imagem do país tem chamado a atenção de pesquisadores acadêmicos e da mídia mundial. Um país, cuja extensão territorial poderia ser comparada a apenas um único estado brasileiro, destaca-se por trabalhar deliberadamente com a cultura como meio de fortalecer seu soft power e de projetar-se no cenário internacional. No próximo tópico, buscar-se-á discorrer sobre o caso do Brasil, a relevância da cultura de massa para o soft power do país, apontando a potencialidade do funk, gênero musical brasileiro mais ouvido no exterior, para a visibilidade nacional e diplomacia cultural.

A POTENCIALIDADE DA CULTURA DE MASSA BRASILEIRA PARA O SOFT POWER E POLÍTICA EXTERNA DO PAÍS

O Brasil construiu ao longo do tempo a imagem de um destino exótico, marcado pela riqueza natural, por um povo pacífico, amigável e alegre. (SILVA, 2005, p.138). Para Kotler e Gertner (2004, p.05) a imagem positiva do Brasil está associada à atributos como: o carnaval, belezas naturais, futebol e música, ou pessoas, como Pelé, Gisele Bündchen, Ronaldo; mas também à aspectos negativos como: crime, violência, degradação ambiental, fome e miséria.

Ter uma imagem positiva do país é importante para suas relações políticas e econômicas no cenário mundial. Despertar o respeito e admiração internacional é uma maneira de aumentar a capacidade de atração, de influenciar comportamentos e crenças de terceiros, aumentando dessa forma o soft power nacional. Na opinião de Joseph Nye, o Brasil exerce o soft power naturalmente e sua imagem favorável estaria muito relacionado à cultura. Em entrevista à BBC Brasil em 2012, o cientista político norte-americano também considera importante a associação do país a valores como tolerância, pois segundo ele, há uma percepção de que o Estado brasileiro lidou bem com questões caras a outras nações, como a racial. (PINTO, 2012)

Embora tais considerações sejam contra-argumentadas, a imagem de uma nação, conforme defende Ballerini (2017), pode ou não representar a realidade, mas é preciso entender que a percepção internacional é importante para o soft power do Estado. Em seu livro intitulado Poder Suave (Soft Power), o autor aponta o carnaval, a bossa nova e as telenovelas como três importantes produtos culturais brasileiros e relata diferentes fatos históricos que demonstraram sua influência pelo mundo.                             

O carnaval, por exemplo, ao se transformar em um produto que atinge grandes massas, seduz não só o povo brasileiro, mas atrai o público internacional, e traz divisas tangíveis (turismo) e intangíveis (a maior festa do mundo, a alegria do brasileiro etc.) para o Brasil. Este carnaval – Sapucaí, Anhembi e Barra-Ondina – é o que dá notoriedade também ao samba, e por meio de coberturas midiáticas é capaz de vender a imagem do Brasil para outras nações. (BALLERINI, 2017, p.129)                                    

A bossa nova também foi e é parte da representação do Brasil no exterior. Esse ritmo, que nos anos 1950 começou a encontrar espaço no ambiente internacional, passou a fazer parte da cultura estadunidense, principalmente no mundo do Jazz, na década de 1960, quando João Gilberto e Antônio Carlos Jobim realizaram um concerto no Carnegie Hall em Nova York. Enquanto o samba, na figura de Carmem Miranda, “representavam algo de étnico, algo de difícil aceitação na cultura fortemente racista dos E.U.A” (SCARABELOT, 2004 apud GOMES 2017, p.61) a bossa nova penetrou mais facilmente e representou para a sociedade norte-americana certo status, no que tange a inteirar-se às elites, assim como no Brasil (GOMES, 2017, p.61). Décadas após seu surgimento, a bossa nova continua a ser gravada, recantada e admirada no estrangeiro, suas músicas como Garota de Ipanema são usadas em filmes, telenovelas e shows até hoje.                   

As telenovelas brasileiras se configuram como outro grande exemplo de recurso de soft power. Bem como o cinema, as telenovelas desempenham expressivo papel na construção da imagem de um país, tanto para sua população nacional, quanto para a internacional. Esse tipo de produção audiovisual, ainda que estruturalmente melodramática e sujeita a variedade de interpretações “é aceita como verossímil, vista e apropriada como legítima e objeto de credibilidade” (LOPES, 2003, p.32). O Brasil, por meio do Grupo Globo, maior conglomerado de mídia e comunicação da América Latina, distribui telenovelas para mais de 100 países desde 1980, e continua a fazer história e conquistar telespectadores em diferentes partes do mundo.

A novela A Escrava Isaura, por exemplo, foi vista por 450 milhões de chineses. A atriz uruguaia Natalia Oreiro é considerada uma das mulheres mais admiradas na Rússia e em Israel por conta de suas novelas. O maior mercado de rua que Luanda (Angola) já teve se chamava Roque Santeiro por conta do sucesso da novela brasileira no país. Paladar, o restaurante que Raquel (Regina Duarte) tinha na novela Vale Tudo virou também o nome dos pequenos restaurantes privados autorizados a funcionar após a abertura econômica de Cuba, nos anos 1990. Há relatos jornalísticos de que a primeira versão da novela Sinhá Moça (1986) interrompeu os conflitos bélicos na Bósnia, Croácia e Nicarágua. (BALLERINI, 2017, p. 109).

Assim como as telenovelas, bossa nova, carnaval e samba, também o ritmo funk alcançou projeção internacional. De acordo com o estudo do Jornal Folha de S.Paulo, o funk se transformou no gênero brasileiro mais ouvido internacionalmente, estando entre as 200 músicas mais tocadas em 51 países. De 2016 a 2018, um levantamento da Spotify constatou o aumento de mais de 3000% do consumo de playlists de funk brasileiro fora do país e em 2019, ainda de acordo com a plataforma de streaming, o gênero musical cresce, em média, 51% ao ano desde 2014. (BRÊDA e MARIANI, 2019; PRADO, 2018; BALBINO, 2021)

Adicionado recentemente às categorias de premiação do Grammy Latino, o funk possui um dos maiores canais do youtube de música no mundo, o KonZilla, com mais de 60 milhões de inscritos. O funkeiro MC Fioti, que alcançou 1,6 bilhão de visualizações do vídeo “Bum Bum Tam Tam” pelo canal KonZilla, gravou em janeiro de 2021 uma nova versão do sucesso para promover a vacinação para o Covid 19, descrito como o ‘hino da vacina’ na sede do instituto Butantan, em São Paulo. A ideia do KonZilla é utilizar o seu canal para se comunicar com os jovens de comunidade do Brasil, e tornar-se um ‘lifestyle’ que tem o funk como essência. Para alcançar maior aceitação e investimento no mercado, a empresa, que fatura milhões, também estabeleceu um ‘filtro’ para os palavrões, cenas de sexo e violência nos clipes. (SENRA, 2021)

Foi por meio do ‘filtro’, com letras mais suaves e ritmo melódico, que se originou a vertente que busca maior projeção nacional e internacional, o funk pop, representado por cantoras como Anitta e Ludmilla. Ambas as funkeiras fizeram parte da abertura[10] dos Jogos Olímpicos em 2016 cantando samba e o sucesso da trilha sonora do filme Tropa de Elite o “Rap da felicidade”, música conhecida por fazer parte do denominado funk consciente. O ritmo também dá origem a diferentes coreografias e passos, como o conhecido ‘passinho’, considerado patrimônio cultural imaterial do Rio de Janeiro em 2018, e apresentado na trilha sonora “Todo mundo aperta o play”[11] da Copa do Mundo FIFA de 2014. Além dos subgêneros funk pop e funk consciente, o funk possui diferentes vertentes como o funk ostentação, o funk 150 bpm, o funk proibidão, e outros. (BALBINO,2021; ORTEGA, 2017; ORTEGA, 2019b)

Apesar da popularidade, dinamismo, versatilidade, da viabilidade mercadológica, e das possibilidades do som e artistas de ocuparem diversos espaços, em 2017, um projeto de lei propôs a criminalização do Funk como crime de saúde pública a criança aos adolescentes e a família (MACHADO, 2017). Assim como qualquer outro, o gênero funk, provindo da periferia e associada a classe negra e pobre, traz mensagens inspiradas no meio em que está inserido. Por vezes é acusado pelo teor das mensagens, por fazer apologia a condutas reprováveis (pornografia, erotização infantil, drogas, álcool, crime etc). Na visão de Macri e Macri jr (2017 p.392) o projeto de lei é considerado “uma tentativa, inadequada dogmática e político-criminalmente, de racionalização de um preconceito social”, e repete a história do samba.                                  

Na contramão desse episódio, a cientista social Debora Faria (2018) afirma que a valorização de uma estética cultural entendida como ‘periférica’ tem sido revelada e intensificada ao longo dos últimos anos. Diferentemente do Brasil, o ritmo Kuduro, também de periferia, parece ocupar papel privilegiado pelo Governo angolano, que embora críticas quanto ao envolvimento do “governo com artistas do gênero, seus usos políticos, além de sua precoce ascensão como um gênero musical representativo da cultura nacional” (MOORMAN s.d apud FARIA,2018 p.37) objetiva tornar o kuduro vitrine de uma nova Angola. A aproximação do Estado indica uma tentativa de “reorientação, de reformulação (rebranding) do kuduro, de modo que suas imagens substituam as percepções negativas que se tem do país e, ademais, com o intuito de torná-lo uma marca (original e rentável) de Angola” (FARIA, 2018 p.40).                                Foram os países como a Angola, considerados emergentes e que possuem alguma identidade cultural com o Brasil, que de acordo com Bijus e Arruda (2010, p.51), fizeram parte de uma abordagem de aproximação empreendida pelo Governo de Luiz Inácio Lula da Silva entre 2003 e 2011, visando ocupar a posição de ator Global nos foros Sul-Sul. A aproximação, inserção e promoção internacional foram apoiados principalmente pelos Ministérios da Cultura e das Relações Exteriores.

Durante o Governo Lula, a diplomacia cultural foi utilizada como importante instrumento para que o Brasil exercesse o poder brando (“soft power”) e assumisse um papel de liderança na política internacional. O número de parceiros do Brasil no campo da diplomacia cultural foi ampliado, enquanto suas relações com o Sul global e o continente africano se expandiram, como parte de uma estratégia mais abrangente em assuntos globais. (CHATIN, 2019 p.37)   

É significativo, considera Chatin (2019, p.38), que a internacionalização da cultura tenha sido uma das três prioridades adotadas pelo Ministério da Cultura no governo Lula. A conduta de política cultural na administração Lula no exterior propõe o aumento da presença na África, e o reforço dos laços Sul-Sul. A diplomacia cultural em África mostra como o país se lança no soft power para ganhar estatura internacional, exercer maior influência global e se posicionar como potência emergente. (CHATIN, 2029, p. 38). Historicamente, considera o porta voz do Ministério das Relações Exteriores, Tovar Nunes da Silva,

Optamos conscientemente pela não militarização. Basta ver que somos um dos poucos países do mundo em que o herói nacional é um diplomata (Barão do Rio Branco) e não um general. Não temos escolha, nossa história é de soft power. (PINTO, 2012)

Embora muito importante, estudos apontam a perda do soft power brasileiro nos últimos anos, como sinaliza o relatório de consultoria inglesa, o Índice Global de Soft Power (GSPI), que mede a percepção da marca-país de mais de 100 países, por meio de indicadores como reputação, reconhecimento e governança.

Tabela – Posição do Brasil no ranking dos relatórios do Índice Global de Soft Power (GSPI)

Ano201520162017201820192020202120222023
Posição23°24°29°29°26°29°35°28°31°

Fonte: BrandFinance (elaborado pela autora)

De acordo com o índice, desde 2015, primeiro ano do levantamento, o Brasil caiu da 23° posição para 26° em 2019, considerada, entre outros fatores, a política externa do país uma das causas para o acontecido (DALDEGAN, 2021, p.213 e 225). Já de 2020 para 2021, o Brasil passou de 29° para o 35° lugar, sendo apontados pelo relatório da consultoria inglesa Brand Finance, a gestão da crise da Covid-19 e a fuga de investidores estrangeiros como fatores chaves para o declínio das 6 posições. (MENEZES, 2021) 

Embora no ranking[12] do GSPI 2021 o Brasil tenha tido a segunda pior avaliação no quesito de performance dos países no enfrentamento da pandemia do Covid 19, na categoria herança cultural, que mede as referências de arte, entretenimento, culinária e esporte, o país ocupou a 8° melhor posição. Para o diretor-geral da Brand Finance no Brasil, Eduardo Chaves, “o mundo vê com bons olhos a música brasileira, que tem como representante desde Tom Jobim até a cantora como Anitta” (MENEZES, 2021).

A percepção da cultura brasileira – que é geralmente positiva- na visão dos estrangeiros é um trunfo para se aproximar de outros países e abrir portas como inserção internacional do país. Os efeitos da presença do Brasil no imaginário de outros povos por meio da cultura espalharam-se a outros domínios. A cultura está assim diretamente ligada e inseparável do soft power, a capacidade de influência do Brasil no âmbito internacional deve levar a cultura em consideração[13]  (CHATIN, 2019, p.42, tradução da autora [14])

Ao considerar a relevância da cultura para as relações exteriores, em 2023, Luiz Inácio Lula da Silva, retomando a posição de presidente do Brasil, reabre o Ministério da Cultura (MinC), rebaixada ao status de secretaria pelo governo anterior de Jair Bolsonaro, e investe, ainda nos três primeiros meses de mandato, mais de 2 bilhões de reais no setor cultural. (BRASIL, 2023a) O atual presidente, assim como nas gestões anteriores entre 2003 e 2011, também propõe o aumento da presença na África e o reforço dos laços Sul-Sul.

“O relançamento da relação com a África é também um reencontro do Brasil consigo mesmo. Reafirmamos nosso profundo orgulho do papel central do continente na identidade nacional. Reconhecer o valor de nossas raízes africanas passa por celebrar a contribuição da África em nossa cultura, seja em políticas nacionais, seja em ações de difusão da cultura brasileira no exterior”, declarou Lula. (BRASIL, 2023b)

Enquanto gênero musical brasileiro mais ouvido internacionalmente, e por ter suas raízes entrelaçadas com a cultura afro-brasileira, o funk, nascido na favela, assim como o samba, projeta a imagem do Brasil internacionalmente. Embora polêmico, por fazer apologia a condutas reprováveis, é também um ritmo versátil, dinâmico, com viabilidade mercadológica, e projeção mundial, utilizado como expressão social e política de luta e resistência da classe negra e pobre.

Ao invés de tentar criminalizar e desvalorizar um gênero musical, que naturalmente tem gerado o interesse do público estrangeiro, pode-se buscar uma reorientação, rebranding do ritmo, a exemplo do que faz a Angola com relação ao kuduro, e utilizar o funk estrategicamente com um meio de aproximação com a África, e com países que têm o idioma e histórias compartilhas com o Brasil, como os da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP).

CONSIDARAÇÕES FINAIS  

A difusão cultural, principalmente da cultura de massa, com o advento da internet, da facilidade de popularização dos produtos por meio de plataformas on-line de streaming, quando bem trabalhada por atores estatais e não estatais, podem contribuir para apresentar o país como um ator que se destaca culturalmente e economicamente na sociedade global. No entanto, exportar um produto cultural é uma tarefa difícil, pois o sucesso, entre outros fatores, depende das preferências da população que irá consumi-la, sendo às vezes por isso necessário que haja mudanças para que tenha maior inserção no cenário internacional.

No presente artigo, ao apoiar-se no conceito de soft power, a partir das concepções do autor Joseph Nye (2004), ressaltou-se a relevância da cultura de massa nas relações exteriores, não só apontando o envolvimento da cultura e seus efeitos políticos mais perceptíveis, a exemplo da relação da indústria cinematográfica estadunidense na disputa ideológica e fim da União Soviética. Destacou-se também o movimento do British Invasion ao suavizar a imagem da Inglaterra durante a Guerra Fria, e o atual papel da cultura pop sul-coreana na disputa ideológica com a Coreia do Norte, demonstrando a relevância e capacidade da cultura de provocar influência de comportamentos e crenças mesmo que esta seja despercebida ou não imediata.                                                  Por frequentemente ter um efeito difuso, e dificilmente ser possível estabelecer a relação direta entre um ativo de soft power e uma consequência específica observável, Nye (2004) defende que esse tipo de ‘poder suave’ se propõe na verdade a projetar uma imagem favorável para favorecer objetivos mais gerais que um Estado possa almejar. Dessa forma, considerando tais concepções, seja gerando efeitos políticos diretamente ou indiretamente, observáveis ou não, pode-se ressaltar que a cultura de massa trabalhada enquanto recurso de soft power é capaz de promover ideologias, influenciar comportamentos, fortalecer a reputação e identidade nacional, difundir o idioma, fomentar a economia, favorecer o turismo e o investimento estrangeiro. Assim como também provocar maior envolvimento afetivo de um povo para com outra nação, despertando emoções e associações daqueles que ouvem o nome da Inglaterra dos Beatles; do Japão dos animes, mangás e games; os Estados Unidos de Hollywood ou Disney; a França da moda; a Coreia do K-pop e K-drama; o Brasil do carnaval, das telenovelas, do samba, da bossa nova, do funk, um lugar tropical de uma cultura rica que naturalmente desperta o interesse estrangeiro.

Reconhecer o valor da expansão cultural para as relações exteriores é fundamental, pois nações e povos se manifestam e se reconhecem por meio de suas expressões culturais e aproximações históricas e linguísticas, sendo os fatores culturais e linguísticos aquilo que nos separa, mas também aquilo que tem força capaz de unir, de conectar, e de contribuir nas atuações e relações dos Estados no cenário internacional.

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[1] O termo ‘cultura de massa’ refere-se à produtos culturais de fácil compreensão, reprodução e padronização, originados e subordinados à ótica da indústria cultural. A indústria cultural é responsável por se apropriar de manifestações e elementos culturais, seja popular ou erudito, com o intuito adaptá-los e transformá-los em produtos racionalmente fabricados para o consumo do maior número de pessoas, das massas, seguindo a lógica da lucratividade e padrões do mercado de consumo. (HORKHEIMER e ADORNO, 2002) Embora críticas, a cultura de massa tem maior potencialidade para chegar a um grande público heterogêneo.

[2] Elaborado por Nye (2004), o conceito de soft power (poder brando) consiste na capacidade de os Estados influenciarem indiretamente o comportamento e as decisões de outros por meio da atração cultural, valores políticos e ideológicos. O conceito será discutido mais adiante, e ao longo do trabalho, será adotada a expressão em inglês.

[3] Os dados são da Secretaria Especial da Cultura via Lei de acesso à informação apresentado na tabela elaborada pelo canal de notícias O Globo. Disponível em: https://oglobo.globo.com/cultura/em-10-anos-verba-do-fundo-nacional-da-cultura-foi-de-344-milhoes-para-menos-de-1-milhao-24256797

[4]  A interdependência significa a dependência mútua entre os Estados, seja de ordem militar, econômica, social, política etc. O termo ‘interdependência complexa’foi criado na década de 70 por Robert O. Keohane e Joseph S. Nye, que apresentou a ideia de que o poder nas relações internacionais tem múltiplas dimensões e não se refere exclusivamente ao poder militar e a segurança dos Estados. O conceito considera a redução do papel do uso força militar entre os países, a existência de outros atores internacionais, não somente os Estados, e a não hierarquia entre os assuntos a serem tratados internacionalmente. 

[5] Soft power is not merely the same as influence. After all, influence can also rest on the hard power of threats or payments. And soft power is more than just persuasion or the ability to move people by argument, though that is an important part of it. It is also the ability to attract, and attraction often leads to acquiescence. Simply put, in behavioral terms soft power is attractive power. In terms of resources, soft-power resources are the assets that produce such attraction.

[6] A cultura é um conceito amplo com diversas definições. Segundo Dos Santos (2017) a cultura está muito associada a estudo, educação, formação escolar, ao se referir às manifestações artísticas, como teatro, música, pintura, escultura, ou aos meios de comunicação de massa, com ampla difusão, tais como rádio, cinema, televisão. Outras vezes está relacionada às festas e cerimônias tradicionais, às lendas e crenças de um povo, ou a seu modo de se vestir, às suas comidas ao seu idioma entre outros. Ou seja, pode-se compreender a cultura como um conjunto de hábitos, crenças, costumes e conhecimentos de determinado grupo social.

[7] Long before the Berlin Wall fell in 1989, it had been pierced by television and movies. The hammers and bullzoners would not have worked without the years-long transmission of images of the popular culture of the West that breached the Wall before it fell.

[8] The booming South Korean presence on television and in the movies has spurred Asians to buy up South Korean goods and to travel to South Korea, traditionally not a popular tourist destination. The images that Asians traditionally have associated with the country — violent student marches, the demilitarized zone, division — have given way to trendy entertainers…

[9]  Os dados são da Federação Internacional da Industria Fonográfica retirados do infográfico elaborado em 2019 pelo canal de notícias G1 na Globo.com. Disponível em : https://g1.globo.com/pop-arte/musica/noticia/2019/05/23/k-pop-e-poder-como-coreia-do-sul-investiu-em-cultura-e-colhe-lucro-e-prestigio-de-idolos-como-bts.ghtml

[10] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=N_qXm9HY9Ro

[11] Disponível em : https://www.youtube.com/watch?v=rrtFy5C02Pc

[12] Cabe ressaltar que assim como qualquer ranking, os rankings de soft power são subjetivos. No caso do Índice Global de Soft Power da companhia Brand Finance é um estudo anual inteiramente baseado em pesquisas sobre as percepções das marca-nação, capturando as opiniões de mais de 100.000 entrevistados em todo o mundo. É um índice composto calculado a partir de extensas pesquisas de opinião pública e avaliações de especialistas, que avalia o soft power de 60 países, principalmente economias de alta e média renda, ao longo de sete pilares: negócios e comércio, governança, relações internacionais, cultura e patrimônio, mídia e comunicação, educação e ciência, pessoas e valores.

[13] Afirma um diplomata do Departamento de Relaçes Internacionais do Ministério da Cultura do Brasil entrevistado em junho 2018 pela autora.

[14] “The perception of Brazil’s culture – that is generally positive in- the foreigner’s eye is an asset to get closer to other countries and to open doors as a platform for the country’s internaltional insertion. The effects of Brazil´s presence in the imaginary of other peoples through culture spread to other domains. Culture is thus directly linked to and inseparable from soft power, Brazil´s capacity of influence in the international ambit must take culture into consideration”.

Rubia Karla Oliota de Lima possui graduação em Comunicação Social- Jornalismo pela Universidade Federal do Maranhão (2012), e atualmente está cursando pós-graduação em Relações Internacionais na Universidade Estadual da Paraíba. É professora de inglês desde 2016, e tem experiência também na área de endomarketing, comunicação interna, produção e locução radiofônica e reportagem televisiva.

Cristina Carvalho Pacheco possui graduação em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (1997), mestrado em Ciência Política (2000) e doutorado em Ciências Sociais (2006), ambos pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). É Professora Associada na Graduação e no Mestrado em Relações Internacionais, ambos na Universidade Estadual da Paraíba, e Conselheira Acadêmica do INCT-INEU. Entre 2013 e 2014 realizou seu pos doutorado na American University (CLALS), com bolsa CAPES- Fulbright. Em 2019 realizou seu segundo pós doc no Programa Santiago Dantas, UNESP, em São Paulo. Coordena o MettRIca: Laboratório de Métodos e Técnicas de Ensino em Relações Internacionais. Atualmente coordena o Mestrado em Relações Internacionais (2022-2023) e coordena a Área Temática de Ensino Pesquiso e Extensao da ABRI (2021-2023). Tem experiência de pesquisa e ensino nos seguintes temas: Teoria das Relações Internacionais, Política Externa dos EUA, Análise de Política Externa, Grande Estratégia e Potências Médias.

Diálogos Internacionais

Divulgação científica de Relações Internacionais, Defesa e Economia Política Internacional ISSN 2596 2353