Yin e Yang: a organicidade entre civis e militares na China

Volume 8 | Número 79 | Mar. 2021

Por Diogo Calazans Corrêa
A ascensão da República Popular da China enquanto superpotência no século XXI levou, naturalmente, à um aumento significativo do número de pesquisas e estudos sobre o gigante asiático. Investigações científicas sobre seu crescimento econômico, seu sistema político e sua rápida industrialização se multiplicaram e continuam a se multiplicar a uma velocidade cada vez maior. Dentre os temas mais recorrentes no contexto ocidental atual, particularmente no americano (por se tratar de uma questão estratégica), está o conceito de “fusão militar-civil” (军民融合).
O termo surgiu oficialmente pela primeira vez em um relatório de Hu Jintao, ex-vice presidente da China, apresentado ao 17º Congresso do Partido Comunista Chinês em 2007. No referido relatório, o político chinês situa a “fusão militar-civil” como um princípio diretivo importante para a consolidação e manutenção do poder da China, de acordo com as características próprias do país. O conceito substitui a concepção anterior de “integração civil-militar” (军民结合), cuja diferença vai além da alteração linguistica-semântica (FRITZ, 2019).

Figura 1: Ocorrência dos termos FMC e ICM nos Planos de 5 anos da China. 

(Fonte: FRITZ, 2019)

O ajuste taxonômico denota um relacionamento mais complexo entre os setores civil e militar, deixando de lado o enfoque majoritário no desenvolvimento tecnológico em materiais de defesa e estreitando a ligação entre as atividades de ambos de forma mais ampla. O nível de coordenação é mais profundo, indo além da mera combinação intersetorial de elementos e agentes, atrelando o desenvolvimento do segmento civil e do segmento militar de forma mais equilibrada, com respaldo institucional e incremento de dispositivos legais (FRITZ, 2019)
Muitos estrategistas e pesquisadores ao redor do mundo esboçaram certo grau de surpresa ao tomarem nota da nova política/estratégia chinesa em torno da “fusão militar-civil”. Entretanto, este não é exatamente um entendimento “novo” no contexto chinês. A própria ideia/terminologia que a antecedeu (“integração civil-militar”) é antiga, tendo seus contornos institucionais iniciais na gestão de Deng Xiaoping, em meados de 1978 (KANIA, 2019).
O alto nível de estreiteza entre o Partido Comunista Chinês e o Exército de Libertação Popular surge desde à aliança entre ambos para derrotar os japoneses e expulsarem os representantes do Partido Nacionalista Chinês (que governava a China desde 1928), resultando na ascensão dos revolucionários comunistas ao poder em 1949. Esta colaboração histórica se origina no escopo de atuação das guerrilhas chinesas, que levaram à fusão das elites política e militar (VIEIRA, 2018).
Dessa forma, o caso Chinês não se enquadra completamente nas formulações teóricas, fundamentalmente ocidentais, que versam sobre as interações civil-militar. O consenso de que existiriam características próprias das elites política e militar, que supostamente afastariam-nas em termos de papel e atribuições e gerariam tensões entre os segmentos não é verificada no caso chinês. A dicotomia autonomia-subordinação existe, mas não é necessariamente conflituosa, muito pelo contrário. O que há de fato é uma complexificação dos limites de atuação entre os setores, mas que é coordenado por um alinhamento tanto ideológico quanto político-estratégico, que suprime possíveis colisões de interesses (VIEIRA, 2018).

Figura 2: Estrutura de governança da China. 


(Fonte: NIE/BBC Online, 2012)

A fronteira difusa entre o partido e o Estado faz com que as lideranças políticas extrapartidárias e o alto escalão da cúpula partidária sejam frequentemente confundidos. Não por acaso, todos os ex-presidentes chineses ocuparam o cargo de presidente da Comissão Militar Central (com exceção de Hua Guofeng, pois o órgão mencionado ainda não existia). Entretanto, a intimidade e coesão dos agentes políticos se traduz pragmaticamente por meio da subordinação constitucional de todos eles ao Partido Comunista Chinês, garantindo que as forças armadas estejam presentes na execução e no planejamento da política nacional, ao mesmo tempo inibindo qualquer tentativa de golpe ou tomada de poder (VIEIRA, 2018).
Tal configuração estrutural não exclui o paradoxo da problemática civil-militar, de que a delegação de poder à instituição que tem como responsabilidade proteger a comunidade política pode tornar esta mesma instituição uma ameaça aos seus cidadãos. Isso porque, por um lado, as forças armadas devem ser fortes o bastante para prevalecer nas guerras contra eventuais inimigos. Por outro, a conduta dos militares deve ser observada de modo que não se torne predatória nem destruidora da própria sociedade a qual deve/deveria representar (FEAVER, 1999). 
Em tese, sob a perspectiva huntingtoniana de profissionalização das Forças Armadas e subordinação ao poder político, o modelo adotado pela China seria perigoso, pois penderia para o extremo do paradoxo onde as forças armadas tenderiam à tomada de poder (HUNTINGTON, 1996). Já sob o alento da concepção janowitziana, o sucesso de tal estrutura residiria justamente na simbiose de elementos civis e militares. A concessão de autoridade política às lideranças militares levariam à uma maior estabilidade no relacionamento com o segmento civil e na sociedade como um todo (JANOWITZ, 1967). 
A abordagem modelística da ciência política parece um pouco confusa justamente pelo adendo discutido anteriormente, em que grande parte da produção acadêmica na área interseccional de relações civis-militares sob este prisma não leva em consideração estudos de caso de países asiáticos. Tentar importar tais teorias para países com contextos e vivências distintas pode levar a três possibilidades: i) ao delineamento teórico do modelo explicar suficientemente bem a conjuntura na qual ele foi aplicado; ii) à derrubada do poder geral de explicação de um determinado modelo; iii) à particularização de enquadramento e explicação de tal modelo frente à novos condicionantes. Como o subcampo das relações civis-militares incorpora elementos de diferentes disciplinas, recorrer à abordagens de outra natureza pode se apresentar enquanto um bom caminho para responder à limitação dos modelos oferecidos pelo enfoque dos analistas políticos.
A investigação histórica-quantitativa da distribuição de lideranças das forças armadas pelo governo chinês aponta para uma redução do número de representantes militares nas principais instituições políticas do país. Esta diferença é particularmente visível quando se analisa a presença do corpo militar no Politburo (principal ente político da estrutura governativa chinesa). Em contrapartida, há um aumento significativo do orçamento de defesa do gigante asiático, bem como da participação de membros das forças armadas chinesas em exercícios externos e operações de natureza internacional (COLLEY, 2019).

Tabela 1: O declínio do Exército de Libertação Popular enquanto ator político formal

(Fonte: COLLEY, 2019)

Uma consideração importante diz respeito à Marinha do Exército de Libertação Popular. Boa parte dos interesses estratégicos contemporâneos da China preconizam e demandam uma atuação predominante de sua Marinha, o que tem significado, na prática, uma multiplicação de responsabilidades e atribuições desta força em específico. Apesar disso, a participação de integrantes da dimensão naval na Comissão Militar Central, principal órgão militar na estrutura de governança política-militar da China, nunca passou de 10% do total de membros, atualmente possuindo apenas um representante da Marinha chinesa (COLLEY, 2019).
Estas tendências apontam novamente para a profissionalização das forças armadas da China, tendo em vista a redução formal de representatividade política no âmbito das instituições chinesas responsáveis pela tomada de decisão e direcionamento político. Concomitante à isso, o incremento do orçamento de defesa e das tarefas eminentemente militares que venham a satisfazer os imperativos instituídos pela política reforçam o aprofundamento de um foco dos militares em sua atividade-fim, ou seja, da premência no estudo e emprego dos meios de força para a defesa nacional e a proteção dos interesses de seu país.
As organizações militares não são organismos isolados, sem interferência qualquer de aspectos gerais externos à elas. Isso é menos verdade ainda no contexto chinês, onde a distância entre o mundo civil e o mundo militar não são tão nítidas. As transformações societais, nos mais variados espectros (tecnológico, cultural, político, identitário), refletem na arquitetura normativa fundacional das forças armadas. Esta influência leva a adoção de novos modelos de organização e funcionamento, que podem afetar de maneiras e intensidades diferentes as relações entre civis e militares.
Diante disso, Charles Moskos (1977) elaborou uma concepção transicional entre dois “tipos ideais” de organização militar, onde um modelo substituiria o outro conforme a cadência e passo das transformações que ocorrem na comunidade política a qual pertencem. O modelo tradicional, denominado “institucional”, é caracterizado pelos valores normativos (honra, serviço, disciplina), compensações por meio de benefícios não financeiros, prestígio baseado no reconhecimento coletivo, estrutura verticalizada e performance avaliada qualitativamente. O modelo emergente, denominado “ocupacional”, é marcado pelos valores da economia de mercado, compensações baseadas em bônus salariais, prestígio pautado na remuneração, estrutura horizontalizada e desempenho avaliado quantitativamente (MOSKOS, 1977).
Todo modelo possui vantagens e desvantagens. O tipo “ocupacional” possui como benefício a agilidade gerencial, uma vez que é horizontalizado, a avaliação quantitativa permite uma análise mais precisa da eficiência e da eficácia dos processos e o recrutamento de oficiais mais especializados. Em contrapartida, enfrenta algumas dificuldades no sentido da profissionalização, visto que os estímulos são predominantemente monetários, assim como os benefícios e o reconhecimento/prestígio. Como o comprometimento está mais ligado à questões financeiras e não mais ao senso de pertencimento, de serviço à nação e valores irremediáveis, a organização militar começa a se aproximar da lógica empresarial, com todas as suas idiossincrasias. Todos estes quesitos levam a uma dificuldade em conceder coesão à estrutura militar e interfere nas relações entre civis e militares.
O caso chinês mais uma vez se mostra peculiar frente as tendências exibidas pelos estudos sociológicos e políticos das democracias liberais. Assim como no caso da subordinação e inserção política por parte do corpo militar, a estrutura das forças armadas na China mostram-se flexíveis o suficiente para abarcar características do tipo ocupacional, sem perder a coesão provida pelo tipo institucional. Depreendida do alinhamento das forças armadas com o partido, a coerência segue sob a égide da confluência ideológica que permeia toda a estrutura política chinesa e se traduz enquanto hierarquia de prioridades e de poder por meio de ações objetivadas pelos planejamentos integrados no escopo civil e militar (VIEIRA, 2018; FRITZ, 2019; KANIA, 2019).
Os frutos de uma política de longo-prazo para o desenvolvimento da economia chinesa fornece a modernização característica do modelo ocupacional, mas sem se desviar das diretrizes estabelecidas pela estratégia nacional que, no final das contas, é determinada pelo Partido Comunista Chinês. A China mostra mais uma vez uma capacidade incomum de se conciliar a gestão política centralizada com a complexidade econômica que se destaca pelos ciclos iterativos constantes, descentralizados e horizontais, alimentando e retroalimentando a inovação em todos os níveis de hierarquia da sociedade chinesa, resultando em ganhos produtivos exponenciais, mantendo os determinantes que constam no projeto de nação que vislumbram (VIEIRA, 2018; FRITZ, 2019; KANIA, 2019).
Recentemente, mais uma vez incorporando aspectos alternativos de uma concepção e outra (confirmando uma tendência aparentemente contraditória), o Comitê Permanente do Politburo aprovou uma revisão da Lei de Defesa Nacional, no 13º Congresso Nacional do Povo ocorrido no final de 2020, com a nova legislação entrando em vigor no início de 2021. Foram examinados cinquenta e quatro artigos da lei original, excluindo-se três deles integralmente e adicionando-se mais seis outros, com o documento final totalizando setenta e quatro artigos, que são organizados em doze capítulos (SARKAR, 2021).
Entre as mudanças mais significativas está o fortalecimento institucional da Comissão Militar Central, concedendo-a maior autonomia e prevalência sobre a tomada-de-decisões relativa à defesa nacional, o que inclui não só o emprego das forças, mas também a mobilização de ativos civis e militares à serviço da proteção do Estado chinês. Em tese, como a Comissão Militar Central é um órgão eminentemente militar, o controle civil sobre as forças armadas possivelmente seria enfraquecido diante das mudanças na referida lei, ainda que Xi Jinping seja o comandante da Comissão (SARKAR, 2021).
Ao mesmo tempo, a nova Lei de Defesa Nacional estimula a coordenação nacional ao incentivar a articulação intersetorial público-privada, incrementando a capacidade de avanço em pesquisa e desenvolvimento industrial de interesse da defesa, como principalmente as áreas de cibernética, tecnologia aeroespacial e armamento convencional. O estímulo de integração multidimensional entre os segmentos civil e militar também se estende para a área da educação e da gestão sistêmica, de modo a suportarem os esforços no sentido de robustecimento e operacionalização de ações no âmbito da defesa nacional (SARKAR, 2021).
Por mais paradoxal que seja, a estrutura política chinesa parece ser capaz de compatibilizar os preceitos da “fusão militar-civil” desenvolvida pela alta cúpula do Partido Comunista Chinês com elementos de profissionalização estabelecidos pelo arcabouço teórico construído por Samuel Huntington e pelas contradições dos tipos ideias de Charles Moskos. Ao mesmo tempo que o dragão chinês fortalece institucionalmente os mecanismos de cooperação e colaboração entre as elites civil e militar, as forças armadas parecem cada vez mais aceitarem o domínio da política e direcionarem seus esforços em torno de tarefas concernentes à sua razão existencial, ao mesmo tempo que incorpora modernizações organizacionais sem perder o alinhamento político-direcional com o partido.
Assim como acontece com seu modelo econômico, o modelo de relacionamento civil-militar da China não encontra parâmetros análogos. Para o desespero dos deterministas, ou daqueles que procuram por respostas com contornos minimamente bem delineados, assim como o Yin e o Yang na cultura chinesa, a interação entre civis e militares na civilização milenar é complexa demais para ser reduzida à um conjunto de teoremas até o presente momento. Ela é orgânica, fluida e parece mudar e se adequar conforme as necessidades de cada tempo e de cada era.
Bibliografia
COLLEY, C. K. How Politically Influential Is China’s Military? The Diplomat, 27 de abril de 2019, disponível em: https://thediplomat.com/2019/04/how-politically-influential-is-chinas-military/, acessado em 1 de novembro de 2019.
FEAVER, P. D. Civil-Military Relations. Annual Review of Political Science. 2: 211–241, 1999.
FRITZ, A. China’s Evolving Conception of Civil-Military Collaboration. Center for Strategic & International Studies, 2 de agosto de 2019, disponível em: http://www.csis-cips.org/news/2019/8/2/chinas-evolving-conception, acessado em 28 de outubro de 2019.
HUNTINGTON, S. P. O Soldado e o Estado: Teoria e Política das Relações entre Civis e Militares. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1996.
JANOWITZ, M. O soldado profissional: estudo social e político. GRD, 1967
KANIA, E. In Military-Civil Fusion, China is Learning Lessons from the United States and Starting to Innovate. The Strategy Bridge, 27 de agosto de 2019, disponível em: https://thestrategybridge.org/the-bridge/2019/8/27/in-military-civil-fusion-china-is-learning-lessons-from-the-united-states-and-starting-to-innovate, acessado em 28 de outubro de 2019.
MOSKOS, C. From Institution to Occupation: Trends in Military Organization. Armed Forces & Society. 4(1): 41–50, 1977.
NIE, W. Saiba como a China é governada. BBC News, 9 de novembro de 2012, disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2012/11/121108_china_governanca_mm.shtml, acessado em 1 de novembro de 2019.
SARKAR, S. New law allows Xi to bypass Chinese cabinet in matters of national security. Hindustan Times, 5 de janeiro de 2021, disponível em: https://www.hindustantimes.com/world-news/new-law-allows-xi-to-bypass-chinese-cabinet-in-matters-of-national-security/story-IwwMPEFq3lzfRnRtlBLRjM.html, acessado em 11 de março de 2021.
VIEIRA, V. C. C. Dragão de papel ou de grafite? A modernização da indústria de defesa na China entre a dependência e a autonomia. Meridiano 47, vol. 19, 2018.
Diogo Calazans Corrêa é bacharel em Defesa e Gestão Estratégica Internacional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e mestrando em Ciências Militares pela Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME). Trabalhou no Comitê Interamericano contra o Terrorismo (CICTE) na Organização dos Estados Americanos (OEA) em Washington, D.C. e atualmente trabalha como Trainee em Gestão Pública pela Vetor Brasil.

Como citar:

 

CORRÊA, Diogo Calazans. Yin e Yang: a organicidade entre civis e militares na China. Diálogos Internacionais, vol.8, n.79, mar. 2021. Disponível em: http://www.dialogosinternacionais.com.br/2021/03/087921-1.html

Diálogos Internacionais

Divulgação científica de Relações Internacionais, Defesa e Economia Política Internacional ISSN 2596 2353